Cubanos usando máscaras protestam contra o bloqueio dos EUA no interior de Cuba | Foto: Aylín Álvarez |
Por Camila Alvarenga no Opera Mundi
No programa 20 MINUTOS ENTREVISTAS do último 03/05, o jornalista Breno Altman entrevistou a historiadora autora do livro História Agrária da Revolução Cubana (Alameda, 2016) e professora da Faculdade Cásper Líbero, Joana Salém. Durante a conversa, ela falou sobre os desafios de Cuba pós-pandemia e após a renovação geracional do partido comunista.
“Cuba é provavelmente um dos países que conseguiu conter a pandemia com maior sucesso. E isso se deu porque Cuba tem um sistema de saúde muito bem estruturado, tido como prioridade pelo governo. Puderam fazer amplas testagens e conter o vírus em regiões com maior índice de contágios, inclusive mobilizando caminhões para levar mantimentos a essas zonas para as pessoas não terem que se deslocar”, ponderou.
Por outro lado, a pandemia impactou fortemente a economia cubana, predominantemente determinada pelo turismo: “O turismo ocupa 15% do PIB cubano e foi a atividade mais atingida pela pandemia, houve uma queda de 95% da atividade turística. O PIB de Cuba caiu 11% em 2020, uma queda maior que a brasileira, inclusive, e que acontece num contexto econômico de algumas precariedades e dificuldades relacionadas a abastecimento, à questão monetária, a reforma no sistema de moedas, tem uma série de fragilidades da economia cubana que nesse momento se intensificam”.
Diante desse cenário, Salém reforçou que Cuba só conseguiu manter a qualidade do sistema de saúde por priorizar seus serviços públicos, tanto da saúde quanto da educação.
“Parece ingênuo falar isso, mas o Estado arrecada impostos e os direciona para o bem-estar, para a saúde e a educação. Mas não sem suas crises e contradições, porque houve desgaste nos salários dos professores, por exemplo. Ou às vezes faltam máquinas médicas, porque elas precisam ser importadas. Mas Cuba está promovendo reformas estruturais com a expectativa de recompor o país”, discorreu.
Saída para a crise: reforma monetária em Cuba
Salém detalhou as reformas que Cuba vem fazendo ou pretende realizar para sair da crise econômica. Ela explicou que até hoje Cuba vive as consequências do período especial, isto é, do período após a queda da União Soviética, até então seu maior parceiro comercial.
“Seguem os problemas de fundo: a precariedade produtiva, pouco diversificada, a baixa quantidade de investimentos e o bloqueio econômico dos EUA, que é um dos principais fatores. Esses problemas não foram superados de 1990 para cá, só foram atenuados”, afirmou.
Para ela, em decorrência desses fatores, Cuba vive atualmente uma crise salarial. Durante o período revolucionário mais pulsante, os salários tinham pouca importância na vida da população, pois o Estado garantia cultura, educação, saúde e alimentação. Nesse momento, criou-se um sistema de dupla moeda: uma para realizar trocas internacionais, o peso conversível (CUC); e uma nacional, o peso cubano, com a qual os cubanos se relacionavam dentro do país.
“Gerou um paradoxo. Por um lado, o cubano ganhava pouco, mas acessava educação, saúde e cultura sem usar o dinheiro. Por outro, foi aumentando o turismo e o CUC foi penetrando na sociedade, o dinheiro foi tendo mais importância. Pessoas que ganhavam CUC podiam acessar mais coisas, isso gerou uma série de distorções econômicas e sociais, pessoas com estudo e carreiras consolidadas ganhavam menos do que pessoas que exerciam qualquer função dentro da economia dos serviços”, descreveu a historiadora.
Por isso, o governo cubano agora está realizando uma unificação das moedas, para combater as desigualdades internas, “uma operação complexa que envolve uma reforma na renda dos cubanos”.
A reforma monetária virá acompanhada de um aumento de cinco vezes do salário mínimo e das aposentadorias, por exemplo, pois é necessário aumentar o poder de compra de quem recebia em peso cubano e era prejudicado pela desigualdade entre as moedas.
Turistas também passarão a utilizar pesos cubanos, em vez do CUC, e quem possuir CUC deverá ir a casas de troca para obter moeda nacional ou Euros, segundo explicou Salém, que poderão ser reservados no banco normalmente.
“O principal desafio desse processo é a pressão inflacionária que pode gerar. É uma injeção de liquidez, injeção de renda, o dinheiro vai passar a ter um maior papel. As consequências disso na inflação vão ser medidas nos próximos meses, em julho, agosto e setembro, quando a transição estará concluída. Vai ser a prova de fogo”, apontou a professora.
Risco de uma restauração do capitalismo em Cuba?
Com o dinheiro tendo mais importância e a existência de pequenos donos de negócios, há especialistas que questionam a possibilidade de uma restauração do capitalismo na ilha. Para Salém, “Cuba vive esse risco desde sempre. A revolução socialista não é irreversível, apesar de a Constituição de 2019 dizer que ela é”.
Durante o período das duas moedas, surgiu uma modalidade de negócio privado, os “cuenta propistas”: donos de lojas ou estabelecimentos de serviços. Essas pessoas passaram a contratar funcionários, que trabalhavam muitas horas, mas recebiam mais do que se trabalhassem menos, pois “recebiam em CUC, então fazia sentido”. Com a unificação em torno do peso cubano, entretanto, essa realidade vai mudar e o governo deverá estar atento a ela, pois pode se configurar entre esses donos de negócios uma “pequena burguesia”, segundo alertou Salém.
Outro fator de risco para o governo socialista é a entrada do grande capital estrangeiro em Cuba. “Existem investimentos de capital estrangeiro regulamentados”, mas a ideia é expandir essas possibilidades, por exemplo com o Porto de Mariel.
“O Estado cubano apresentou uma carteira de investimentos no porto, mas o capital internacional queria comprar o porto inteiro. O que os cubanos ofereciam como pedaços era pouco para os investidores internacionais. Existe um dilema, é uma questão de escala versus uma questão de soberania”, ilustrou.
Salém acredita, contudo, que o governo cubano socialista ainda possui vantagem frente a esses novos desafios, pois a revolução ainda goza de legitimidade. De acordo com ela, mesmo os movimentos de oposição ao governo se colocam como constitucionais, portanto dentro de uma Constituição que se define como socialista.
“Os artistas hoje são parte da oposição. A arte precisa passar por meios estatais, então muitos artistas independentes estão denunciando que sua arte está passando por uma censura prévia, já que é o Estado quem diz o que é arte e o que não é. A mídia alternativa também está se colocando como oposição. Num contexto em que o governo tem dificuldade para discernir meios alternativos de esquerda, de meios que mimetizam a imprensa alternativa, mas que são imperialistas, impedem a criação de blogs independentes, por exemplo”, contextualizou Salém.
Os artistas e intelectuais assinaram um manifesto, com propostas de maior participação popular na política, descentralização democrática, criação de instrumentos de diálogo entre o governo e a população, reclamando o direito de discrepância e tudo amparado na Constituição.
“Isso é importante porque a Constituição de 2019 diz que o socialismo é irrevogável, então se esse movimento se diz constitucional, é possível dizer que a proposta está enquadrada no que se pode considerar o socialismo nos termos do Estado cubano”, refletiu a historiadora.
Ela espera que a nova geração agora ocupando o Partido Comunista Cubano, após o 8º Congresso do Partido, que não participou da Revolução, saiba, “por uma questão de proximidade geracional, trabalhar para construir a confiança do povo, porque tem menos legitimidade histórica”.
“Há uma tensão entre a juventude e a Revolução Cubana, espero que essa nova geração tenha mais sensibilidade e esteja mais disposta a dialogar”, concluiu.
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