sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O País - Especial Cuba: Meio milhão de fora

O Blog Solidários publica a seguir série de reportagens produzidas pelo enviado a Havana Luís Fernando e publicadas no jornal angolano "O País". Aprecie:



Meio milhão de fora

Quando o anúncio foi feito em 2010, as ondas de choque funcionaram com igual intensidade dentro e fora de Cuba. O Estado socialista, apanhado pelos ventos brutais da recessão mundial que, no caso, ainda tem o sufoco do embargo norte americano com quase cinquenta anos, viu-se na necessidade de ter de reduzir a força de trabalho que emprega, para desse modo diminuir nas despesas do seu orçamento.

Uma medida digna de revolver o estômago de qualquer ideólogo do Socialismo nos confins das suas sepulturas, mas o certo é que ela não foi tomada a pensar em nenhum deles. A verdade existencial de um tempo que não tolera grandes imobilismos de pensamento, sob pena de afundanços que se podem precipitar, obriga a cortes ali onde é possível e mais fácil, mesmo que esse fácil esteja longe de querer significar consensos.

Raul Castro, o Presidente que sucedeu ao irmão Fidel no leme, teve de arcar com o ónus histórico de ser ele a decidir a mais controversa das medidas da longa caminhada da Revolução, omnipresente na vida dos cubanos desde 1 de Janeiro de 1959. As circunstâncias de um mundo atribulado, onde bancos insuspeitos acabam falidos e um só homem como Bernard Madoff se avia com biliões de dólares numa fraude monumental sem paralelo na História, pregaram à nova liderança aquele tipo de partidas que os políticos abominam: conduzem ao único beco com saída, deixando a marca sofrida das medidas impopulares.


Em Cuba chamam aos abrangidos pela redução da massa laboral “os despidos”, um termo que soa a terror social, que não conforta nem consola mas que está ali, a fazer o seu papel de síntese linguística perfeita. “Despido” remete em qualquer circunstância a uma condição cruel. Por isso funciona bem, para o caso.

Curiosamente, uma análise fria e sem preconceitos do que está a acontecer, leva a uma constatação pacífica: a decisão está carregada de acertos.

Intelectuais cubanos de pensamento livre aplaudem a medida e lamentam apenas que tenha sido necessário esperar tanto tempo para chegar a ela. “É imperioso que aconteça uma renovação económica da sociedade cubana”, afirma um deles, crítico feroz dos anos em que o trabalho para toda a gente apenas para manter a zero as taxas de desemprego, foi regra de ouro. “Estamos a pagar agora o preço do imobilismo”, declara.

Doloroso, mas necessário

Dispensar meio milhão de funcionários de uma só golpada (embora o processo se concretize ao longo de todo este ano, o certo é que o seu anúncio foi feito num instante único) é um choque até em países com mais gente a depender dos cofres públicos para a sobrevivência.

Teria de haver razões muito fortes, como as há, para Cuba embarcar nessa dolorosa via. A primeira delas é o auto convencimento de quem manda de que será escusado persistir num modelo que parecia fazer tábua rasa das bondades da economia, como se fosse possível um país progredir alimentando-se apenas de ideais, de utopias, de consignas. “Não podemos continuar a ser o único país do mundo onde se pode viver sem trabalhar”, disse Raúl Castro quando anunciou, há um ano, que o Estado não poderia continuar a suportar o encargo de milhões de funcionários ociosos.

Colisão ideológica

Se a leitura não é feita desta maneira tão linear, porque pode em muito assemelhar-se a uma renúncia às crenças ideológicas que formataram sucessivas gerações de cubanos, há, no mínimo, uma pequena guinada à direita, que vai permitir que seja dada uma brecha e um sentido à economia feita com a participação do trabalhador enquanto indivíduo.

Com efeito, os 500 mil que saem do emprego formal em instituições sustentadas pelo Estado, vão povoar, com o seu maior ou menor espírito inventivo, o universo dos que fazem caminho ao andar, abraçando a iniciativa privada. “Não vale a pena embarcar em historietas com muitas lágrimas à mistura quando se olha para a sorte dos ‘despidos’; este pode ser o caminho para, num prazo não tão longo, termos a possibilidade da entrada da pequena propriedade em Cuba, que vai dinamizar a vida social” , escreveu um analista em data recente, a propósito do fenómeno que vai testar a capacidade de muitos cubanos se desenvencilharem da protecção laboral do Estado. É o mesmo pensador que critica a excessiva centralização que “conduziu a um estado famélico do social, a um flagelo que atrasou o país por tanto tempo”.

Nem tudo o Estado pode fazer

Que meio milhão de trabalhadores por conta do Estado deixe de o ser e que um sem número de pequenos negócios como restaurantes, cantinas, botequins, táxis, tenham surgido para mudar a paisagem em terras durante décadas sujeitas a uma cadência absolutamente distinta, são acontecimentos que dizem muito sem dizer tudo.

Para já e tomando apenas o exemplo da proliferação do serviço de táxis em mãos de privados, está-se perante a concretização de uma evidência que há muito se sabia: o Estado nunca esteve em condições de resolver, soziluís Fernando nho, os problemas de transporte de uma população com níveis de exigência altos em matéria de mobilidade.

Na verdade, os cubanos parecem imparáveis na sua vontade de percorrer o país de lés-a-lés: fazem-no porque –sobretudo os jovens – estudam em universidades, institutos politécnicos ou de nível superior localizados fora das suas cidades de origem e precisam de largar o ambiente dos internatos para os fins de semana no seio das famílias, mas a outra parte da população pressiona igualmente a rede de transporte público (autocarros e comboios) porque sente prazer em conhecer outros lugares e outras tradições, como os carnavais que diferem muito de uma vila para outra, de uma cidade para outra. O temor que sempre existiu foi o de, permitindo que detentores de viaturas particulares transportassem os seus necessitados compatriotas cobrando-lhes o serviço, houvesse o surgimento de gente a facturar numa só tarde o que não ganha o funcionário público numa semana de labuta. Essa perspectiva de acumulação (quase) ilícita de capital deu a volta à cabeça dos ideólogos do sistema por muito tempo e o facto de que a abertura tenha chegado, não implica, com todo o rigor, que as reminiscências dessa “anormalidade” tenham deixado de aquecer as reuniões de militantes, na visível batalha entre ortodoxos e reformistas.

Revolução com  “gente que respire”

O certo é que na Cuba de hoje, entre os extremos de um pensamento e outro (os do pró e os do contra), há espaço para uma franja que tem no pragmatismo um estilo de vida inegociável.

São sobretudo os jovens que não querendo uma perestroika caótica que afunde conquistas valiosíssimas da Revolução (como o alto nível de educação, os índices de primeiro mundo na saúde, os sucessos no universo desportivo, a segurança das cidades, a paz social, apesar de tudo), entendem porém que vai longe o tempo em que tudo se resumia a comícios cheios de palavras de ordem apelando a uma esperança num tempo indefinido.

Para eles, que não são os únicos, Revolução quer dizer –como o resumiu magistralmente um ensaísta – que “a gente viva, que a gente respire, que o salário valha, que o dinheiro contribua a robustecer valores espirituais, que a qualidade das emoções signifique qualidade de vida e que o sacrifício não seja uma finalidade em si mas um meio apenas”. São esses jovens que querem fugir da rotina perigosa da venda do corpo nas imediações de hotéis repletos de turistas, de segunda-feira a sexta, para ao fim de semana poderem sentir-se donos e senhores das suas vontades em discotecas feitas para bailar, tomar tragos apetecíveis e até sonhar com um romance que pode acabar com um triunfo de lotaria: casar e rumar para a Europa da abundância.

Conversando com eles, porque cultos quase sempre, percebe-se que entendem a importância de se viver como pessoa íntegra, honesta, digna, capaz de regressar a casa em clima de serenidade e descansar placidamente a cabeça sobre a almofada. Sem remorsos de tipo algum.

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