Por Eduardo Grandi
O dia 26 de julho de 1953 marcou a entrada definitiva no cenário político do homem que se tornaria uma das figuras mais impressionantes da história moderna. Liderando uma centena de rebeldes no assalto ao quartel de Moncada, em Cuba, o jovem advogado Fidel Castro Ruz, até então um promissor e atuante líder estudantil, foi feito prisioneiro da tirania que buscava derrubar. Seu país era então governado pela corrupta e autoritária ditadura de Fulgencio Batista que, apoiado pelos Estados Unidos, havia consolidado a situação de Cuba como mera colônia do gigante do norte, quintal dos grandes capitalistas e da máfia estadunidense que, às custas da completa miséria da grande maioria do povo, converteram a ilha no "prostíbulo do caribe". A severa repressão da tirania batistiana contra qualquer foco de descontentamento não deixava outro caminho a jovens com sede de justiça social senão o da luta armada. E foi assim que, contando com apenas 27 anos, Fidel se viu diante da tarefa de fazer sua própria defesa perante o tribunal da ditadura, no qual defendeu de forma contundente o direito dos povos à rebelião contra a injustiça. O discurso seria mais tarde transcrito em um livro, que receberia o título da frase final de sua defesa: "a História me absolverá".
Com sua desaparição física ocorrida nesta sexta 25, chega o momento de se fazer o balanço da vida do revolucionário e estadista cubano. E a História tem certamente muito a falar a seu respeito.
Solto da prisão após a insurreição fracassada, Fidel exilou-se no México de onde, junto com Che Guevara, Raúl Castro e Camilo Cienfuegos, organizou nova incursão militar rumo a Cuba em dezembro de 1956. Viajando no iate Granma os 82 combatentes foram, porém, surpreendidos pelas forças da ditadura logo no desembarque em Cuba, sendo quase todos mortos. Ainda assim, as forças rebeldes lograram se reagrupar nas florestas de sierra maestra, no oriente da ilha, de onde os "barbudos" lançaram uma guerra de guerrilhas contra o regime Batista. O enorme prestígio político de Fidel, já bastante conhecido pelo povo cubano, provou ser a grande arma dos guerrilheiros para aglutinar o apoio de camponeses, operários e da população em geral de forma a rapidamente tomar conta do país. Em 1° de janeiro de 1959, ante a fuga do ditador Batista para a República Dominicana, Fidel lidera a entrada triunfal das forças rebeldes em Havana. Mas a Revolução Cubana, principal acontecimento histórico da América Latina no século vinte, estava apenas começando.
Nomeado Primeiro-Ministro do governo revolucionário, Fidel logo mostrou que não pretendia ser outro caudilho populista latino-americano. Sustentado por um suporte popular esmagador, começou a realizar transformações de fundo em Cuba que puseram a jovem revolução em rota de colisão com o governo dos Estados Unidos. Movido por seu patriotismo e por um profundo senso de justiça social, Fidel iniciou processo radical de reforma agrária e de nacionalização do grande capital privado estrangeiro, ao que o gigante do norte respondeu com uma hostilidade crescente. O momento exato em que se deu a conversão ideológica do líder cubano, de sua origem política conservadora para o comunismo, ainda é motivo de controvérsia. Fato, porém, é que os anos de luta contra a tirania e o posterior choque dos interesses libertários da revolução com os interesses imperialistas do gigante do norte, em um cenário onde a polarização mundial entre capitalismo e socialismo se encontrava no auge, conduziram rapidamente a revolução cubana e seu líder maior a um processo de radicalização sem precedentes. Tal processo se consolidou simbolicamente em abril de 1960, por ocasião da tentativa de invasão da ilha pelos EUA em Playa Girón, em que Fidel proclamou oficialmente o caráter socialista da Revolução, e sentenciou: "sou marxista-leninista, e o serei até a morte". O fracasso da incursão imperialista acabou se tornando a primeira derrota militar dos Estados Unidos em toda a História do continente.
Liderada por Fidel no rumo do socialismo, a Revolução proporcionaria ao povo cubano nas décadas seguintes avanços sociais e econômicos até hoje inalcançados por nenhuma outra nação latino-americana. Foram erradicados o analfabestismo, a fome e a miséria. A mais profunda reforma agrária de todo o continente acabaria de vez com o latifúndio. Desenvolveram-se sistemas de educação e saúde de acesso universal e gratuito com padrão comparável aos dos países mais desenvolvidos. E a difusão massiva da cultura e da prática esportiva a toda a população acabariam por converter o outrora pequeno e atrasado país num celeiro de grandes artistas e de campeões olímpicos. Tão fenomenais avanços, resultantes da completa expropriação dos capitalistas da ilha, levariam as velhas oligarquias latino-americanas (em aliança com o imperialismo estadunidense) a mergulhar o continente em sangrentas ditaduras empresariais-militares que, no seu desespero por sufocar o exemplo cubano, levariam ao assassinato e ao desaparecimento de milhares de militantes sociais em todo o continente. Levariam, também, a agressões de todo tipo contra Cuba socialista, desde atentados a bomba até o sequestro de crianças e ataques com armas biológicas. A todas essas agressões o povo cubano resistiu, como também Fidel resistiu às mais de 600 tentativas de assassinato movidas contra ele pelos EUA e seus comparsas.
Sob o governo de Fidel, nos polarizados anos da Guerra Fria, Cuba tornou-se ponta de lança da luta anti-imperialista internacional. Sua atuação no movimento dos países não alinhados e a intervenção militar cubana na África mostraram-se decisivos na derrota do colonialismo e do apartheid na África do Sul, feito reconhecido por Nelson Mandela, que chamou Fidel de "irmão de luta". Também mostrou-se decisivo o apoio de Fidel à consolidação da revolução sandinista na Nicarágua, convertida no "segundo território livre das Américas".
Mas na virada das décadas de 1980-90 a Revolução Cubana se viu prestes a pagar um preço alto demais por seus erros. Quando a forma de socialismo adotada pela União Soviética e copiada por Cuba, com seu estatismo e burocracia excessivos, desabou subitamente no leste europeu, os cubanos se viram quase que de imediato sozinhos em um mundo hegemonizado pelo capitalismo. O episódio pôs à prova a liderança de Fidel, que sem ceder um milímetro nos seus ideais comunistas, liderou Cuba nos difíceis anos do "período especial", enfrentando a volta da escassez crônica, dos racionamentos e até da fome na ilha. Mais, converteu Cuba em um verdadeiro farol da esperança em um mundo dominado pela barbárie da fase neoliberal do capitalismo. A sempre incansável crítica de Fidel aos desmandos e à irracionalidade do livre mercado capitalista ganhou naqueles anos difíceis contornos de corajosa resistência à imposição selvagem do "consenso de Washington": "Se queremos salvar a humanidade da auto-destruição, é preciso distribuir melhor os recursos e as tecnologias", disse. Sua implacável denúncia às ameaças que o crescimento da desigualdade e da degradação do meio ambiente representavam ao mundo ganhou uma concretude avassaladora durante a Eco-92 no Rio de Janeiro, quando ele anteviu os dois maiores problemas do mundo de hoje com uma só frase: "Pague-se a dívida ecológica, não a dívida externa".
Porém, o exemplo de Fidel foi muito além das palavras. Contra o cerco capitalista e o recrudescimento do bloqueio econômico dos EUA, Cuba apresentou uma arma poderosa: a solidariedade internacionalista. Mesmo com seu país passando por tempos duríssimos, onde quer que houvesse um desastre natural ou epidemia, lá estavam as brigadas de médicos cubanas prestando solidariedade aos povos. Onde a miséria e a insensibilidade de governos omissos não garantia a mínima atenção médica a seus povos, lá estavam as missões cubanas para garantir conquistas como a "operación milagro", que devolveu a visão a milhares de vítimas de problemas oculares em toda a América Latina.
No começo dos anos 2000 Cuba e sua Revolução encontraram novo fôlego econômico e ideológico na Revolução Bolivariana de Hugo Chávez, amigo pessoal de Fidel. Expressando o desejo popular de libertação nacional e de justiça social na Venezuela, Chávez tornou seu país o carro chefe de um processo de mudanças que levou ao poder diversos governos mais ou menos progressistas, ou mesmo de orientação socialista, em todo o continente. O isolamento de Cuba tornara-se coisa do passado. Sufocados por tantos anos, os ventos da mudança enfim começavam a soprar por toda a América, o que ficou simbolizado pela decisão da Organização dos Estados Americanos (OEA) de revogar a suspensão de Cuba, decretada em 1962. Cuba, porém, já sob a presidência de Raul Castro, não aceitou retornar à OEA. Novos organismos internacionais como a ALBA e a UNASUL já tornavam inútil a velha organização criada pelos EUA para controlar o continente, demonstrando claramente que o processo de autodeterminação da América Latina já se tornara irreversível. Até mesmo o bloqueio econômico imposto pelos EUA contra Cuba já entra em processo acelerado de erosão pela força das condições de um mundo novo, que não comporta mais a mesquinhez de velhos hegemonismos. Passado o pior das tempestades de 1989-91, o socialismo cubano se encontra em condições favoráveis para ditar os termos do novo processo de integração internacional que se avizinha.
Mesmo afastado do poder desde 2008, e então com mais de 80 anos de idade, Fidel ainda encontrou forças para articular uma última grande contribuição ao mundo: a mediação do processo de paz entre a guerrilha das FARC e governo colombiano, que anunciaram o acordo de paz definitivo um dia antes de sua desaparição física. Era como se o líder histórico da Revolução Cubana tivesse aguardado o anúncio de mais esta vitória das forças progressistas do mundo para enfim poder descansar em paz.
Fidel agora não está mais entre nós. Deixou como legado um país que, mesmo pobre e ainda submetido a um bloqueio criminoso, é capaz de proporcionar emprego, moradia, alimentação, segurança, cultura e lazer, além de educação e saúde de primeiro mundo, a todos os seus cidadãos sem exceção. Isto fala muito a respeito dos amigos e dos inimigos de Fidel. Explica por que ele foi tão amado por seu povo e tão odiado por alguns, mas sobretudo, explica o que pretendem seus caluniadores, por que jamais conseguiram derrotá-lo e por que jamais derrotarão o ideal socialista. Pois os gigantes não morrem, apenas se tornam imortais. E a História já o absolveu.
HASTA SIEMPRE, COMANDANTE!
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