Mural em Cuba | Foto: Diálogos do Sul |
Por Marc Vandepitte no Rebelión
"A tarefa que temos pela frente, nós comunistas cubanos e todo o povo, é grande, trata-se de definir com a mais ampla participação popular a sociedade socialista a que aspiramos e podemos construir nas condições atuais e futuras de Cuba, o modelo econômico que irá reger a vida da nação, em benefício de nossos compatriotas, e assegurar a irreversibilidade do sistema sócio-político do país, única garantia de sua verdadeira independência" (1).
Assim soa um fragmento chamativo do discurso de Raúl Castro ante o parlamento de Cuba, em 01 de agosto de 2009. Parece que a revolução cubana está se preparando para reformas importantes. Isso não deve surpreender tanto, porque uma revolução que não é renovada periodicamente, que não corrige seus erros em tempo ou que não se adapta às novas circunstâncias não pode sobreviver. Especialmente em Cuba é assim, porque as condições externas mudaram várias vezes de uma forma muito extrema.
Na verdade, o último meio século foi marcado por várias ondas de mudança substancial. Na década de sessenta, a economia cubana foi obrigada a adaptar-se após a ruptura súbita e completa com os EUA, até então dominantes na ilha. Os dez anos seguintes foram uma grande busca de um caminho até o melhor modelo de desenvolvimento, uma estrada muito sinuosa, por vezes.
Nos anos setenta, este modelo foi consolidado e a economia cubana se integrou à dos países do Came (ou Comecon). Esta integração ofereceu muitos benefícios, mas também vários inconvenientes. Em meados dos anos oitenta, foi declarada uma campanha de retificação para corrigir os erros daquele período. Não foi dado muito tempo aos cubanos para fazerem isso, porque poucos anos depois o Muro de Berlim caiu e cortou a aorta econômica da ilha pela segunda vez em trinta anos. Além disso, o bloqueio se intensificou.
A economia estava prestes a entrar em colapso completo, então tratava-se de encontrar uma estratégia de sobrevivência. Proclamou-se um Período Especial e houve reformas muito grandes. Durante os anos noventa, a revolução praticamente não pôde contar com ninguém, mas isso mudou no início do novo milênio. A Venezuela e também a China e o Brasil tornaram-se parceiros econômicos muito importantes, e a nova Alba ofereceu novas perspectivas. Enquanto isso, a revolução estava se recuperando do golpe dos anos noventa, e criou-se mais espaço para reordenar várias questões (2).
Em novembro de 2005, Fidel já tinha começado a fazer isso, afirmando que o maior perigo para a revolução não vinha de fora, mas de dentro. Lançou um ataque frontal contra a corrupção que existia em todos os níveis. Durante o verão de 2007, Raúl retomou essa tarefa, denunciando a falta de eficiência na economia. Lançou uma consulta maciça à população, como a que foi feita no início do Período Especial. Estas pesquisas foram analisadas e, a partir delas, se lançam agora várias reformas, com a prudência necessária.
Em 2008-2009, este processo foi interrompido várias vezes. Primeiro pelos três furacões que passaram pela ilha durante o outono de 2008. Em apenas um par de semanas estes fenômenos meteorológicos causaram um dano enorme. Um em cada sete casas foi danificada ou destruída. O prejuízo chegou a significar 20% do PIB.
Em segundo lugar, a crise financeira e econômica atingiu a ilha, como golpeou o resto da região. O preço do níquel, produto de exportação mais importante de Cuba, despencou, enquanto o preço dos alimentos, o que Cuba mais importa, atingiu as nuvens. Este aumento foi o resultado de más colheitas em todo o mundo, acompanhadas simultaneamente por um aumento da procura no mercado mundial.
Por causa da crise, os turistas em Cuba gastam menos e também entram menos dólares provenientes do estrangeiro por parte dos familiares dos cubanos que vivem fora do país. A isso se somou uma ausência temporária, mas urgente, de carros, dólares e outras divisas. Cuba precisa de moeda estrangeira para fazer compras no mercado externo. Devido a esta falta, tivemos que reduzir as importações de petróleo e, portanto, o gasto energético. "Arrocho ou morte" foi o slogan.
Cuba enfrenta dois desafios tão urgentes como visíveis neste momento. De um lado, é necessário reparar todos os danos materiais causados pelos furacões e, do outro lado, precisamos reverter a falta de divisas. Mas, para além disso, também existem dois desafios estruturais que irão determinar o futuro da ilha, por isso queremos falar sobre eles.
1. O abismo entre a economia e o resto.
O desafio fundamental para a revolução é o abismo entre o setor econômico e os setores social, cultural e intelectual. Quando se trata dos três últimos, Cuba está em um nível comparável a qualquer país rico. A economia, por outro lado, tem o perfil dos países relativamente pobres da região. O grande desenvolvimento do setor cultural, social e intelectual causa elevadas expectativas para as quais não há apoio financeiro.
A fraca base econômica é o resultado do bloqueio econômico e do atraso sofrido após a queda da União Soviética. Se Cuba tivesse relações comerciais normais com o resto do mundo e se depois de 1989 tivesse alcançado a mesma taxa de crescimento que teve nos 30 anos anteriores, Cuba teria agora o mesmo padrão de vida que a Itália. Mas não é o caso, e este fato causa frustração na população cubana. Uma pessoa é um pianista de altíssimo nível, mas não tem um piano de cauda, outra é um cirurgião, mas não tem carro próprio. Um engenheiro seguramente não terá celular ou laptop próprio...
No mundo inteiro, trabalhadores altamente qualificados são bem pagos, em Cuba isto não acontece - nem poderia, neste momento -, porque a sua riqueza seria às custas do bem-estar do resto da população. Esse problema é amplificado por causa do turismo. A câmera digital, o IPod e os celulares são muito comuns para os turistas, mas para a maioria dos cubanos são praticamente inacessíveis. Isso frustra os cubanos.
As frustrações do setor de consumo têm um efeito importante sobre o setor produtivo. Como incentivar as pessoas a trabalharem de forma eficaz se, com os salários que ganham, não têm acesso a esses produtos de luxo tão cobiçados, seja porque os salários são demasiado baixos ou porque a venda desses produtos está proibida? Como motivar os jovens altamente qualificados para trabalharem no campo com temperaturas acima de 30 graus e uma umidade importante? Especialmente porque, em qualquer caso, têm um posto de trabalho garantido. Nesse sentido, Cuba é um pouco vítima do seu próprio êxito.
Em 2008, foi legalizada a venda de telefones celulares, laptops e players de DVD. Foi um passo importante, mas apenas para uma fração da população. A única solução estrutural para resolver frustrações no setor de consumo consiste no desaparecimento acelerado de um atraso no setor econômico. A grande questão é: como fazer isso? Nos últimos anos, Cuba teve um crescimento de 3% acima dos outros países da América Latina (3). Tudo pode ser melhorado, mas há limites, claro.
No caso de Cuba, esses limites são determinados por três fatores, pelo menos. O primeiro é o bloqueio. O bloqueio tira, a cada ano, um par de pontos percentuais do PIB, mas também remove créditos financeiros e tecnologia necessária para aumentar a produtividade (e portanto o crescimento econômico). Outro obstáculo para o desenvolvimento é o envelhecimento da população. Finalmente, o terceiro freio está posto pelo aquecimento global, que causa secas mais prolongadas e furacões cada vez mais fortes.
Há, pelo menos, quatro pistas para acelerar o crescimento. A primeira é a mais fácil, mas não é determinada por Cuba. É a autorização para os habitantes dos EUA visitarem a ilha. Se isso acontecesse, significaria um enorme fortalecimento do turismo, que é a principal fonte de divisas. Em um curto espaço de tempo, duplicaria do número de turistas, o que aumentaria o PIB em alguns pontos. Resolveria da noite para o dia a falta de divisas e fortaleceria a moeda nacional. Esta medida provavelmente levaria ao fim do bloqueio, o que por sua vez significaria mais alguns pontos para o crescimento. Infelizmente, esta medida é decidida em Washington.
Outra possível pista é a exploração petroleira. No Golfo do México, em águas territoriais de Cuba, encontraram alguns campos de petróleo promissores. A exploração destes não somente daria muitas divisas para a ilha, mas também atrairia investimentos estrangeiros com mais facilidade, e colocaria Cuba num posto superior na escala para receber crédito.
No entanto, esta pista tem uma série de riscos e problemas. Primeiro, a exploração exige investimentos substanciais e conhecimentos especializados de que a ilha não dispõe. Mas, principalmente, estes depósitos estão perto das águas territoriais dos Estados Unidos. Nós todos sabemos que, quando se trata de petróleo, aos EUA não importa uma guerrinha a mais ou a menos. A grande questão é saber se admitiriam que Cuba explorasse estas riquezas.
Uma terceira pista possível é a orientação da economia para setores com elevado valor agregado. Trata-se principalmente de setores de alta tecnologia. O ensino excelente e altos níveis de capacitação são vantagens consideráveis de que dispõe a ilha. Já na década de oitenta, havia esforços significativos nas áreas de biotecnologia e farmacêutica. A partir de 2002, desenvolveu-se uma universidade de informática muito avançada. Mas, para poder jogar mais na carta de alta capacitação, seria preciso dar maior prioridade à formação técnica.
Hoje há um número relativamente alto de estudantes que optam por ciências humanas. Mas não basta apenas uma reorientação dos alunos. O desenvolvimento de setores de alta tecnologia exige investimentos muito grandes, que terão que vir principalmente de fora. Neste tema, houve um progresso significativo nos últimos anos. A afirmação dos chamados países em crescimento no cenário econômico global se traduz em uma crescente cooperação Norte-Sul (4). Cuba também contribui, especialmente no plano médico, mas também colhe os frutos desse esforço.
A crescente integração da América Latina tem uma boa influência sobre este processo. As áreas em que Cuba tem uma vantagem comparativa são as da biotecnologia, da farmacêutica, equipamentos médicos, informática e serviços médicos. Existe também um potencial na área de automação, engenharia, projetos ambientais e de ensino. É preciso um planejamento de longo prazo para fazer essa mudança, por isso se retomou a tradição dos planos quinquenais (5).
Uma dica final é o aumento da produtividade. Na maioria dos setores é muito baixa. É uma consequência da burocracia, mas ainda mais de uma baixa motivação no trabalho e um grau relativamente elevado de corrupção. Os dois últimos fenômenos são, por sua vez, uma consequência do duplo sistema monetário e da falta de ligações entre o trabalho, salários e poder de compra.
Analisemos mais detalhadamente como isso acontece. Quanto à burocracia, nós concordamos com a idéia de Hugo Chávez que diz que a burocracia é o colesterol da economia, mas devemos ter em mente que não há soluções simples. Em uma economia que tem como objetivo maximizar os lucros, mas maximizar o social e que está dirigida pela política, é inevitável certo grau de burocracia. Se dá caminho livre para a dinâmica econômica, automaticamente perde as prioridades sociais. Mas, por outro lado, também uma direção política demasiado rígida mata qualquer dinâmica e compromete o apoio financeiro para os objetivos sociais. É um equilíbrio difícil de manter.
Na década de noventa, houve tentativas para aperfeiçoar tanto o planejamento macro como micro, com resultados muito diversos. Raul Castro anunciou no verão de 2008 que ele quer continuar tentando. Se está tentando dar mais autonomia para a gestão empresarial e a cooperativização do pequeno comércio, que, neste momento, é em grande medida controlada diretamente pelo Estado. No 1° de Agosto de 2009, o Parlamento votou uma lei geral de controle que submeterá todas as empresas a uma auditoria com a finalidade de aumentar a eficiência e reduzir a corrupção.
2. A diferença entre o trabalho, salário e poder de compra.
O segundo desafio fundamental tem a ver com as consequências do Período Especial. A economia teve um crescimento negativo de 35%. É difícil imaginar o que significa tal queda. Estatisticamente falando, nesse momento deve ter havido uma explosão. Outros países em tal situação econômica (ou mesmo com um retrocesso menor) estão freqüentemente envolvidos em guerras civis e, no melhor dos casos, com os protestos em massa, saques, anarquia, golpes de Estado ou queda do governo.
Cuba sobreviveu ao golpe e, em 15 anos, voltou ao nível que estava em 1989 (6). Para o desenvolvimento econômico significa um atraso de 15 anos, mas houve outros importantes efeitos permanentes. A produção agrícola se desfez em pedaços. Na década de oitenta, Cuba pertencia ao grupo dos países com maior produção agrícola mecanizada do mundo. Devido à falta de peças de reposição e de divisas, toda a maquinaria tornou-se inutilizável em pouco tempo. Bovinos vivos foram dizimados por falta de alimentação adequada para os animais e a enorme necessidade alimentícia da população.
Para a economia cubana em seu conjunto, esta situação foi muito grave. A partir de agora, o pequeno e vulnerável país em vias de desenvolvimento se viu exposto ao impacto do mercado global. Além disso, apenas teve tempo de se preparar para isso. A ilha perdeu suas relações comerciais vantajosas e teve que começar a pagar por suas importações em duras divisas. Também para seus produtos de exportação, naquela época sobretudo o açúcar e níquel, Cuba foi forçada a aceitar os preços do mercado flutuante do mundo.
Além disso, durante este período, os EUA reforçaram bastante o bloqueio econômico, graças às leis Torricelli (1992) e Helms-Burton (1996). A partir desse momento começaram a pressionar países terceiros para que deixassem de comercializar com Cuba ou para que retirassem seus investimentos. Cuba já não podia contar nem com a URSS para suas reivindicações.
Uma das piores consequências desta nova situação foi a queda da moeda nacional, o peso. Antes de 1989, um peso equivalia a um dólar. No mercado negro se podia trocar um dólar por sete pesos. No pior momento da crise, era preciso pagar 150 pesos para um dólar. Foi tomado todo tipo de medida, com o objetivo de reduzir essa diferença insustentável, ações que tiveram bastante êxito.
Foi possível eliminar o mercado negro e, a partir de 1996, o dólar custava entre 20 e 25 pesos. Esta foi uma grande melhoria em comparação com 1994, mas o valor da moeda ainda era três ou quatro vezes menor do que em 1989. Para poder dispor de todas as divisas disponíveis, o governo introduziu uma nova moeda, o CUC, cujo valor é ligeiramente superior ao valor do dólar.
Este duplo sistema de câmbio, contudo, não conseguiu evitar a criação de um fosso entre os cubanos que por algum motivo dispunham de divisas estrangeiras (60%) e os outros compatriotas. As consequências tanto para a ética do trabalho como para a estrutura de preços de consumo foram enormes. Da ética do trabalho já falamos em detalhe em outro artigo (7). Aqui nos concentramos nos preços do consumo.
O salário, pago em pesos, quase perdeu o seu valor em comparação com o dólar ou o CUC. Um cirurgião ou um professor universitário pode facilmente ganhar o dobro ou triplo trabalhando como motoristas de táxi ou no setor do turismo. Aqueles que se deslocam para Miami, que fica a apenas 200 km, podem multiplicar seu salário por 10 ou 20. Mas este não é o único problema.
Um cubano que somente dispõe de pesos tem que pagar preços exorbitantes por um par de sapatos, um pedaço de carne fora da oferta básica ou um microondas. Trabalhem o que trabalharem, o salário dessas pessoas não lhes servirá de muito. Em outras palavras, não há ligação direta entre o trabalho, o salário e poder de compra. Esta situação é muito ruim para a motivação do trabalho. Não faz nenhum sentido trabalhar bem e muito se com o que você ganha não pode comprar quase nada.
Por isso há um grande número de cubanos que desenvolvem atividades ilegais para obter alguns CUC extra. Mas, desta forma, entram numa dinâmica negativa. A motivação laboral é baixa e, portanto, o serviço prestado ou a qualidade da produção (em pesos) também baixa. Se você quer uma melhor qualidade ou um serviço melhor, isso se paga em CUC muito mais caro, ou diretamente se bisca no mercado negro. Mas só se você dispõe de CUC.
E assim se completa o ciclo e de generaliza o sistema de "resolver". Desta forma, Cuba corre o risco de que os trabalhadores sejam alienados do setor econômico. Já não se sentem responsáveis pelo produto final ou o serviço que prestam e se sentem, ainda, menos proprietários dos meios de produção.
Desta forma, se mina um dos pilares essenciais do socialismo e, eventualmente, a situação se torna insustentável. Temos de restabelecer a ligação entre trabalho, salário e poder de compra no curto prazo. Os salários devem variar de acordo com o trabalho realizado e os resultados.
A partir de 2008 o governo tomou várias medidas neste contexto, aumentando os salários dos professores, a introdução da remuneração variável por hora de trabalho ou a possibilidade de ter dois empregos. A partir do ano letivo de 2009-2010 também se permitem trabalhos estudantis. Mais e mais empresas estão ajustando o salário segundo a pontualidade, as horas trabalhadas, etc, do trabalhador. Estas medidas são um bom começo, mas não suficientes e não resolvem completamente o problema de hoje para amanhã.
Depois, há a relação entre os salários e o poder de compra. O sistema de preços para alguém de fora é muito estranho. Por exemplo, a fatura mensal de energia e de água custa tanto quanto duas cervejas no setor CUC. Porque os produtos básicos (como os serviços básicos) são altamente subsidiados, enquanto os demais produtos têm um preço relativamente elevado. Este sistema impede que nasça uma verdadeira lacuna entre ricos e pobres. Tem seu valor, mas há excessos e precisa de alguma correção.
Não pode um jeans ou sapatos valerem um salário mensal. É igualmente absurdo que algumas famílias não saibam o que fazer com suas cartilhas mensais de produtos básicos, como arroz ou açúcar. A porção é muito elevada e os salários muito baixos. Recentemente, foi dado um passo neste quadro. Acabaram com a comida de graça no trabalho, mas os salários subiram 15 pesos por dia. Em termos globais, temos de reorientar os subsídios: ao invés de subvencionar os bens, é preciso subvencionar as pessoas (frágeis). Esta é uma questão delicada, porque a tradição do subsídio alimentar está profundamente enraizada na sociedade cubana e é considerada uma grande conquista. Temos de organizar um processo muito lento e gradual de reorientação.
Para restabelecer a ligação entre o trabalho, os salários e o poder aquisitivo e resolver de verdade o estranho sistema de preços, é preciso realizar dois objetivos. De um lado, tem que baixar as importações e, do outro lado, tem que aumentar o valor das exportações. O efeito combinado irá fortalecer a moeda nacional, reduzindo assim a diferença entre os proprietários de pesos e de CUC. Também reduzirá os preços exorbitantes de alguns produtos.
O crescimento das exportações só faz sentido se Cuba se concentrar em setores que têm um valor agregado mais alto. Já falamos sobre isso antes. Quanto às importações, as razões para baixá-la o quanto for possível são muitos. Por si, o bloqueio econômico já faz com que as importações sejam caros. A débil posição da moeda nacional faz com que os produtos importados consumam a maior parte do orçamento nacional.
Também está em jogo o aspecto da segurança. Quanto menos dependa a ilha das importações, menos vulnerável será a possíveis agressões dos Estados Unidos. Um bom exemplo de substituição de importações é a construção de automóveis chineses na província de Havana. Esta substituição, porém, é uma questão muito complicada. Cuba tem mão de obra capacitada, gerentes e infra-estrutura para o desenvolvimento de novas indústrias, mas isto não é suficiente. Também são necessários investimentos significativos tanto em capital como em tecnologia.
Cuba já tem uma dívida externa bastante grande e o bloqueio é um impedimento significativo para conseguir a tecnologia necessária. Outra desvantagem para os cubanos é a escala reduzida. Montar linhas de produção para uma área de apenas 11 milhões de habitantes é muito mais caro do que para uma região de 50 milhões ou mais de 1 bilhão, como é o caso da China. Em todo caso, a história mostra que a substituição de importações não é uma varinha mágica. Foi a estratégia de desenvolvimento na América Latina nos anos 50 e 60, e na maioria dos países foi um fracasso total.
Para a substituição de importações, o setor mais importante em termos de segurança é a agricultura. Em 2008, Cuba importou mais de 80% dos seus alimentos. Ao mesmo tempo, desperdiçou metade das terras férteis da ilha. Alguns são deixadas em alqueive, outras simplesmente são comidas por ervas daninhas. Neste tópico, o governo cubano caminha de duas maneiras. Por um lado ataca a burocracia, descentralizando e dando mais autonomia aos produtores locais. Não se sabe ainda se esta abordagem vai dar bons resultados.
Por outro lado, são colocadas terras em alqueive a disposição dos cubanos que querem explorá-las. A renda que ganham supera o salário médio em outros setores. Esta fórmula foi bem sucedida. Houve mais solicitações que lugares disponíveis. No outono de 2009, já se voltou a fazer uso de 40% das terras em alqueive. Também não se sabe ainda se essa estratégia vai pagar. Você não pode esperar altos rendimentos a curto prazo de novos agricultores inexperientes. Na produção agrícola, a experiência vale ouro.
3. Rumo a um modelo diferente?
Quando Raúl Castro assumiu o lugar de seu irmão, a mídia ocidental previa uma grande mudança de rumo. Raul supostamente gostava mais do modelo chinês e do sistema de mercado. É claro que a mídia "esquece" que as decisões são tomadas coletivamente em Cuba e se submetem à população antes de serem aprovadas. Além disso, as alterações importantes em Cuba e em outros lugares têm mais a ver com o novo contexto e os novos desafios que surgem que com o aparecimento de um novo líder.
Portanto, qualquer mudança de rumo não dependerá tanto do temperamento ou das idéias do líder, como do resultado de um intenso processo de tomada de decisão coletiva. Parece que a mídia ocidental havia se esquecido de que na década de noventa, sob Fidel, foram tomadas decisões muito drásticas e enfocadas no mercado, também depois de extensas consultas com a população.
No entanto, a comparação com a China é interessante e instrutiva. Os dois países compartilham semelhanças importantes nas suas estratégias de desenvolvimento. Tanto na China como em Cuba a economia está dirigida pelas autoridades políticas. As áreas-chave estão nas mãos do Estado. O governo controla e gerencia o banco central e a política monetária. As principais diretrizes econômicas - quanto investir e em que setores - estão modeladas nos planos a longo prazo, de vários anos.
O Partido Comunista joga um papel importante no desenvolvimento local nos dois países. Também nas duas nações se dedica um orçamento relativamente elevado à educação e à infra-estrutura. Por fim, Cuba e China desenvolvem estreitas relações com outros países do Sul, com o objetivo de reforçar o desenvolvimento mútuo. Mas também devemos ter em mente que existem pelo menos seis pontos muito diferentes entre o caminho chinês e o cubano, que devem ser entendidos.
Para começar, o ponto de partida foi muito diferente para os dois países. Quando Deng Xiaoping começou as reformas no final dos anos setenta, a China tinha um atraso econômico significativo. A China tinha sido destruída por cem anos de ocupação e guerras civis. Durante o período de Mao (1949-1976), o crescimento econômico já era superior ao de outros países do Terceiro Mundo, mas o país se manteve como uma das regiões mais pobres do mundo. O PIB per capita se situava muito abaixo à média da Ásia e era, inclusive, duas vezes menor ao da África (8).
Nos países inimigos de sempre, Japão, Taiwan e Coréia do Sul, havia um crescimento enorme na época. Neste contexto, Deng lançou o slogan "O socialismo não é pobreza e ficar rico é glorioso". O princípio da igualdade foi sacrificado, temporariamente, para o desenvolvimento acelerado das forças produtivas, a partir das províncias do litoral. Em Cuba, a situação era muito diferente. Em 1959, Cuba se situava acima da média latino-americana. Neste contexto, se dava total prioridade ao desenvolvimento social e cultural.
Outro ponto de diferença está nas conclusões que as duas revoluções tiraram de seu próprio passado recente. Os primeiros 30 anos da revolução chinesa foram muito tumultuados. O grande salto adiante (1958-1960) e a Revolução Cultural (1966-1976) foram experiências traumáticas. Ocorreram sob a liderança da ala esquerda do Partido Comunista. Os chineses tiraram conclusões desses desastres.
As reformas desde 1978, provavelmente, foram uma reação (de direita) muito forte a esses acontecimentos. A primeira geração de revolucionários quis introduzir o comunismo muito rapidamente, pulando a fase histórica do capitalismo. Isso não foi possível porque a situação econômica e tecnológica não tinha amadurecido ainda. Este processo de amadurecimento é justamente o papel histórico do capitalismo.
Assim, foram introduzidos, no final dos anos setenta (temporariamente), elementos capitalistas que resultaram no desaparecimento de importantes princípios socialistas, como a propriedade coletiva dos meios de produção, a proibição do emprego privado - base para a exploração - e os serviços de saúde e educação gratuita. Deng dizia: "Não importa se o gato é branco ou preto, enquanto capture ratos".
Em Cuba, de certa forma, houve uma evolução no sentido inverso. Durante os anos setenta e início dos anos oitenta, elementos capitalistas foram introduzidas sob a influência da URSS. Isto levou a uma estagnação em meados dos anos oitenta. A campanha de retificação de 1986, que foi totalmente contra a perestroika de Gorbachov, tirou esses elementos capitalistas. O resultado foi que a revolução cubana permaneceu de pé, enquanto todos os países do Leste caíram um por um.
A lição era clara: para que a revolução sobreviva, temos que manter os princípios socialistas. Provavelmente, para Raul Castro ou seus sucessores, este foi o motivo mais importante para não escolher o caminho da China. Nas palavras de Raul: "Eu não fui eleito presidente para reintroduzir do capitalismo em Cuba, ou derrubar o socialismo. Fui eleito para defendê-lo, preservá-lo e melhorá-lo, não para destruí-lo."
Um terceiro ponto de diferença é a escala. Nas relações de força com as multinacionais, a escala joga muito a favor da China e muito contra Cuba. China tem um mercado de quase um quarto da população mundial, razão pela qual as corporações transnacionais estão na fila para poder investir. Cuba tem apenas 0,2% da população mundial e, portanto, não tem essa vantagem. Além disso, as grandes empresas chinesas, ao contrário dos cubanos, são grandes o suficiente para competir com empresas transnacionais.
Tomemos o exemplo da Bacardi. Os proprietários originais deste rum se opuseram à revolução cubana e tiraram seus capitais de Cuba, pouco depois de 1959, para continuar a produzir no exterior. Hoje, a Bacardi concorre diretamente com o rum cubano Havana Club, um produto de exportação importante para a ilha. As vendas da Bacardi quase igualam ao total das exportações de Cuba.
Um quarto ponto de diferença reforça ainda mais a desvantagem da escala que sofre Cuba: o bloqueio econômico. Washington e a CIA fazem todo o possível para impedir que países terceiros tenham relações comercias com Cuba, que inivstam na ilha ou concedam crédito. Isso também enfraquece a posição de negociação de Cuba com empresas estrangeiras e bancos. A China, pelo contrário, é o país que deu mais crédito aos EUA e, portanto, tem uma posição de poder muito forte em relação a Washington.
A quinta diferença é a diáspora. Desde a década de noventa, muito do investimento estrangeiro na China provinha do capital chinês situado, acima de tudo, na Ásia. A diáspora chinesa é muito fragmentada e é muito patriótica. Os cubanos com muito capital que estão fora do país são outra história. Eles são politicamente organizados e formam um lobby poderoso nos EUA. Junto com Washington, tudo que eles querem é a derrota da revolução. Foi assim que um funcionário da Bacardi foi responsável pela formulação, em 1996, da Lei Helms-Burton, que exacerbou ainda mais o bloqueio.
O sexto e último ponto de diferença é o contexto geopolítico. Para Cuba tem sido pouco favorável. Em um período de 30 anos, a pequena ilha perdeu duas vezes seus parceiros comerciais mais importantes. Teve que reorientar a sua economia completamente com muitas consequências desastrosas. Cuba não pôde tirar muito proveito da região, não pôde tirar proveito de uma tendência regional. O desenvolvimento econômico da América Latina foi muito lento e também as relações com os países da região eram pobres.
No plano econômico, mandavam as empresas estadunidenses e, no plano político e diplomático, os países da região sofriam uma grande pressão por parte dos EUA. Nos últimos dez anos melhoraram muito as relações com estes países, mas não há garantia de que as coisas sigam assim. O governo atual dos EUA gostaria de recuperar o terreno que perdeu nas duas administrações Bush. Também não há qualquer garantia de que seguirá a atual onda esquerdista na América Latina.
O contexto econômico chinês era e é muito mais favorável. Desde os anos cinquenta, a região conhece um regime cumulativo muito favorável. Com muitas empresas de alta tecnologia no Japão, que tem vínculos orgânicos com subcontratados nos países da região, países onde, por sua vez, sobrava a mão de obra barata. Grande parte da produção ia para os EUA e Europa.
Graças a esse clima favorável acumulado, houve um crescimento muito elevada no Leste e Sudeste da Ásia. A China pôde aproveitar esta situação, especialmente desde os anos oitenta. Nesta região, Washington teve muito menos influência do que na América Latina, pois não a considera o seu quintal. Finalmente, graças à sua dimensão, a China tem - e reforça ainda mais - uma posição forte em comparação com outros países da região.
Os últimos quatro pontos mostram claramente que o contexto econômico chinês não pode ser comparado com o cubano. A China é capaz de pôr exigências às empresas transnacionais. Cuba, pelo contrário, tem para oferecer um negócio muito atraente para atrair capital estrangeiro. Da atual fase da estratégia de desenvolvimento da China faz parte uma atração maciça de capital estrangeiro para adquirir tecnologia e capital como base para uma hiperexpansão das exportações. Para Cuba, este caminho não é possível.
A China pode se permitir uma economia muito aberta, pode deixar que jogue o mercado e pode dar espaço para jogadores estrangeiros no mercado doméstico, sem perder o controle sobre a economia. Em Cuba, é o oposto. Ali, o funcionamento do mercado possui um elevado potencial de desestabilização e é uma ameaça à soberania. Há pouca margem de manobra econômica, a regulamentação estrita do mercado é uma questão de sobrevivência.
Não mencionamos as diferenças essenciais entre os dois países para julgar, de maneira nenhuma, se o caminho chinês é correto ou não. Essa é outra discussão. Tentamos, sim, deixar claro que os caminhos diferentes que seguem estão, em grande parte, determinados pelas circunstâncias históricas e as opções escolhidas. Também queríamos mostrar que o que é melhor para um, não necessariamente se adequar ao outro. Uma das lições mais importantes que a história nos ensinou é que de nada serve um país copiar o rumo tomado por outro. É claro que podemos aprender com os erros e os pontos fortes de outros países e é necessário fazê-lo, mas cada um deve desenvolver-se de sua própria maneira, de acordo com as suas próprias condições internas e externas.
Em Cuba, podemos esperar toda uma série de reformas, já que o país se encontra ante desafios muito importantes. Mas isso não significa de forma alguma que Cuba tem que mudar de curso ou modelo, ou que esteja considerando isso. Isso significa, para colocar as palavras de Raúl, que se buscará um modelo "economicamente favorável" para a ilha e que assegure "a continuidade do sistema social e político do país".
(Agradeço a Alejandro Aguilar Trujillo, professor emérito da Universidade de Havana, por suas valiosas contribuições e comentários).
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