quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Resenha: "A Ilha" de Fernando Morais

Capa do livro "A Ilha - um repórter brasileiro no país de Fidel Castro" | Foto: Amazon 

Por William Mendes no Refeitório Cultural

"Uma vez eu estava em um barraco, numa clareira, num lugar sem árvores, que seria um alvo formidável para a aviação da ditadura. Fidel viu aquela movimentação em volta da minha mesa e me disse: 'Olha, vê se você se mete logo dentro do bosque com essa gente, porque se um avião nos localiza aqui não sobra ninguém". A partir desse dia, passei a montar minha barraquinha de médico sempre dentro de algum matagal bem coberto por árvores. E Fidel aproveitava esse tempo para fazer propaganda política. Enquanto eu, de um lado, atendia os doentes, ele aproveitava os que esperavam, ou que já tinham sido atendidos, para conversar. E lhes falava que íamos fazer a reforma agrária, que eles não deviam mais pagar aluguel aos donos da terra, que enquanto estivéssemos na serra eles não tinham mais obrigações de pagar aos donos - e que depois que descêssemos à cidade, aí sim, eles seriam definitivamente donos da terra. Ele insistia em que a terra era de quem trabalhava nela, não do dono que a alugava. E o poder de persuasão desse homem é tão grande que eu vi centenas e centenas de camponeses que eram batistianos se transformarem em fidelistas depois de alguns discursos dele." (Depoimento do médico Julio Martinez Paes, in: "O médico da Sierra Maestra", pág. 221).

Seguindo meu desejo de conhecer um pouco mais a respeito da história do povo cubano, desta vez li um livro reportagem de Fernando Morais. A Ilha, livro publicado em 1976, fruto de uma viagem do jornalista a Cuba uns 16 anos após a revolução. O mundo vivia ainda o clima de guerra fria entre países capitalistas e socialistas. 

A edição que tenho, a 30ª (2001), traz textos extras muito bons. Ela inclui um prefácio do autor - "Cuba revisitada, um quarto de século depois" - e mais 4 textos excepcionais, incluindo uma entrevista com Fidel Castro em 1977 e uma com um médico que esteve praticamente todo o período vivido pelos revolucionários na Sierra Maestra. Aulas de resistência e determinação! 

A leitura foi rápida, intensa, e me pôs a pensar bastante no que estamos vivendo no mundo neste exato momento. Alguns capítulos do livro me colocaram a pensar sobre a encruzilhada histórica em que estamos enfiados. Ou a esquerda volta a ter como horizonte de lutas o socialismo ou a humanidade será extinta muito rapidamente! É chocante ver sair da agenda dos partidos e sindicatos o socialismo como objetivo histórico!

Enquanto lia cada capítulo com uma temática específica sobre a vida no país após a Revolução Cubana de 1959, o antes e o depois do fim da ditadura de Batista, e após os embargos econômicos norte-americanos em retaliação à ilha, me vinha à cabeça alguma lembrança sobre a nossa própria miséria capitalista porque aqui não há embargo econômico e não vivemos sob o regime socialista e o povo brasileiro viveu sua história de 5 séculos sob a mais absoluta miséria capitalista, exceção somente no período dos 3 governos do PT, de Lula e Dilma.

Leia também outras resenhas:

Fernando Morais conversou com o povo cubano durante 3 meses em meados dos anos 70 e ao lermos sua reportagem podemos ver o quanto a vida do povo de forma geral melhorou após a revolução, que só após dois anos é que tomou a dimensão formal de ser uma revolução socialista. 

Educação, saúde, justiça e eleições 

Os capítulos que abordaram as questões relativas à Educação, Saúde, Eleições (Democracia) e Justiça me fizeram pensar muito sobre as duas décadas que vivi entre a militância política do movimento sindical, partidário e estudantil. Não fossem as estratégias adotadas pela revolução e seus líderes, Cuba jamais teria sobrevivido todos esses anos aos constantes ataques ao seu modelo e sistema político, jamais!

Educação

"(...) No fim do primeiro ano de trabalho, o país, que era chamado pelos revolucionários de 'Território Livre do Imperialismo', passou a ser conhecido pelo povo como 'Território Livre do Analfabetismo'. Os índices de analfabetos no país tinham sido reduzidos de 35% para 5% - e hoje é de cerca de 2%." (p. 85).

Saúde

Fernando Morais queria uma aspirina e tentou comprar o remédio na farmácia sem receita médica e a balconista pediu que ele fosse a um posto de saúde, que tinha a poucos metros dali, para que um profissional da área lhe desse a receita caso fosse necessária a medicação (o sublinhado é meu):

"Compañero, este é um país muito pobre, que não pode se dar ao luxo de estar vendendo remédios a quem acha que precisa deles. Quem sabe se você deve tomar aspirina é o médico. E ser estrangeiro não muda nada: ali na esquina há um posto médico aberto, lá você obterá a receita." (p. 93).

Ao ler o relato de Morais sobre o tema saúde, e isso em meados dos anos 70, me lembrei demais do que pretendíamos implantar na Cassi (Caixa de Assistência) dos funcionários do Banco do Brasil pelo menos até o período no qual fui gestor de saúde da autogestão entre 2014 e 2018. Um modelo preventivo de saúde da família, conhecedor de seu público assistido, racional no uso dos recursos, e com foco em cuidar dos participantes ao longo da vida deles, orientando o uso do sistema desde uma simples necessidade até as demandas mais complexas de cura.

Eleição, justiça e organização de base

Esse pequeno capítulo é fantástico. Os processos eleitorais e de justiça contam com uma organização e participação popular incríveis. Me lembrei de Nelson Mandela contando como se deram os processos de organização por ruas, logradouros e pequenos segmentos durante as lutas do Congresso Nacional Africano (CNA) contra o governo da minoria de brancos e do regime do Apartheid.

O governo socialista de Cuba decidiu instituir processos democráticos de eleição de representantes em 1974 e começou pela província de Matanzas porque ali havia uma organização popular bem avançada. Foi o povo dali que ajudou a derrotar os mercenários contratados pelos Estados Unidos na chamada "invasão da Baía dos Porcos": "O povo desceu em massa para o litoral para expulsar os mercenários contratados pela CIA." (p. 115).

Os Comitês de Defesa da Revolução (CDR) me lembraram o esforço que nós fazíamos no movimento sindical para criar as representações nos locais de trabalho (OLT). Fernando Morais reporta que nada acontece no país sem que os CDR saibam.

"(...) Acontece que nada ocorre no país, nem na mais remota aldeia, sem que um membro do CDR tome conhecimento. Funcionando como uma espécie de síndico de quadra, o presidente do CDR (normalmente um aposentado ou uma dona de casa) passa o dia atento para algum eventual desocupado da vizinhança (em Cuba há uma lei contra a vadiagem que é efetivamente aplicada e que pode condenar o acusado até a dois anos de prisão) ou mesmo cuidando para que as crianças não faltem à aula. Sem nunca desviar os olhos dos possíveis contrarrevolucionários - cada vez mais raros...". (p. 139/140).

Imprensa

Outra coisa que me fez rir foi o capítulo sobre "imprensa", e me fez pensar sobre o momento no Brasil, dia 25 de março de 2023, menos de 3 meses de mandato do presidente Lula, pois já estamos assistindo ao conluio da grande mídia, a "imprensa", manipulando canalhices, mentiras e merdas do tipo para constranger Lula e tentar derrubá-lo ou frear qualquer iniciativa popular do presidente. Veja o que Morais ouviu de jornalistas cubanos naquela época:

"Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu: 'Claro que não'. E completou, com naturalidade: 'Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder. E aqui em Cuba quem detém o poder é o proletariado. Estamos todos os jornalistas cubanos, portanto, a serviço do proletariado'." (p. 101).

Vendo o comportamento "eterno" enquanto houver imprensa capitalista eu fico com aquela máxima "Al carajo con la libertad de prensa! (dos capitalistas)".

No final do capítulo o jornalista cubano diz:

"Charuto na boca, precocemente calvo, Angel Guerra repete: 'Liberdade de imprensa para atacar um governo voltado para o proletariado? Isso nós não temos. E nos orgulhamos muito de não ter'." (p. 105)

E eu rabisquei o comentário abaixo:

Há que se pensar nisso! Os R$ 0,20 de junho de 2013 serviram de pretexto para a imprensa manipular o povo brasileiro e derrubar um governo voltado à melhoria de vida da classe trabalhadora. O golpe foi em benefício do 1% dono de todos os meios, inclusive da "imprensa livre" (PIG). Foi o caos a destruição do Brasil após o Golpe de Estado: 200 milhões se foderam... imprensa livre o caralho!

Um governo organizado para defender seu país e seu regime político 

"O CDR tem, também, uma inacreditável capacidade de mobilização armada dos quase 5 milhões de adultos (maiores de dezessete anos), para formar contingentes auxiliares das Forças Armadas, se for o caso...". (p. 141).

Enquanto o povo cubano pega pra si a responsabilidade de manter as conquistas da revolução popular e depois adaptada para organizar um país socialista, resistindo bravamente a um embargo econômico criminoso e genocida há mais de seis décadas, no Brasil mal deu tempo de derrotar o regime criminoso e genocida do clã bolsonaro e seus apoiadores, governo que sucedeu o do golpista Temer, e já vemos sinais dos mesmos conluios se formando para derrubar um governo claramente voltado para melhorar a vida do povo pobre e da classe trabalhadora.

Estamos minimamente organizados para enfrentar nossos inimigos de classe? Claro que não estamos! Não estamos. Avalio que as nossas organizações de classe, nossas lideranças inclusive, ainda não organizaram a nossa resistência e as estratégias de enfrentamento para a eventualidade de iniciarem novo golpe contra nós, o povo. Quisera eu estar errado...

Bibliografia:

MORAIS, Fernando. A Ilha - Um repórter brasileiro no país de Fidel Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

William Mendes é sindicalista e autor do blog Refeitório Cultural. 

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