segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Ilha: "versão 2011"

Como anunciamos ontem, primeiro texto dos médicos bainos que estagiaram em Cuba.

Por Waldemir de Albuquerque Costa* no blog Bainos na Luta

Primeira Parte

A partir do conhecimento teórico com 2 aulas sobre o "Sistema de Saúde Pública Cubano" e "Atenção Primária à Saúde e Medicina Familiar Cubana" e a vivência com a visita a 1 Policlínica, 2 Consultórios Médicos de Família, conhecendo lideranças comunitárias de 1 Conselho Popular da cidade de Boyeros (Havana), entrevistando uma deputada da Assembléia Nacional do Poder Popular e conversando com vários pacientes e outros cidadãos de Havana, resolvemos traçar um panorama do que está acontecendo atualmente na saúde de Cuba.

Muito encantados com o célebre livro de Fernando de Morais - "A Ilha"(1976) - que faz um retrato bastante apaixonado do que se passava em Cuba nos primeiros períodos pós-revolucionários, resolvo seguir uma linha também jornalística e atualizá-lo, trazendo como está o cenário da saúde cubana em 2011, 35 anos ocorridos após o seu conhecido relato. Para isto, é necessário contextualizar as trasformações ocorridas neste país nos últimos 50 anos.

1) Reforma Sanitária: A Reforma Sanitária Cubana começou nos anos 60, logo após o triunfo do movimento revolucionário do qual faziam parte Che Guevara e Fidel Castro, e conseguiu, através de um severo planejamento, formação massiva de recursos humanos e intensa participação popular, inverter completamente o perfil epidemiológico do país. A partir da década de 70 iniciou-se a abertura das Policlínicas e a centralização e supervisão do trabalho dos médicos de família de um distrito por esses serviços. Já em 1984, portando um excelente número de médicos à disposição no país(semelhante a países desenvolvidos), ocorre a capacitação em massa dos médicos através da especialização em Medicina General y Integra l(MGI) - correspondente ao brasileiro Médico de Família e Comunidade (MFC).

2) Mudanças históricas: a partir de 1989-1990 acontece a decadência do bloco soviético e, com ele, o financiamento externo da economia cubana. O período entre 1990-1994 fica conhecido como a "Grande Crise", que provoca racionamento completo de bens básicos(como comida, roupas, gasolina, energia elétrica) e serviços, incluindo a saúde. A partir dessa época, tiveram que fazer uma remodelagem do programa de Medicina Familiar, ampliando o número de famílias acompanhadas por cada Médico de Família - um único médico que dava conta de uma população de 800 pessoas, agora tinha que dar conta de mais de 1300. No entanto, as novas interlocuções de Cuba com o mercado internacional, a busca de novos parceiros e as divisas geradas com as missões médicas cubanas internacionais impulsionaram a economia do país e levou-o no período de 1994-2002 ao chamado "Crescimento Cubano" no qual a medicina de família reassume a prioridade dos investimentos públicos.

Nesta época os médicos de família cubanos passam a ser conhecidos mundialmente e o país assume a presidência da comissão de Atenção Primária da Organização Panamericana da Saúde (OPAS) vinculada à ONU. Diversos congressos internacionais da especialidade são promovidos em Havana e as missões internacionais começam a formar novos médicos em vários países, estimulando as ações de consultoria cubana em outros sistemas de saúde.

Entre 2002-2010 ,Cuba entra na fase chamada "Projeto Revolução", na qual o país passa por uma revolução energética com o fornecimento venezuelano de Petróleo, a criação da ALBA (Alternativa Bolivariana das Américas) e a aproximação com a zona do Euro, reduzindo um pouco o impacto do bloqueio americano ao país. Neste cenário, tem acontecido uma equipação gigantesca dos consultórios e das policlínicas, com aquisição de muitos aparelhos de Ultrassom, Raio-X, de análises de laboratório (sangue, urina, etc.) e novas medicações, além de ampliar o fornecimento de especialização em MGI a quase todos os médicos do país. Com isso os indicadores de saúde cresceram em função geométrica (centenas de vezes em 8 anos!) erradicando muitas doenças e baixando a quase zero a mortalidade infantil. No entanto, em 2011, com a crise econômica global - em especial a decadência da economia européia e a quase dissolução do Euro - obrigou Cuba a apertar um pouco sua economia e reajustar sua saúde, reduzindo o número de novos consultórios e diminuindo os investimentos para conserto de suas unidades de saúde danificadas.

Segunda Parte

3) Como funciona o Sistema de Saúde Cubano: O Sistema Público de Saúde Cubano se assemelha em suas diretrizes ao brasileiro, com os princípios de Universalidade, Acessibilidade, Gratuidade, Regionalização e Integralidade. Além disso, em sua Constituição, defende uma concepção Internacionalista da saúde. A prioridade máxima do país é dada aos serviços de Atenção Primária, economizando e racionalizando os recursos para garantir saúde a todos.

O modelo básico da atenção primária cubana é composto pelas Policlínicas (centros de saúde com diversas especialidades, como pediatras e obstetras, e pronto-socorro, além de ser supervisionada por 1 médico especialista em Medicina Geral e Integral), que cobrem uma população máxima de 20.000 pessoas - mas que em média cobrem cerca de 12.000 - e são responsáveis pela administração, supervisão e referência dos Consultórios Médicos de Família (CMF). Cada policlínica pode abarcar no máximo 20 CMF - mas que em média cobrem entre 10 a 12 CMF. Cada consultório cobre no máximo 1500 pessoas.

A Equipe Básica de Saúde (EBS) que trabalha nos Consultórios Médicos de Família é bem simples, composta por 1 Médico de Família e 1 Enfermeira de Família. Eles realizam o acompanhamento de algo em torno de 1300 pessoas em seu território, morando pessoalmente nessa região, e atendendo também a programas de grupos de risco específicos (Pré-Natal, Puericultura, Hipertensos e Diabéticos, acamados, etc.). Habitualmente os consultórios situam-se em casas de 3 andares, em que as salas de consulta ficam no andar de baixo e a casa do médico e da enfermeira ficam nos andares de cima. Nos dois CMF que visitamos, os médicos moravam em cima e seu consultório em baixo. Há consultas de segunda à sexta das 8-16h, com 1 turno noturno das 17-21h uma vez na semana (habitualmente às quartas) e 1 turno das 8-12h nos sábados - 48 horas por semana + plantões. O médico tem ainda que cumprir escala de plantão na Policlínica de sua região de 2-3 vezes no mês. Eles separam ainda 2 turnos semanais à tarde para a realização das "visitas de terreno"(visitas domiciliares). Todos os CMF tinham cartazes e estimulavam a fitoterapia e outras linhas de Medicina Natural e Tradicional(plantas, acumpuntura, etc.) e realizam cartografia do território juntamente à Análise da Situação de Saúde (ASIS) de sua região de cobertura. Caso um paciente passe mal em um horário em que o médico não esteja no bairro ou em casos de maior gravidade, pode-se direcionar ao pronto-socorro da Policlínica. Em suma, enquanto o PSF brasileiro trabalha com 1 médico, 1 enfermeira, 1 téc. de enfermagem, 6 Agentes Comunitários e às vezes um NASF de apoio acompanhando 4.000 pessoas, o CMF de Cuba trabalha com 1 médico e 1 enfermeira com suporte de 1 políclínica com diversas especialidades, matriciamento e serviço de pronto-socorro, acompanhando 1.500 pessoas.

Os profissionais da Policlínica visitam frequentemente os Consultórios Médicos de Família(assim como um NASF brasileiro) fiscalizando a situação da saúde das crianças, gestantes e outros grupos e discutindo os casos com a equipe. Existem ainda os consultórios médicos rurais, que acompanham um número menor de famílias devido à distância entre as casas e dispondo de Agentes Comunitários Rurais de Saúde - que não tivemos a oportunidade de conhecer de perto. Os medicamentos são comprados nas farmácias públicas a valores simbólicos (algo como a farmácia popular do Brasil) e os remédios para doenças crônicas (hipertensão, diabetes, asma, sedativos, etc.) são gratuitos e entram na Libreta mensal assim como os alimentos hipossódicos e hipoglicêmicos que são fornecidos gratuitamente aos hipertensos e diabéticos. O pedido dos exames é feito pelos médicos de família nos consultórios e coletados na policlínica, diariamente em caso de laboratório e semanalmente em caso de imagem ou outros. Existem muitas farmácias no território coberto pelas policlínicas e a assistência farmacêutica é de quase 100%, com excessão de alguns quimioterápticos que só são fabricados nos EUA, proibidos pelo Bloqueio americano de serem vendidos em Cuba. A licensa maternidade no país é de 1 ano para a mãe ou o pai que cuida do filho.

Na região geográfica de 1 policlínica existem ainda muitas clinicas estomatologicas (dentistas) e algumas clínicas oftalmológicas e clínicas psiquiátricas - especialistas com consultório externo ao da policlínica.
Cuba dispõe hoje de 72.000 médicos (para uma população de 11,5 milhões de pessoas, o que dá quase 1 médico pra cada 160 pessoas), com 36.478 Médicos de Família (cobertura de 100% da saúde da família) e 70% destes com Especialização em Medicina Geral e Integral, além de 20% em processo de conclusão desta especialidade. O salário médico-base é o mesmo para todos os médicos e para todas as especialidades médicas (por exemplo, um anestesista ganha o mesmo que um pediatra, um médico de Havana ganha o mesmo que um de Santiago de Cuba), podendo ganhar mais à medida que faz especializações, mestrado, ensina na faculdade ou faz missões internacionais.

O curso de medicina dura 6 anos e, logo após, é obrigatório ao médico servir ao Serviço Social (semelhante ao serviço civil obrigatório) durante 1 ou 2 anos(a depender da necessidade de saúde local), geralmente nos Consultórios Médicos Rurais ou nos Consultórios de Medicina de Família das periferias urbanas. Os estudantes com os melhores currículos e melhores notas são escolhidos para trabalhar nos lugares mais necessitados - meritocracia inversa pela razão social - para oferecer maior qualidade aos locais que mais precisam de cuidado. Após isso, o médico pode iniciar sua especialização, que dura 3 anos, para pósgraduar-se em Medicina Geral e Integral (11 anos de estudo!). 
A especialização em MGI é obrigatória como pré-requisito para fazer outras especializações (para fazer cirurgia, antes você tem que fazer medicina de família). Em raras situações, caso uma província necessite muito de uma determinada especialidade, o médico pode ir para lá e não ter obrigatoriedade do Serviço Social. Além disso, há o controle público planejado da oferta de vagas de especialização a cada ano em todo o país - ex. em Santiago de Cuba em 2012 haverá 3 vagas para cirurgia-geral, 2 para anestesia, 5 para pediatria e 79 pra médico de família - mostrando a prioridade do país e a necessidade de não disperdiçar seus recursos humanos com especializações em que não há demanda severa da população.

Existe um grande estímulo para que os médicos cubanos participem das missões internacionalistas em países em grande vulnerabilidade (Angola, Haiti, Moçambique, etc.) ou que tenham pacto cooperativo-financeiro com Cuba (Venezuela). Os médicos que tiram as melhores notas são destinados aos países mais carentes - assim como no Serviço Social, a inversão do mérito pessoal pela necessidade do povo. Este profissional não gasta nenhum dinheiro, seu salário fica disponível para sua família em Cuba, e o país recebedor custeia todas as suas necessidades (transporte, moradia, alimentação, etc.). No regresso ao país, esses médicos têm prioridade nos programas de habitação do governo, recebendo casas com condições melhores(4 quartos, boa localização) como gratidão às suas privações pessoais durante o período que esteve fora. Essa tem sido uma grande estratégia para o país captar recursos internacionais - como o fornecimento de petróleo venezuelano a baixos valores em troca dos serviços médicos cubanos.

Tivemos a honra de acompanhar Dr. Ivan, médico de família em Boyeros, um dos fundadores do projeto Bairro Adientro (internacionalismo médico cubano na Venezuela) e professor da faculdade de medicina de Havana, e vimos o seu trabalho em uma comunidade de 1.350 pessoas. Eles nos conta que a consulta de Pré-Natal cubana preconizada pelo ministério da saúde (MINSAP) é de 8-12 consultas por gestante, mas que em média as cubanas fazem cerca de 20 consultas (!!!). Nas primeiras 14 semanas de gestação, as consultas são semanais; das 14-30 semanas as consultas são quinzenais e após as 30 semanas as consultas tornam a ser semanais. Os suplementos gestacionais, los prenatales, são compostos por Fumarato de Ferro, Vitamina A, Ácido Fólico e Vitamina C em um único comprimido, tomados diariamente e fornecidos de graça no CMF. As consultas de Puericultura são semanais nos recém-nascidos de até 1 mês, quinzenais entre 1-3 meses, mensais até 1 ano, e trimestrais até os 14 anos. Preconiza-se ainda que a puericultura vá até os 20 anos de idade. Ou seja, a quantidade de médicos é tão grande e a sua população acompanhada é tão pequena (comparada ao Brasil), que o médico tem condições muito tranquilas de visitar todo mundo e consultar suas crianças e gestantes muito mais vezes do que em outros países.   
 
Em resumo, as prinicipais iniciativas tomadas pelo governo cubano para garantir a cobertura universal de toda sua população:

·    Reforma agrária, erradicação do analfabetismo, obrigatoriedade do trabalho, fornecimento de alimentos essenciais, vestimenta e moradia para todos, acesso à água e saneamento básico(efeitos diretos na década de 60 logo após a Revolução Cubana);

·    Campanha de vacinação em massa;

·    Criação do Serviço Médico Social Rural;

·    Abertura de diversas faculdades de medicina e aproveitamento de quase todas as unidades de saúde como espaços de ensino;

·    Controle estatal da oferta de vagas de residência e especializações de acordo com as necessidades de cada local, reservando a maioria das vagas para Medicina Geral e Integral;

·   Obrigatoriedade da especialização em Medicina Geral e Integral como pré-requisito para outras especialidades médicas;

·   Serviço Social de 1-2 anos obrigatório para todos os médicos após término da graduação, priorizando-os para regiões mais necessitadas do país;

·    Garantia de mais de 50% dos postos de trabalho médico para o cargo de Medico Familiar(Médico de Família).

Esse é um olhar estrangeiro sobre a situação do sistema de saúde cubano, muito chocado com os seus avanços em relação ao Brasil e seu crescimento mesmo diante de um Bloqueio Genocida realizado pelo governo americano e mesmo diante de uma grave crise econômica global. Experiências como essa fazem-nos pensar que outro mundo é possível, sem tirar nada de ninguém. Um país com tão poucos recursos, uma ilha que vive da produção de cana-de-açúcar e charutos, sem ouro, carvão, petróleo, sem escravizar nenhum outro país, consegue oferecer à sua população o melhor sistema de saúde do mundo. Quanto poderia ser diferente se o Brasil, rico em ferro, soja e com um enorme Pré-Sal, optasse por uma outra forma de repartir sua riqueza.

Deixo por fim a mesma mensagem que enviei à minha equipe de saúde da família na Bahia: "vim à Cuba e conheci um povo alegre e cheio de coragem - e lembrei de vocês! Nós não precisamos de muita coisa. Só precisamos uns dos outros!"

*Waldemir de Albuquerque Costa é médico da família na cidade de Maragogibe/Bahia e membro do Coletivo Bainos na Luta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário