Fidel Castro durante a Segunda Declaração de Havana | Foto: Prensa Latina |
Por Sturt Silva
No dia 4 de fevereiro de 1962, mais de 1 milhão de cubanos se reuniram na Praça da Revolução na capital do país e aprovaram a Segunda Declaração de Havana após pronunciamento de Fidel Castro.
A Declaração foi uma resposta à expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) durante a reunião da OEA em Punta del Este, Uruguai, em 31 de janeiro daquele mesmo ano, devido à pressão de Washington, que estava tentando isolar a nascente Revolução.
O texto expressava a vontade inabalável de autodeterminação do povo cubano e seu objetivo de construir o socialismo, apesar das agressões dos EUA.
Foi aprovada quase dois anos depois da Primeira Declaração de Havana, grande reação pioneira da Revolução contra ações imperialistas e anterior da declaração do caráter socialista, ocorrida em 16 de abril de 1961.
No dia anterior, em 3 de fevereiro de 1962, o Presidente dos Estados Unidos - John F. Kennedy - assinou a Ordem Executiva 3447, que formalizou o bloqueio contra à ilha revolucionária.
Companheiros e companheiras da Segunda Assembleia Geral Nacional do Povo;
Se reúne pela segunda vez, com caráter de órgão soberano da vontade do povo cubano, essa Assembleia Geral no dia hoje, e se reúne para dar uma resposta completa à manobra, à conspiração, ao complô dos nossos inimigos em Punta del Este.
Em todo mundo estão de olho em nosso povo no dia de hoje. Os povos de todos os continentes estão esperando esta resposta da nossa pátria.
Então vamos destacar o mais importante que é a Segunda Declaração de Havana; nossa mensagem para o povos da América e do mundo.
A palavra de nosso povo nesse momento histórico, respaldado por este povo, respaldado por sua presença de tal maneira que nunca foi respaldada em América, por nenhuma palavra ou nenhuma mensagem.
Conosco se encontram numerosos latino-americanos que visitam nosso país ou participaram da Conferência dos Povos de Havana [aplausos]. Mas eles não devem ser só expectadores. Propusemos à Assembleia Geral do Povo que os latino-americanos tenha direito a votar junto com o povo de Cuba na Declaração de Havana.
Algum dia eles também poderão reunir seus povos, como nós fazemos hoje, e poderão expressar seus pensamentos tão livremente.
Preste atenção a cada palavra, a cada frase deste documento, desta segunda declaração que diz assim (e que propomos em nome das organizações unificadas revolucionárias e do governo revolucionário ao povo de Cuba) [aplausos]:
Do povo de Cuba aos povos da América e do mundo;
Às vésperas da sua morte, numa carta inacabada porque uma bala espanhola lhe atravessou o coração em 18 de maio de 1895, José Martí, apóstolo da nossa independência, escreveu a seu amigo Manuel Mercado:
“Já posso escrever… já estou todos os dias em perigo de dar a minha vida pelo meu país e pelo meu dever…, de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os Estados Unidos se estendam pelas Antilhas e caiam, com mais essa força, sobre as nossas terras da América. O que fiz até hoje, e farei, é para isso…
“As mesmas obrigações menores e públicas dos povos… mais vitalmente interessados em impedir que em Cuba se abra, pela anexação dos Imperialistas… o caminho que é preciso ser bloqueado, e com o nosso sangue já estamos bloqueando, da anexação dos povos da nossa América, ao Norte revolto e brutal que nos despreza – tinham-lhes impedido a adesão ostensiva e a ajuda patente a este sacrifício, que se faz pelo bem imediato e deles.
“Eu vivi dentro do monstro, e conheço as suas entranhas: – e a minha funda é a de Davi.”
Já Martí, em 1895, apontou para o perigo que pairava sobre a América e chamou o imperialismo pelo seu nome: Imperialismo. Advertiu os povos da América que eles estavam, mais do que ninguém, interessados que Cuba não sucumbisse à ganância ianque depreciadora dos povos latino-americanos.
E com o seu próprio sangue, derramado por Cuba e pela América, assinou as palavras póstumas que, em homenagem à sua memória, o povo de Cuba inscreve hoje no topo desta Declaração.
Passaram-se setenta e sete anos. Porto Rico foi transformada em colônia e é, ainda, uma colônia repleta de bases militares. Cuba também caiu nas guerras do imperialismo. As suas tropas ocuparam o nosso território. A Emenda Platt foi imposta à nossa primeira Constituição, como cláusula humilhante que consagrava o odioso direito de intervenção estrangeira. As nossas riquezas passaram às suas mãos, a nossa história foi falsificada, a nossa administração e a nossa política foi moldada, por inteiro, de acordo com os interesses dos intervencionistas; a nação foi submetida a setenta anos de asfixia política, econômica e cultural.
Mas Cuba se levantou, Cuba pôde se redimir da tutela desgraçada. Cuba rompeu as correntes que atavam o seu destino ao império opressor, resgatou as suas riquezas, reivindicou a sua cultura e hasteou a sua bandeira de Território e Povo Livre da América.
Agora os Estados Unidos não poderão mais cair sobre a América com a força de Cuba, mas, em contrapartida, dominando a maioria dos demais Estados da América Latina, os Estados Unidos pretendem cair sobre Cuba com a força da América.
O que é a história de Cuba senão a história da América Latina? E o que é a história da América Latina senão a história da Ásia, da África e da Oceania? E o que é a história de todos esses povos senão a história da exploração mais impiedosa e cruel do imperialismo em todo o mundo?
Nos finais do século passado e nos primórdios do presente, um punhado de nações economicamente desenvolvidas haviam terminado de dividir o mundo entre si, submetendo ao seu domínio econômico e político dois terços da humanidade, que, desta forma, se viu obrigada a trabalhar para as classes dominantes do grupo de países de economia capitalista desenvolvida.
As circunstâncias históricas que permitiram a certos países europeus e aos Estados Unidos da América do Norte um alto nível de desenvolvimento industrial os colocaram na posição de poder submeter o resto do mundo ao seu domínio e à sua exploração.
Que forças motrizes impulsionaram essa expansão das potências industrializadas? Foram razões de tipo moral, “civilizadoras”, como eles alegavam? Não: foram razões de tipo econômico.
Desde a descoberta da América, que lançou os conquistadores europeus através dos mares para ocupar e explorar as terras e os habitantes de outros continentes, a ânsia de riqueza foi a principal força motriz da sua conduta. A própria descoberta da América se realizou em busca de rotas mais curtas até o Oriente, cujas mercadorias eram altamente valiosas na Europa.
Uma nova classe social, os comerciantes e os produtores de artigos manufaturados para o comércio, surge no seio da sociedade feudal de senhores e servos no fim da Idade Média.
A sede por ouro foi a força que moveu os esforços dessa nova classe. Foi o desejo de lucro o incentivo da sua conduta ao longo da sua história. Com o desenvolvimento da indústria manufatureira e do comércio, foi crescendo a sua influência social. As novas forças produtivas que se desenvolviam no seio da sociedade feudal se chocavam cada vez mais com as relações de servidão próprias do feudalismo, as suas leis, as suas instituições, a sua filosofia, a sua moral, a sua arte e a sua ideologia política.
Novas ideias filosóficas e políticas, novos conceitos do direito e do Estado foram proclamados pelos representantes intelectuais da classe burguesa, os quais, por responderem às novas necessidades da vida social, pouco a pouco moldaram a consciência das massas exploradas. Eram, então, as ideias revolucionárias face às ideias caducas da sociedade feudal. Os camponeses, os artesãos e os trabalhadores das manufaturas derrubaram a ordem feudal, a sua filosofia, as suas ideias, as suas instituições, as suas leis e os privilégios da classe dominante, isto é, a nobreza hereditária.
Então, a burguesia considerava justa e necessária a revolução. Não pensava que a ordem feudal podia e devia ser eterna, como agora pensa da sua ordem social capitalista. Encorajava os camponeses a livrarem-se da servidão feudal, encorajava os artesãos contra as relações gremiais e reclamava o direito ao poder político. Os monarcas absolutos, a nobreza e o alto clero defendiam tenazmente os seus privilégios de classe, proclamando o direito divino da coroa e a intangibilidade da ordem social. Ser liberal, proclamar as ideias de Voltaire, Diderot, Jean-Jacques Rousseau, porta-vozes da filosofia burguesa, constituía, então, para as classes dominantes um delito tão grave como é hoje, para a burguesia, ser socialista e proclamar as ideias de Marx, Engels e Lênin.
Quando a burguesia conquistou o poder político e estabeleceu sobre as ruínas da sociedade feudal o seu modo capitalista de produção, sobre esse modo de produção ergueu o seu estado, as suas leis, as suas ideias e instituições. Essas instituições consagravam, em primeiro plano, a essência da sua dominação de classe: a propriedade privada. A nova sociedade, baseada na propriedade privada dos meios de produção e na livre concorrência, ficou assim dividida em duas classes fundamentais: uma possuidora dos meios de produção, cada vez mais modernos e eficientes; a outra, desprovida de toda a riqueza, possuidora apenas da sua força de trabalho, obrigada a vendê-la no mercado como mais uma mercadoria para poder sobreviver.
Rompidas as amarras do feudalismo, as forças produtivas se desenvolveram extraordinariamente. Surgiram as grandes fábricas, onde se acumulava um número cada vez maior de trabalhadores.
As fábricas mais modernas e tecnicamente eficientes iam tirando do mercado os competidores menos eficazes. O custo dos equipamentos industriais ficava cada vez maior; era necessário acumular somas cada vez mais altas de capital. Uma parte significativa da produção foi se acumulando em um número menor de mãos. Surgiram assim as grandes empresas capitalistas, e mais adiante as associações de grandes empresas através de cartéis, sindicatos, trustes e consórcios, segundo o grau e o caráter da associação, controlados pelos possuidores da maioria das ações, isto é, pelos mais poderosos cavalheiros da indústria.
A livre concorrência, característica do capitalismo na sua primeira fase, cedeu espaço aos monopólios que realizavam acordos entre si e controlavam os mercados.
De onde saíram as colossais somas de recursos que permitiram a um punhado de monopolistas acumular milhares de milhões de dólares? Simplesmente da exploração do trabalho humano. Milhões de homens obrigados a trabalhar por um salário de subsistência produziram com o seu esforço os gigantescos capitais dos monopólios. Os trabalhadores acumularam as fortunas das classes privilegiadas, cada vez mais ricas, cada vez mais poderosas. Por meio das instituições bancárias, chegaram a dispor não só do seu próprio dinheiro, mas também do dinheiro de toda a sociedade. Assim se produziu a fusão dos bancos com a grande indústria e nasceu o capital financeiro.
O que fazer, então, com os grandes excedentes de capital que, em quantidades maiores, ia se acumulando? Invadir o mundo com eles. Sempre em busca do lucro, começaram a se apoderar das riquezas naturais de todos os países economicamente débeis e a explorar o trabalho humano dos seus habitantes com salários muito mais miseráveis que os que se viam obrigados a pagar aos trabalhadores da própria metrópole. Iniciou-se assim a divisão territorial e econômica do mundo. Em 1914, oito ou dez países imperialistas haviam submetido ao seu domínio econômico e político além-fronteiras territórios cuja extensão chegava a 83.700.000 quilômetros quadrados, com uma população de novecentos e setenta milhões de habitantes. Simplesmente haviam repartido o mundo.
Mas como o mundo era limitado em extensão, já repartido até o último canto do globo, veio o choque entre os diferentes países monopolistas e surgiram as lutas por novas repartições, que tinham origem na distribuição não proporcional do poder industrial e econômico que os diferentes países monopolistas, em desenvolvimento desigual, haviam alcançado. Estouraram as guerras imperialistas que custariam à humanidade cinquenta milhões de mortos, dezenas de milhões de incapacitados e incalculáveis riquezas materiais e culturais destruídas. Ainda não havia acontecido isso quando Marx escreveu que “o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.
O sistema capitalista de produção, uma vez que deu tudo de si, se transformou num abismal obstáculo ao progresso da humanidade. Mas a burguesia, desde a sua origem, carregava em si o seu oposto. Em seu seio, gigantescos instrumentos produtivos foram desenvolvidos, mas, por sua vez, uma nova e vigorosa força social se desenvolveu: o proletariado, chamado a trocar o sistema social já velho e caduco do capitalismo por uma forma econômico-social superior e adequada às possibilidades históricas da sociedade humana, transformando em propriedade de toda a sociedade esses gigantescos meios de produção que os povos, e nada mais que os povos, com o seu trabalho, haviam criado e acumulado. Em tal grau de desenvolvimento das forças produtivas, se tornou caduco e anacrônico um regime que defendia a propriedade privada, e com ele a subordinação da economia de milhões e milhões de seres humanos aos ditames de uma pequena minoria social.
Os interesses da humanidade reclamavam a cessação da anarquia da produção, do desperdício, das crises econômicas e das guerras de rapina próprias do sistema capitalista. As crescentes necessidades da espécie humana e a possibilidade de satisfazê-las exigiam o desenvolvimento planejado da economia e a utilização racional dos seus meios de produção e recursos naturais.
Era inevitável que o imperialismo e o colonialismo entrassem numa crise profunda e intransponível. A crise geral se iniciou como resultado da Primeira Guerra Mundial, com a revolução dos trabalhadores e camponeses, que derrubou o império czarista da Rússia e implantou, em condições dificílimas de cerco e agressão capitalista, o primeiro Estado socialista do mundo, iniciando uma nova era na história da humanidade. Desde então, até os nossos dias, a crise e a decomposição do sistema imperialista se acentuaram incessantemente.
A Segunda Guerra Mundial, desencadeada pelas potências imperialistas, e que arrastou a União Soviética e outros povos da Europa e da Ásia, criminalmente invadidos, para uma sangrenta luta de libertação, culminou na derrota do fascismo, na formação do campo mundial do socialismo e na luta pela soberania dos povos coloniais e dependentes. Entre 1945 e 1957, mais de mil e duzentos milhões de seres humanos conquistaram a sua independência na Ásia e na África. O sangue derramado pelos povos não foi em vão.
O movimento dos povos dependentes e colonizados é um fenômeno de caráter universal que agita o mundo e marca a crise final do imperialismo.
Cuba e a América Latina fazem parte do mundo. Os nossos problemas fazem parte dos problemas que surgem da crise geral do imperialismo e da luta dos povos colonizados: o choque entre o mundo que nasce e o mundo que morre. A odiosa e brutal campanha desencadeada contra a nossa Pátria expressa o esforço desesperado e inútil que os imperialistas fazem para evitar a libertação dos povos.
Cuba fere os imperialistas de maneira especial. O que é que se esconde atrás do ódio ianque à Revolução Cubana? O que explica racionalmente a conspiração que reúne, sob o mesmo propósito agressivo, a potência imperialista mais rica e poderosa do mundo contemporâneo e as oligarquias de todo um continente, que juntas supõem representar uma população de trezentos e cinquenta milhões de seres humanos, contra um pequeno povo de apenas sete milhões de habitantes, economicamente subdesenvolvido, sem recursos financeiros nem militares para ameaçar nem a segurança nem a economia de nenhum país?
O que os une e o que os estimula é o medo. O que o explica é o medo. Não o medo da Revolução Cubana; o medo da revolução latino-americana. Não o medo dos trabalhadores, camponeses, estudantes, intelectuais e setores progressistas das camadas médias que tomaram, de modo revolucionário, o poder em Cuba; o medo que os trabalhadores, camponeses, estudantes, intelectuais e setores progressistas das camadas médias tomem, de modo revolucionário, o poder nos povos oprimidos, famintos e explorados pelos monopólios ianques e pela oligarquia reacionária da América; o medo que os povos saqueados do continente arrebatem as armas dos seus opressores e se declarem, como Cuba, povos livres da América.
Esmagando a Revolução Cuba, creem que vão dissipar o medo que os atormenta, e o fantasma da revolução que os ameaça. Liquidando a Revolução Cubana, creem que vão liquidar o espírito revolucionário dos povos. Acreditam, em seu delírio, que Cuba é exportadora de revoluções. Nas suas mentes de empresários e agiotas apavorados, existe a ideia de que as revoluções podem ser compradas ou vendidas, alugadas ou emprestadas, exportadas ou importadas como uma mercadoria qualquer.
Ignorantes em relação às leis objetivas que regem o desenvolvimento das sociedades humanas, acreditam que os seus regimes monopolistas, capitalistas e semifeudais são eternos. Educados na sua própria ideologia reacionária, uma mistura de superstição, ignorância, subjetivismo, pragmatismo e outras aberrações do pensamento, têm uma imagem do mundo e da marcha da história acomodada aos seus interesses de classes exploradoras. Supõem que as revoluções nascem ou morrem no cérebro dos indivíduos ou por efeito das leis divinas, e até que os deuses estão do seu lado. Eles sempre acreditaram no mesmo, desde os devotos pagãos patrícios na Roma escravista, que lançavam os cristão primitivos aos leões de circo e os inquisidores na Idade Média que, como guardiões do feudalismo e da monarquia absoluta, queimavam na fogueira os primeiros representantes do pensamento liberal da burguesia nascente, até os bispos que hoje, em defesa do regime burguês e monopolista, excomungam as revoluções proletárias. Todas as classes reacionárias em todas as épocas históricas, quando o antagonismo entre exploradores e explorados chegou à sua tensão máxima, anunciando o advento de um novo regime social, recorreram às piores armas de repressão e de calúnia contra os seus adversários. Acusados de incendiar Roma e de sacrificar crianças em seus altares, os cristãos primitivos foram levados ao martírio. Acusados de hereges, foram levados à fogueira, pelos inquisidores, filósofos como Giordano Bruno, reformadores como Huss e milhares de inconformados com a ordem feudal. Sobre os lutadores proletários se lançam hoje a perseguição e o crime, precedidos pelas piores calúnias na empresa monopolista e burguesa. Sempre, em cada época histórica, as classes dominantes assassinaram, invocando a sua sociedade de minorias privilegiadas sobre maiorias exploradas como a defesa da sociedade, da ordem, da Pátria: “sua ordem classista”, que mantêm a sangue e fogo sobre os despossuídos, “a pátria” de que desfrutam sozinhos, privando o resto do povo dessa fruição, para reprimir os revolucionários que aspiram a uma sociedade nova, uma ordem justa, uma Pátria verdadeira para todos.
Mas esse desenvolvimento da história, a marcha ascendente da humanidade não se detém nem pode ser detida. As forças que impulsionam os povos, que são os verdadeiros construtores da história, determinadas pelas condições materiais da sua existência e pela aspiração a metas superiores de bem-estar e de liberdade, que surgem quando o progresso do homem no campo da ciência, da técnica e da cultura o tornam possível, são superiores à vontade e ao terror de que lançam mão as oligarquias dominantes.
As condições subjetivas de cada país, isto é, os fatores da consciência, da organização e da direção, podem acelerar ou atrasar a revolução segundo o seu maior ou menor grau de desenvolvimento, mas cedo ou tarde, em cada época histórica, quando as condições objetivas amadurecem, a consciência é adquirida, a organização é alcançada, a direção surge e a revolução é produzida.
Que essa aconteça por vias pacíficas ou venha ao mundo depois de um parto doloroso, não depende das forças reacionárias da velha sociedade, que se recusam a deixar nascer a nova sociedade, que é engendrada pelas contradições que a velha sociedade carrega dentro de si. A revolução é, na história, como o médico que assiste o nascimento de uma nova vida. Não usa sem necessidade os dispositivos de força, mas os usa sem hesitações cada vez que for necessário para ajudar o parto. Parto que traz às massas escravizadas e exploradas a esperança de uma vida melhor.
Em muitos países da América Latina, a revolução é hoje inevitável. Esse fato não é determinado pela vontade de ninguém. Está determinado pelas espantosas condições de exploração em que vive o homem americano, o desenvolvimento da consciência revolucionária das massas, a crise mundial do imperialismo e o movimento universal da luta dos povos subjugados.
A inquietude que hoje se registra é sintoma inequívoco de rebelião. Agitam-se as entranhas de um continente que foi testemunha de quatro séculos de exploração escrava e feudal do homem, desde os seus habitantes nativos e os escravos trazidos da África até os núcleos nacionais que surgiram depois: brancos, negros, mulatos, mestiços e indígenas que hoje compartilham o desprezo, a humilhação e o jugo ianque, assim como compartilham a esperança de um amanhã melhor.
Os povos da América se libertaram do colonialismo espanhol no início do século passado, mas não se libertaram da exploração. Os proprietários de terras feudais assumiram a autoridade dos governantes espanhóis, indígenas seguiram em penosa servidão, o homem latino-americano, de uma forma ou de outra, continuou escravo, e as mínimas esperanças dos povos sucumbiram sob o poder das oligarquias e a correia do capital estrangeiro. Esta foi a realidade da América, com uma ou outra nuance, com uma ou outra variável. Hoje a América Latina se encontra sob um imperialismo mais feroz, muito mais poderoso e mais impiedoso que o império colonial espanhol.
E diante da realidade objetiva e historicamente inexorável da revolução latino-americana, qual é a atitude do imperialismo ianque? Preparar-se para travar uma guerra colonial com os povos da América Latina; criar o seu aparato de força, os pretextos políticos e os instrumentos pseudo-legais assinados com os representantes das oligarquias reacionárias para reprimir a sangue e fogo a luta dos povos latino-americanos.
A intervenção do Governo dos Estados Unidos na política interna dos países da América Latina tem vindo a ser cada vez mais aberta e desenfreada.
A Junta Interamericana de Defesa, por exemplo, foi e é o ninho onde se incubam os oficiais mais reacionários e pró-ianques dos exércitos latino-americanos, utilizados depois como instrumentos golpistas ao serviço dos monopólios.
As missões militares norte-americanas na América Latina constituem um aparato de espionagem permanente em cada nação, vinculado estreitamente à Agência Central de Inteligência, inculcando nos oficiais os sentimentos mais reacionários e tratando de converter os exércitos em instrumentos dos seus interesses políticos e econômicos.
Atualmente, na região do Canal do Panamá, o alto comando norte-americano organizou cursos especiais de treinamento para oficiais latino-americanos da luta contra guerrilhas revolucionárias, dirigidos a reprimir a ação armada das massas camponesas contra a exploração feudal a que estão submetidas.
Nos próprios Estados Unidos, a Agência Central de Inteligência organizou escolas especiais para treinar agentes latino-americanos nas formas mais sutis de assassinatos; e é política acordada pelos serviços militares ianques a liquidação física dos dirigentes antiimperialistas.
É notório que as embaixadas ianques em diferentes países da América Latina estejam organizando, instruindo e equipando grupos fascistas para semear o terror e agredir as organizações dos trabalhadores, estudantes e intelectuais. Esses grupos, que recrutam os filhos da oligarquia, o lumpen e gente da pior estirpe moral, perpetraram uma série de atos agressivos contra os movimentos de massas.
Nada mais evidente e inequívoco dos propósitos do imperialismo que a sua conduta nos eventos recentes em Santo Domingo. Sem nenhum tipo de justificativa, sem mediar sequer as relações diplomáticas com essa República, os Estados Unidos, depois de posicionarem os seus navios de guerra em frente à capital dominicana, declararam com a sua habitual insolência que se o Governo de Balaguer solicitasse ajuda militar, desembarcariam as suas tropas em Santo Domingo contra a insurgência do povo dominicano. Que o poder de Balaguer era absolutamente ilegítimo, que cada povo soberano da América deve ter direito a resolver os seus problemas internos sem intervenção estrangeira, que existem normas internacionais e uma opinião mundial, que, aliás, existe uma O.E.A. – nada disso contava para as considerações dos Estados Unidos. O que contavam eram os seus planos de impedir a revolução dominicana, a reimplantação dos odiosos desembarques da sua infantaria naval, sem nenhuma base ou requisito para fundamentar esse novo conceito de obstrução da lei a não ser a mera solicitação de um governante tirânico, ilegítimo e em crise. O significado disso não pode escapar aos povos. Na América Latina sobram os governantes desse tipo, dispostos a utilizar as tropas ianques contra os seus respectivos povos quando se virem em crise.
Esta política declarada do imperialismo norte-americano de enviar soldados para combater o movimento revolucionário em qualquer país da América Latina, isto é, matar trabalhadores, estudantes, camponeses, homens e mulheres latino-americanas, não tem outro objetivo que não manter os seus interesses monopolistas e os privilégios da oligarquia traidora que os apoia.
Agora é possível ver, com toda a clareza, que os pactos militares assinados pelo governo dos Estados Unidos com governos latino-americanos, muitas vezes secretos e sempre pelas costas dos povos, invocando hipotéticos perigos externos que ninguém nunca viu em lugar nenhum, tinham o único e exclusivo objetivo de prevenir a luta dos povos; eram pactos contra os povos, contra o único perigo, o perigo interior do movimento de libertação que poria em risco os interesses ianques. Não sem razão os povos se perguntavam: Por que tantas convenções militares? Para que os envios de armas que, se tecnicamente são inadequadas para uma guerra moderna, são, por outro lado, eficazes para esmagar greves, reprimir manifestações populares e manchar de sangue o país? Para que as missões militares, o Tratado do Rio de Janeiro e as mil e uma conferências internacionais?
Desde que culminou a Segunda Guerra Mundial, as nações da América Latina foram empobrecendo cada vez mais, as suas exportações têm cada vez menos valor, as suas importações preços mais altos, a renda per capita diminui, as pavorosas porcentagens de mortalidade infantil não decrescem, o número de analfabetos aumentou, os povos carecem de trabalho, de terras, de moradias adequadas, de escolas, de hospitais, de vias de comunicação e de meios de subsistência. Em contrapartida, os investimentos norte-americanos ultrapassam os dez mil milhões de dólares.
A América Latina é, também, fornecedora de matérias-primas baratas e compradora de produtos transformados caros. Como os primeiros conquistadores espanhóis, que trocavam com os indígenas espelhos e bugigangas por ouro e prata, assim comerciam com a América Latina os Estados Unidos. Conservar essa torrente de riqueza, se apoderar cada vez mais dos recursos da América e explorar os seus povos sofridos: é isso que se escondia atrás dos pactos e das missões militares e dos conselhos diplomáticos de Washington.
Esta política de estrangulamento paulatino da soberania das nações latino-americanas e de mãos livres para intervir em seus assuntos internos teve o seu ponto culminante na última reunião de chanceleres. Em Punta del Este o imperialismo ianque reuniu os chanceleres para lhes arrancar, mediante pressão política e chantagem econômica sem precedentes, com a cumplicidade de um grupo dos mais desprestigiados governantes deste continente, a renúncia à soberania nacional dos nossos povos e a consagração do odiado direito de intervenção ianque nos assuntos internos da América; a submissão dos povos à vontade absoluta dos Estados Unidos da América do Norte, contra a qual lutaram todos os heróis, de Bolívar a Sandino.
E não se ocultaram nem o Governo dos Estados Unidos, nem os representantes das oligarquias exploradoras, nem a grande imprensa reacionária, vendida aos monopólios e aos senhores feudais, para exigir abertamente acordos que equivalem à supressão formal do direito de autodeterminação dos nossos povos; apagá-lo, com um golpe de caneta, na conspiração mais infame de que este continente tem memória.
A portas fechadas, em meio a uma camarilha nojenta, onde o ministro das colônias ianque dedicou dias inteiros a superar a resistência e os escrúpulos de alguns chanceleres colocando em jogo os milhões do Tesouro ianque, numa indissimulável compra de votos, um punhado de representantes das oligarquias de países que, juntos, somam apenas um terço da população do continente, impôs acordos que servem em bandeja de prata ao amo ianque a cabeça de um princípio que custou todo o sangue dos nossos povos desde as guerras de independência. O caráter pírrico de tão tristes e fraudulentas conquistas do imperialismo, o seu fracasso moral, a unanimidade quebrada e o escândalo universal não diminuem a gravidade, para os povos da América Latina, dos acordos que impuseram a esse preço. Naquele conclave imoral, a voz titânica de Cuba se ergueu sem fraqueza nem medo para acusar, diante de todos os povos da América e do mundo, o monstruoso atentado e defender virilmente e com dignidade que ficará registrada na história não só o direito de Cuba, mas também o direito desamparado de todas as nações irmãs do continente americano.
A palavra de Cuba não poderia ter eco naquele maioria domesticada, mas tampouco poderia ter resposta; só havia espaço para um silêncio impotente face aos seus argumentos demolidores, a limpidez e a valentia das suas palavras. Mas Cuba não falou para os chanceleres; Cuba falou para os povos e para a história, onde as suas palavras terão eco e resposta.
Em Punta del Este se travou uma grande batalha ideológica entre a Revolução Cubana e o imperialismo ianque. O que representavam ali, por quem falou cada um deles? Cuba representou os povos; os Estados Unidos representou os monopólios. Cuba falou pelas massas exploradas da América; os Estados Unidos, pelos interesses oligárquicos exploradores e imperialistas. Cuba, pela soberania; os Estados Unidos, pela intervenção. Cuba, pela nacionalização das empresas estrangeiras; os Estados Unidos, por novos investimentos de capital estrangeiro. Cuba, pela cultura; os Estados Unidos, pela ignorância. Cuba, pela reforma agrária; os Estados Unidos, pelo latifúndio. Cuba, pela industrialização da América; os Estados Unidos, pelo subdesenvolvimento. Cuba, pelo trabalho criador; os Estados Unidos, pela sabotagem e pelo terror contrarrevolucionário que praticam os seus agentes, pela destruição de campos de cana e fábricas, pelos bombardeios dos seus aviões piratas contra o trabalho de um povo pacífico. Cuba, pelos professores de alfabetização assassinados; os Estados Unidos, pelos assassinos. Cuba, pelo pão; os Estados Unidos, pela fome. Cuba, pela igualdade; os Estados Unidos, pelo privilégio e pela discriminação. Cuba, pela verdade; os Estados Unidos, pela mentira. Cuba, pela libertação; os Estados Unidos, pela opressão. Cuba, pelo futuro brilhante da humanidade; os Estados Unidos, pelo passado sem esperança. Cuba, pelos heróis que caíram em Girón para salvar a Pátria do domínio estrangeiro; os Estados Unidos, pelos mercenários e traidores que servem ao estrangeiro contra a sua Pátria. Cuba, pela paz entre os povos; os Estados Unidos, pela agressão e pela guerra. Cuba, pelo socialismo; os Estados Unidos, pelo capitalismo.
Os acordos obtidos pelos Estados Unidos, por métodos tão vergonhosos que o mundo inteiro critica, não tiram, antes acrescentam o moral e a razão de Cuba, demonstram o entreguismo e a traição das oligarquias aos interesses nacionais e ensina aos povos o caminho da libertação. Revela a podridão das classes exploradoras, em cujo nome falaram os seus representantes em Punta del Este. A O.E.A. foi desmascarada pelo que é: um ministério de colônias ianques, uma aliança militar, um aparato de repressão contra o movimento de libertação dos povos latino-americanos.
Cuba viveu três anos de Revolução sob incessante assédio de intervenção ianque nos nossos assuntos internos. Aviões piratas vindos dos Estados Unidos lançando materiais inflamáveis queimaram milhões de arrobas de cana; atos de sabotagem internacional perpetrados por agentes ianques, como a explosão do navio “La Coubre”, custou dezenas de vidas cubanas; milhares de armas norte-americanas de todos os tipos foram lançadas em paraquedas pelos serviços militares dos Estados Unidos sobre o nosso território para promover a subversão; centenas de toneladas de materiais explosivos e máquinas infernais foram desembarcadas sorrateiramente nas nossas costas por barcos norte-americanos para promover a sabotagem e o terrorismo; um trabalhador cubano foi torturado na Base Naval de Guantánamo e privado da sua vida sem processo prévio nem qualquer explicação subsequente; a nossa cota de açúcar foi suprimida abruptamente e foi proclamado o embargo de peças e matérias-primas para fábricas e maquinaria de construção norte-americana para arruinar a nossa economia; navios de guerra e aviões de bombardeio procedentes de bases preparadas pelo Governo dos Estados Unidos atacaram de surpresa postos e instalações cubanas; tropas mercenárias organizadas e treinadas em países da América Central pelo próprio Governo invadiram o nosso território em tom de guerra, escoltados por barcos da frota ianque, e com apoio aéreo de bases externas, provocando a perda de numerosas vidas e a destruição de bens materiais; contrarrevolucionários cubanos são instruídos no exército dos Estados Unidos e novos planos de agressão se realizam contra Cuba. Tudo isso tem ocorrido há três anos, incessantemente, à vista de todo o continente, e a O.E.A. não se inteira. Os chanceleres se reúnem em Punta del Este e nem sequer questionam o Governo dos Estados Unidos, nem os governos que são cúmplices materiais dessas agressões. Expulsam Cuba, o país latino-americano vítima, o país agredido.
Os Estados Unidos têm pactos militares com países de todos os continentes; blocos militares com qualquer governo fascista, militarista e reacionário que haja no mundo; a OTAN, a SEATO e a CENTO, às quais devemos agora acrescentar a OEA, intervêm em Laos, no Vietnã, na Coreia, em Formosa, em Berlim; envia abertamente barcos a Santo Domingo para impor a sua lei, a sua vontade e anuncia o seu propósito de usar os seus aliados da OTAN para bloquear o comércio com Cuba; e a OEA não se inteira… Reúnem-se os chanceleres e expulsam Cuba, que não tem pactos militares com nenhum país. Assim, o Governo que organiza a subversão em todo o mundo e forja alianças militares em quatro continentes expulsa Cuba, acusando-a de nada mais, nada menos que subversão e laços extracontinentais.
Cuba, o país latino-americano que transformou em donos das terras mais de cem mil pequenos agricultores, assegurando emprego todo ano, em fazendas e cooperativas, a todos os trabalhadores agrícolas, que transformou os quartéis em escolas, que concedeu sessenta mil bolsas a estudantes universitários, secundaristas e da tecnologia, que criou salas de aula para toda a população infantil, que eliminou completamente o analfabetismo, que quadruplicou os serviços médicos, que nacionalizou empresas monopolistas, que aboliu o sistema que fazia da habitação um meio de exploração do povo, que praticamente acabou com o desemprego, que suprimiu a discriminação por motivos de raça ou sexo, que varreu a jogatina, o vício e a corrupção administrativa, que armou o povo, que tornou o gozo dos direitos humanos uma realidade ao livrar o homem e a mulher da exploração, ignorância e desigualdade social, que se libertou de toda tutela estrangeira, que adquiriu plena soberania e estabeleceu as bases para o desenvolvimento da sua economia a fim de deixar de ser um país monoprodutor e exportador de matérias-primas, é expulsa da Organização dos Estados Americanos por governos que não alcançaram, para os seus povos, nem uma destas reivindicações. Como poderão justificar a sua conduta perante os povos da América e do mundo? Como poderão negar que, na sua concepção, a política de terra, pão, trabalho, saúde, liberdade, igualdade, cultura, desenvolvimento acelerado da economia, dignidade nacional, de autodeterminação e soberania plenas é incompatível com o hemisfério?
Os povos pensam muito diferente, os povos pensam que a única coisa compatível com o destino da América Latina é a miséria, a exploração feudal, o analfabetismo, os salários de fome, o desemprego, a política de repressão contra as massas trabalhadoras, camponesas e estudantis, a discriminação da mulher, do negro, do indígena, do mestiço, a opressão das oligarquias, o saque das suas riquezas por monopólios ianques, as asfixia moral dos seus intelectuais e artistas, a ruína dos seus pequenos produtores pela concorrência estrangeira, o subdesenvolvimento econômico, os povos sem estradas, sem hospitais, sem moradias, sem escolas, sem indústrias, a submissão ao imperialismo, a renúncia à soberania nacional e a traição à Pátria.
Como os imperialistas poderão fazer entender a sua conduta, a sua atitude condenatória para com Cuba; com que palavras e com que sentimentos vão falar a quem ignoraram, ainda que tenham explorado, por tanto tempo?
Quem estuda os problemas da América costuma perguntar que país, quem abordou com corretamente a questão dos dirigentes, dos pobres, dos indígenas, dos negros, da infância desvalida, essa imensa infância de trinta milhões em 1950 (que será de cinquenta milhões em oito anos), sim, quem, que país?
Trinta e dois milhões de indígenas formam a espinha dorsal – tal qual a Cordilheira dos Andes – de todo o continente americano. Claro que para quem os consideraram quase como coisas, em vez de pessoas, essa humanidade não conta, não contava e acreditavam que nunca contaria. Como supunham ser, entretanto, uma força de trabalho cega, que devia ser usada, como se usa uma junta de bois ou um trator.
Como é possível acreditar em algum benefício de uma Aliança para o Progresso com o imperialismo, sob que juramento, se sob a sua santa proteção, as suas matanças e as suas perseguições ainda vivem os indígenas do sul do continente, como os da Patagônia, em tendas, como viviam os seus antepassados quando da chegada dos descobridores, há quase quinhentos anos? Onde as grandes raças que povoaram o norte argentino, o Paraguai e a Bolívia, como os guaranis, que foram dizimados ferozmente, como quem caça animais, e a quem enterraram nos interiores das selvas? Onde essa reserva indígena, que pôde servir de base a uma grande civilização americana – e cuja extinção se aproxima rapidamente – e que foi empurrada América adentro através dos estuários paraguaios e das montanhas bolivianas, raças tristes, rudimentares, raças melancólicas, brutalizadas pelo álcool e pelos narcóticos, aos quais acorrem para pelo menos sobreviver nas condições subumanas (não só alimentares) em que vivem? Onde uma cadeia de mãos se estende – quase inutilmente – sobre os cumes da cordilheira, suas saias, ao longo dos grandes rios e por entre as sombras das florestas para unir as suas misérias com os demais que perecem lentamente, as tribos brasileiras e as do norte do continente e suas costas, até alcançar os motilones da Venezuela, no mais incrível atraso e selvagemente confinados nas selvas amazônicas ou na Serra de Perijá, os solitários vapichanas, que nas terras quentes das Guianas esperam o seu fim, já quase definitivamente perdidos para o destino humano? Sim, todos esses trinta e dois milhões de indígenas que se estendem desde a fronteira com os Estados Unidos até os confins do Hemisfério Sul e quarenta e cinco milhões de mestiços, que em grande parte pouco diferem dos indígenas; todos esses indígenas, essa formidável riqueza de trabalho, de direitos pisoteados, sim, o que o imperialismo lhes tem a oferecer? Como poderão esses ignorados acreditar em algum benefício que venha de mãos tão sangrentas? Tribos inteiras que ainda vivem nuas; outras que se supõe serem antropófagas; outras que no seu primeiro contato com a civilização conquistadora morrem como insetos; outras que são desterradas, isto é, são expulsas das suas terras, empurradas até serem jogadas nas florestas, ou nas montanhas, ou nas planícies onde não chega nem o menor átomo de cultura, de luz, de pão, nem de nada.
Em que “aliança” – que não seja uma que acelere a sua morte – vão acreditar essas raças indígenas, maltratadas por séculos, mortas à bala para terem as suas terras ocupadas, mortas à paulada, aos milhares, por não trabalharem mais rápido nos seus serviços de exploração pelo imperialismo?
E aos negros? Que “aliança” o sistema dos linchamentos e da preterição brutal a que está submetido o negro dos Estados Unidos pode oferecer aos quinze milhões de negros e catorze milhões de mulatos latino-americanos que sabem, com horror e raiva, que os seus irmãos do norte não podem andar nos mesmos veículos que os seus compatriotas brancos, nem frequentar as mesmas escolas, nem sequer morrer nos mesmos hospitais?
Como é que esses núcleos étnicos rejeitados vão acreditar neste imperialismo, nos seus benefícios, nas suas “alianças” (que não sejam para linchá-los ou explorá-los como escravos)?
Essas massas, que não puderam gozar, nem comedidamente, de nenhum benefício cultural, social ou profissional, que mesmo onde são maioria, ou milhões, são maltratados pelos imperialistas fantasiados de Ku Klux Klan; são jogados nos bairros mais insalubres, nas casas coletivas menos confortáveis, feitas para eles, empurrados para os trabalhos mais indignos, para os trabalhos mais árduos e para as profissões menos lucrativas, que não envolvam contato com as universidades, grandes academias ou escolas particulares.
Que Aliança para o Progresso pode servir de estímulo a esses cento e sete milhões de homens e mulheres da nossa América, medula do trabalho nas cidades e nos campos, cuja pele escura – negra, mestiça, mulata, indígena – inspira desprezo nos novos colonizadores? Como vão confiar na suposta “aliança” aqueles que, no Panamá, viram, com impotência mal contida, que há um salário para o ianque e outro salário para o panamenho, que eles consideram uma raça inferior?
O que podem esperar os trabalhadores, com os seus salários de fome, os trabalhos mais duros, com as condições mais miseráveis, a desnutrição, as doenças e todos os males que a miséria germina?
O que podem dizer, que palavras, que benefícios poderão os imperialistas oferecer aos mineiros de cobre, de estanho, de ferro, de carvão, que deixam os seus pulmões à mercê dos patrões distantes e impiedosos; aos pais e filhos das madeireiras, dos seringais, das pastagens, dos pomares, dos engenhos de café e de açúcar, dos peões nos pampas e nas planícies, que acumulam, com a sua saúde e com as suas vidas, as fortunas dos exploradores? O que poderão esperar estas vastas massas, que produzem as riquezas, que criam os valores, que ajudam a dar à luz um mundo novo em todas as partes, o que podem elas esperar do imperialismo, essa boca insaciável, essa mão insaciável, que não apresenta outro horizonte imediato senão a miséria, o desamparo mais absoluto, a morte fria e sem história no fim?
O que pode esperar esta classe, que mudou o rumo da história em outras partes do mundo, que revolucionou o mundo, que é vanguarda de todos os humildes e explorados, o que pode esperar do imperialismo, o seu inimigo mais irreconciliável?
O que pode oferecer o imperialismo, que tipo de benefício, que tipo de vida melhor e mais justa, que motivação, que incentivo, que interesse a ser satisfeito, no sentido de superar a situação sensível e primária dos mestres, professores, profissionais, intelectuais, poetas e artistas; dos que cuidam zelosamente das gerações de crianças e jovens, para depois o imperialismo se vingar deles; daqueles que vivem com salários humilhantes na maioria dos países; dos que sofrem com as limitações à sua expressão política e social em quase toda parte; que não ultrapassam, com as suas possibilidades econômicas, mais que a simples linha dos seus precários recursos e reparações, enterrados numa vida cinzenta e sem horizontes que acaba com uma aposentadoria que não cobre metade dos seus gastos? Que “benefícios” ou “alianças” poderá oferecer o imperialismo senão as que visem o seu próprio e total benefício? Se cria fontes de ajuda às suas profissões, às suas artes, às suas publicações, é sempre com o entendimento de que as suas produções deverão refletir os seus interesses, os seus objetivos, os seus “nadas”.
Os romances que procurem refletir a realidade do mundo, das suas aventuras predatórias; os poemas que queiram protestar contra o seu avassalamento, a sua ingerência na vida, na mente, nas vísceras dos seus países e povos; as artes combativas, que procurem captar, nas suas expressões, as formas e o conteúdo da sua agressão e constante pressão sobre tudo o que vive e estimula, progressivamente, tudo o que é revolucionário; o que ensina; o que trata de guiar, cheio de luz e de consciência, de clareza e de beleza, os homens e os povos a destinos melhores, em direção aos mais altos picos do pensamento, da vida e da justiça encontra a mais feroz censura do imperialismo; encontra o cerceamento, a condenação, a perseguição macartista. As suas imprensas são encerradas; o seu nome é apagado das colunas e se lhes aplica a campa do silêncio mais perversa…, é, então – mais uma contradição do imperialismo –, quando o escritor, o poeta, o pintor, o escultor, o criador e o cientista começam a viver verdadeiramente, na língua do povo, no coração de milhões de homens no mundo. O imperialismo tudo distorce, deforma, canaliza pelas suas vertentes para o seu proveito, para a multiplicação do seu dólar; comprando palavras ou quadros, ou a mudez, ou transformando em silêncio a expressão de revolucionários, homens progressistas, dos que lutam pelo povo e seus problemas.
Não podíamos esquecer, neste triste panorama, a infância desvalida, negligenciada; a infância sem futuro da América. A América, que é um continente de natalidade elevada, tem, também, uma mortalidade elevada. A mortalidade de crianças com menos de um ano, em onze países, chegava, faz poucos anos, a cento e vinte e cinco em cada mil, e em outros dezessete, a noventa crianças. Em cento e dois países do mundo, em contrapartida, essa taxa chega aos cinquenta e um. Na América, bem, morrem tristemente, sem amparos, setenta e quatro crianças em cada mil, no primeiro ano do seu nascimento. Há países latino-americanos em que essa taxa chega, em alguns lugares, aos trezentos em cada mil; milhares e milhares de crianças, até os sete anos, morrem na América de enfermidades incríveis: diarreias, pneumonias, desnutrição, fome; milhares e milhares, de outras enfermidades, sem receberem atenção nos hospitais, sem remédios; milhares e milhares deambulam, feridas pelo cretinismo endêmico, a malária, o tracoma e outros males produzidos pelas contaminações, pela falta de água e por outras necessidades. Males desta natureza são uma corrente nos países americanos onde agonizam milhares e milhares de crianças, filhos de marginalizados, filhos de pobres e de pequeno-burgueses de vida difícil e meios precários.
Os dados, que serão redundantes, são de dar calafrios. Qualquer publicação oficial dos organismos internacionais os reúnem às centenas.
Em termos educativos, é ultrajante pensar no nível de ignorância de que padece esta América. Enquanto os Estados Unidos alcançam um nível de oito e nove anos de escolaridade para a população de quinze anos ou mais, a América Latina, saqueada e defraudada por eles, conta com menos de um ano de escolaridade para essas mesmas idades. E revolta ainda mais quando sabemos que, das crianças entre os cinco e os catorze anos, só estão matriculadas, em alguns países, 20%, e, nos de nível mais alto, 60%. Isto é, mais da metade da infância da América Latina não vai para a escola. Mas a dor continua crescendo quando verificamos que a matrícula nos três primeiros anos compreende 80% dos matriculados; e que no sexto ano a matrícula flutua entre apenas seis e vinte e dois alunos em cada cem que começaram no primeiro. Até nos países que creem ter cuidado da sua infância, essa porcentagem de abandono escolar entre o primeiro e o sexto ano é, em média, de 73%. Em Cuba, antes da Revolução, era de 74%. Na Colômbia da “democracia representativa” é de 78%. E se você olha para o campo, somente 1% das crianças atinge, na melhor das hipóteses, o quinto ano de escolaridade.
Quando se investiga esse desastre do absentismo escolar, uma causa o explica: a economia de miséria. Falta de escolas, falta de professores, falta de recursos familiares, trabalho infantil. Em suma, o imperialismo e a sua obra de opressão e de atraso.
O resumo desse pesadelo que a América viveu, de um extremo ao outro, é que neste continente de quase duzentos milhões de seres humanos, formado, em dois terços, pelos indígenas, mestiços e negros, pelos “discriminados”, neste continente de semicolônias, morrem de fome, de doenças curáveis ou de velhice prematura por volta de quatro pessoas por minuto, de cinco mil e quinhentas por dia, de dois milhões por ano, de dez milhões a cada cinco anos. Essas mortes poderiam ser evitadas facilmente, mas acontecem mesmo assim. Dois terços da população latino-americana vivem pouco, e vivem sob permanente ameaça de morte. Holocausto de vidas que, em quinze anos, causou duas vezes mais mortes que a guerra de 1914, e continua… Enquanto isso, flui, da América Latina para os Estados Unidos, uma torrente contínua de dinheiro: cerca de quatro mil dólares por minuto, cinco milhões por dia, dois mil milhões por ano, dez mil milhões a cada cinco anos. Para cada mil dólares que perdemos, ganhamos um morto. Mil dólares por morto: esse é o preço do que se chama imperialismo! MIL DÓLARES POR MORTO, QUATRO VEZES POR MINUTO!
Mas, apesar desta realidade americana, para que se reuniram em Punta del Este? Para trazer uma gota que fosse de alívio para esses males? Não!
Os povos sabem que em Punta del Este os chanceleres que expulsaram Cuba se reuniram para renunciar à soberania nacional; que ali o Governo dos Estados Unidos lançou as bases não só para a agressão contra Cuba, mas também para intervir em qualquer país da América contra o movimento libertador dos povos; que os Estados Unidos preparam para a América Latina um drama sangrento; que as oligarquias exploradoras, assim como agora renunciam ao princípio da soberania, não hesitarão em solicitar a intervenção das tropas ianques contra os seus próprios povos e que, para este fim, a delegação norte-americana propôs um comitê de vigilância contra a subversão na Junta Intermaericana de Defesa, com poderes executivos, e a adoção de medidas coletivas. A subversão para os imperialistas ianques é a luta dos povos famintos pelo pão, a luta dos camponeses pela terra, a luta dos povos contra a exploração imperialista. O comitê de vigilância na Junta Interamericana de Defesa com poderes executivos significa força de repressão continental contra os povos sob as ordens do Pentágono. Medidas coletivas significam desembarques da infantaria da marinha ianque em qualquer país da América.
Perante a acusação de que Cuba deseja exportar a sua revolução, respondemos: as revoluções não são exportadas, são feitas pelos povos.
O que Cuba pode dar aos povos, e já deu, é o seu exemplo.
E o que a Revolução Cubana ensina? Que a revolução é possível, que os povos podem fazê-la, que no mundo contemporâneo não há forças capazes de impedir o movimento de libertação dos povos.
O nosso triunfo jamais teria sido possível se a própria revolução não estivesse destinada, inexoravelmente, a emergir das condições existentes na nossa realidade socioeconômica, realidade que existe num grau ainda maior em um bom número de países da América Latina.
Acontece que, inevitavelmente, em nações onde o controle dos monopólios ianques é mais forte, a exploração da oligarquia é mais impiedosa, a situação das massas trabalhadoras e camponesas é mais insuportável, mais ferrenho se mostra o poder político, os estados de sítio se tornam habituais, é reprimida pela força qualquer manifestação de descontentamento das massas e o sistema democrático se fecha por completo, revelando com mais clareza do que nunca o caráter de ditadura brutal que o poder das classes dominantes assume. É então que fica inevitável a eclosão revolucionária dos povos.
E se é certo que nos países subdesenvolvidos da América a classe operária é, em geral, relativamente pequena, há uma classe social que, pelas condições subumanas em que vive, constitui uma força em potencial que, dirigida pelos operários e intelectuais revolucionários, tem uma importância decisiva na luta pela libertação nacional: os camponeses.
Nos nossos países, as circunstâncias de uma indústria subdesenvolvida se combinam com um regime agrário de caráter feudal. É por isso que, por mais duras que sejam as condições de vida dos trabalhadores urbanos, a população rural vive em condições ainda mais horríveis de opressão e exploração; mas também é, salvo exceções, o setor absolutamente majoritário, em proporções que às vezes excedem os 70% das populações latino-americanas.
Tirando os proprietários de terras que muitas vezes residem nas cidades, o resto dessa grande massa ganha a vida trabalhando como peões nas fazendas por salários miseráveis, ou lavram a terra em condições de exploração que não têm nada a invejar à Idade Média. Estas circunstâncias são as que determinam que na América Latina a população pobre do campo constitua uma tremenda força revolucionária em potencial.
Os exércitos, estruturados e equipados para a guerra convencional, que são a força em que se sustenta o poder das classes exploradoras, quando têm que enfrentar a luta irregular dos camponeses no seu ambiente natural, se veem absolutamente impotentes; perdem dez homens para cada combatente revolucionário que cai, e a desmoralização se espalha rapidamente entre elas ao terem que enfrentar um inimigo invisível e invencível que não dá a oportunidade de exibirem as suas táticas de academia e as suas fanfarras de guerra, de que tanto se gabam de reprimir os trabalhadores e os estudantes nas cidades.
A luta inicial de pequenos núcleos combatentes é constantemente alimentada por novas forças, o movimento de massas começa a se desencadear, a velha ordem racha, pouco a pouco, em mil pedaços e é então o momento em que a classe trabalhadora e as massas urbanas decidem a batalha. O que é que, desde o início da luta daqueles primeiros núcleos, os faz invencíveis, independentemente do número, do poder e dos recursos dos seus inimigos? O apoio do povo, e contarão com esse apoio das massas num grau cada vez maior. Mas o campesinato é uma classe que, pelo estado de ignorância em que o mantêm e pelo isolamento em que vive, necessita de uma direção revolucionária e política da classe trabalhadora e dos intelectuais revolucionários, sem a qual não poderia, sozinha, se lançar na luta e conquistar a vitória.
Nas atuais condições históricas da América Latina, a burguesia nacional não pode liderar a luta antifeudal e antiimperialista. A experiência mostra que, nas nossas nações, essa classe, embora os seus interesses sejam contraditórios com os do imperialismo ianque, foi incapaz de enfrentá-lo, paralisada pelo medo da revolução social e assustada pelo clamor das massas exploradas.
Diante do dilema do imperialismo ou revolução, apenas as suas camadas mais progressistas estarão com o povo.
A atual correlação mundial de forças e o movimento universal de libertação dos povos coloniais e dependentes apontam para a classe trabalhadora e para os intelectuais revolucionários da América Latina o seu verdadeiro papel, que é de estar decididamente na vanguarda da luta contra o imperialismo e o feudalismo.
O imperialismo, utilizando os grandes monopólios cinematográficos, as suas agências de comunicação a cabo, as suas revistas, livros e jornais reacionários, recorrem às mentiras mais sutis para semear o divisionismo e inculcar nas pessoas mais ignorantes o medo e a superstição em relação às ideias revolucionárias, que só aos interesses dos poderosos exploradores e aos seus privilégios seculares podem e devem assustar.
O divisionismo, produto de toda sorte de preconceitos, ideias falsas e mentiras; o sectarismo, o dogmatismo, a falta de abertura para analisar o papel correspondente a cada camada social, aos seus partidos, organizações e dirigentes, dificultam a unidade de ação imprescindível entre as forças democráticas e progressistas dos nossos povos. São vícios de crescimento, doenças da infância do movimento revolucionário que devem ser deixados para trás. Na luta antiimperialista e antifeudal é possível estruturar a imensa maioria do povo sob objetivos de libertação que unam o esforço da classe trabalhadora, dos camponeses, dos trabalhadores intelectuais, da pequena burguesia e das camadas mais progressistas da burguesia nacional. Estes setores compreendem a imensa maioria da população e reúnem grandes forças sociais capazes de varrer o domínio imperialista e a reação feudal. Nesse amplo movimento, eles podem e devem lutar juntos pelo bem das suas nações, pelo bem dos seus povos e pelo bem da América, do velho militante marxista ao católico sincero que nada tem a ver com os monopólios ianques e os senhores feudais da terra.
Tal movimento poderia atrair os elementos progressistas das forças armadas, também humilhadas pelas missões militares ianques, pela traição aos interesses nacionais por parte das oligarquias feudais e o sacrifício da soberania nacional em nome dos ditames de Washington.
Onde os caminhos dos povos estão bloqueados, onde a repressão dos trabalhadores e dos camponeses é feroz, onde é mais forte o domínio dos monopólios ianques, o mais importante é compreender que não é justo nem correto entreter os povos com a cômoda e vã ilusão de arrancar, por vias legais que não existem nem existirão, as classes dominantes, entrincheiradas em todas as posições do Estado, monopolizadoras da instrução, donas de todos os veículos de divulgação e possuidoras de infinitos recursos financeiros, um poder que os monopólios e as oligarquias defenderão a sangue e fogo com a força das suas polícias e dos seus exércitos.
O dever de todo revolucionário é fazer a revolução.
É sabido que na América e no mundo a revolução vencerá, mas não é para os revolucionários se sentarem à porta das suas casas para verem o cadáver do imperialismo passar. O papel de Jó não se enquadra como o de um revolucionário. Cada ano em que se acelere a libertação da América significará milhões de crianças salvas para a vida, milhões de inteligências salvas para a cultura, infinitos caudais de dor que os povos se livrariam. Mesmo que os imperialistas ianques preparem para a América um drama de sangue, não serão capazes de esmagar as lutas dos povos, despertarão contra eles próprios o ódio universal e será também o drama que marcará o declínio do seu sistema voraz e troglodita.
Nenhum povo da América Latina é fraco, porque faz parte de uma família de duzentos milhões de irmãos que padecem das mesmas misérias, nutrem os mesmos sentimentos, têm o mesmo inimigo, sonham todos com um mesmo destino melhor e contam com a solidariedade de todos os homens e mulheres honrados do mundo inteiro.
Por maior que tenha sido a epopeia da independência da América Latina, por mais heroica que tenha sido aquela luta, a geração dos latino-americanos de hoje se confronta com uma epopeia ainda maior e mais decisiva para a humanidade. Porque aquela luta foi para se libertar do poder colonial espanhol, de uma Espanha decadente, invadida pelos exércitos de Napoleão. Hoje é a luta pela libertação da metrópole imperial mais poderosa do mundo, da força mais importante do sistema imperialista mundial, e para prestar à humanidade um serviço ainda maior que aquele que prestaram os nossos antepassados.
Mas esta luta, mais do que aquela, a farão as massas, a farão os povos; os povos vão desempenhar um papel muito mais importante do que então; os homens, os dirigentes importam e importarão, nesta luta, menos do que importaram naquela.
Esta epopeia que temos diante de nós vão escrevê-la as massas famintas de indígenas, de camponeses sem terra, de trabalhadores explorados, vão escrevê-la as massas progressistas; os intelectuais honestos e brilhantes que tanto abundam nas nossas sofridas terras da América Latina; luta de massas e de ideias; epopeia que levarão adiante os nossos povos maltratados e desprezados pelo imperialismo, os nossos povos desconhecidos até hoje, que já começam a tirar-lhe o sono. Considerava-nos rebanho impotente e submisso; e já começa a ter medo desse rebanho; rebanho gigante de duzentos milhões de latino-americanos de que o capital monopolista ianque já adverte os seus coveiros.
Esta humanidade trabalhadora, com estes sub-humanos explorados, paupérrimos, manejados na base da chibata, pouco ou nada se considerou. Desde o alvorecer da independência, os seus destinos têm sido os mesmos: indígenas, gaúchos, mestiços, zambos, quadruns, brancos sem bens, nem rendimentos toda essa massa humana que se formou nas fileiras da “pátria” que nunca desfrutou, que caiu aos milhões, que foi despedaçada, que ganhou a independência das suas metrópoles para a burguesia, aquela que foi privada da sua parcela, continuou ocupando o último escalão dos benefícios sociais, continuou morrendo de fome, de doenças curáveis, de abandono, porque para ela nunca alcançaram os bens salvadores: o simples pão, a cama de um hospital, o remédio que salva, a mão que ajuda.
Mas a hora da sua vindicação, a hora em que ela escolheu a si mesma, ela vem pontuando, com precisão, agora, também de uma ponta a outra do continente. Agora, esta massa anônima, esta América de cor, sombria, taciturna, que canta por todo o Continente com a mesma tristeza e desilusão, agora esta massa é a que começa a entrar definitivamente em sua própria história, começa a escrever com o seu sangue, começa a sofrer e a morrer. Porque agora, pelos campos e montanhas da América, pelas encostas das suas montanhas, pelas suas planícies e florestas, entre a solidão, ou no trânsito das cidades, ou nas margens dos grandes oceanos e rios, começa a tremer este mundo cheio de razões, com os punhos quentes de desejos de morrer pelo que é seu, de conquistar os seus direitos ridicularizados por quase quinhentos anos, por uns e por outros. Agora sim, a história terá que contar com os pobres da América, com os explorados e vilipendiados da América Latina, que decidiram começar a escrever eles mesmos, para sempre, a sua história. Já é possível vê-los nas estradas, um dia e outro, a pé, em marchas intermináveis de centenas de quilômetros, para chegar aos “olimpos” governantes e reclamar os seus direitos. Já é possível vê-los, armados com pedras, paus, facões, de um lado e do outro, a cada dia, ocupando as terras, fincando as suas forquilhas na terra que lhes pertence e defendendo-a com a sua vida; é possível vê-los, carregando os seus cartazes, as suas bandeiras, as suas palavras de ordem; fazendo-as balançar no vento, entre as montanhas e ao longo das planícies. E essa onda de rancor abalado, de justiça exigida, de direito pisoteado que começa a se erguer entre as terras da América Latina, essa onda já não vai mais parar. Essa onda vai crescer a cada dia que passa. Porque essa onda é formada pela maioria em todos os aspectos, os que acumulam a riqueza com o seu trabalho, criam os valores, fazem girar a roda da história e que agora despertam do longo sonho embrutecedor a que foram submetidos.
Porque essa grande humanidade disse: “Basta!” e começou a andar. E a sua marcha de gigantes não será mais detida até que conquistem a verdadeira independência, pela qual já morreram mais de uma vez inutilmente. Agora, em todo caso, os que morrerem morrerão como os de Cuba, os de Playa Girón, morrerão por sua única, verdadeira e irrenunciável independência.
Pátria ou Morte!
VENCEREMOS!
O POVO DE CUBA
Havana, Cuba - território livre da América -, 4 de fevereiro de 1962.
A Assembleia Geral Nacional do Povo de Cuba resolve que esta declaração será conhecida como a Segunda Declaração de Havana e será traduzida para vários idiomas e distribuída em todo mundo. E pede a todos os amigos da Revolução Cubana na América Latina que difunda amplamente entre as massas operárias e camponesas, estudantes e intelectuais dos povos irmãos deste continente.
Se submete à aprovação do povo essa declaração e solicita-se que todos os cidadãos que estão de acordo levante a mão [aclamação].
Tradução: Nova Cultura.
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