sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O País - Especial Cuba: Cuba ao rítmo da ansiedade

O Blog Solidários publica a seguir série de reportagens produzidas pelo enviado a Havana Luís Fernando e publicadas no jornal angolano "O País". Aprecie:




Cuba ao rítmo da ansiedade

Do pequeno balcão com vista privilegiada para a colina à sua direita, Roberto Martínez olha todas as manhãs para os larguíssimos degraus que conduzem ao coração da centenária Universidade de Havana, onde há mais de vinte anos obteve a licenciatura.

É um exercício diário que lhe infunde sentimentos mistos, até certo ponto confusos, porque acreditou sempre que a formação que fez dele engenheiro mecânico assegurar-lheia um estatuto diferente na sociedade cubana e não o de cantineiro que, aos 48 anos de idade, despacha, com sorte, uns desengonçados pastéis fabricados pela mãe velhinha com a ajuda de duas irmãs também lançadas na rota do desenrasque.

Roberto Martínez e a família, a despeito do inconformismo, podem dar-se por felizes porque conseguiram montar um pequeno negócio aproveitando a abertura tímida que o Governo decretou e que muitos milhões de compatriotas ainda não sabem bem como a aproveitarão, se o dinheiro sempre andou à míngua nos bolsos de todos e não há entidades bancárias a concederem empréstimos.


O engenheiro mecânico que transformou em ponto de venda a parte frontal da velha habitação onde nasceu, cresceu e com quase toda a certeza se despedirá da vida um dia, na rua San Lázaro, precisa de um biscate adicional para se manter acima da linha de água no crítico equilíbrio que são os seus dias, meses e anos: transporta turistas de um lado para outro no seu Dodje semi-desbaratado de 1957, cobrando os cobiçados CUC’s, o peso convertível mais cotado que o dólar ianqui.




Um dilema replicado

Como Roberto Martínez, a Cuba deste tempo anda cheia de profissionais de altíssima valia, saídos das suas inúmeras universidades e institutos de saberes diversos, mas que não aplicam o que estudaram e levou tantos anos a obter, em generoso investimento do Estado e sem peso para as famílias.

São, sem lirismos, os grandes contra-sensos da épica Revolução conduzida por Fidel Castro e que mudou radicalmente o rumo da Ilha caribenha no começo da década de 60 do século passado. “Meu irmão, prefiro andar pra cima e pra baixo com umas cansadas velhas europeias cheias de rugas na minha ‘máquina’ antiga, a ter de ficar um mês a dar no duro numa empresa, para no fim receber 300 pesos cubanos”.

Desabafa a O PAÍS o engenheiro convertido em homem de mil ofícios, como o são, de resto, quase todos os cubanos da sua geração. Percebe-se com uma facilidade elementar a razão da escolha, quando nos revela que, nessa jornada, já tinha arrecadado oitenta pesos convertíveis por quatro idas às famosas praias do litoral havaneiro, para deixar pequenos grupos de turistas em Alamar, sequiosos do azul relaxante daquelas águas.

Cada peso convertível (CUC), a moeda que o Governo criou para impedir a circulação escancarada da divisa norte-americana na Ilha, corresponde a 25 pesos cubanos, o dinheiro que já só é quase simbólico por representar tão pouco na solução dos problemas de sobrevivência quotidianos que se colocam aos cubanos.

O Estado usa-o para pagar os salários da sua inflacionada função pública mas sabe, de antemão, que são outros malabarismos aperfeiçoados ao longo de décadas que asseguram a sobrevivência das pessoas.

Numa rápida aritmética, descobre-se que um funcionário com o salário mensal de 300 pesos cubanos – um professor universitário, engenheiro ou médico – ganha o equivalente a 12 pesos convertíveis, o que lhe permite levar para casa doze latinhas de cerveja Cristal ou comer uma pizza em lugares pensados para o turismo de larga escala, como a cafetería do cêntrico hotel Habana Libre, aberta as 24 horas do dia.



Chegou o cuentapropismo

Em bom rigor, comprar e vender pequenas utilidades como um par de jeans, uma camisa ou um pneu para acudir a aflição de um velho amigo, sempre foram operações marginais que os cubanos praticaram ao longo do tempo. As endémicas carências que resumem o percurso da Ilha ditaram esse caminho inevitável.

Porque Cuba não é um país que tenha sido confortado pelo destino como aconteceu com muitos outros com subsolo abastado de petróleo, diamantes, ouro, prata, manganésio, rios caudalosos à superfície e florestas exuberantes de solo fértil, as opções da governação viraramse, desde que a Revolução triunfou a 1 de Janeiro de 1959, na direcção de um esforço quase idílico de se democratizar a pobreza, assegurando a todos o mínimo para a sobrevivência e sem grandes vontades de se discriminar, na positiva, os que mais contribuem para o PIB pelo seu talento, dedicação e competência.

Vigorou, como em todo o lado onde se tentou aplicar a teoria socialista de Karl Marx, Frederic Engels e Vladimir Ilitch Lenine, o império do igualitarismo por decreto, fechando as portas aos factores estimulantes do progresso, que se encontram na necessidade inata que o homem tem de se superar competindo em sociedade.

Presa ela própria a uma inércia exasperante, a sociedade cubana viu os seus membros crescerem todos eles basicamente da mesma maneira, felizes com as mesmas alegrias, tristes com as mesmas desgraças e iguais nos mesmos apertos do estômago, da moda e das limitações de viajar para o estrangeiro.

Serão, estes, alguns dos pecadilhos que obrigam hoje a uma inflexão no rigor quase dogmático com que se absorveu e aplicou ao longo de meio século a ideologia que teve em Moscovo, ao tempo da poderosa URSS, a cátedra-mor.

Agora já se permite que todos vendam e todos comprem, na mais célebre das reviravoltas do quotidiano de uma nação em que muitas gerações cresceram com a verdade de que esse acto elementar do princípio de vida capitalista só acontecia nas “bodegas”, as nada requintadas lojecas de bairro onde, de cartão de racionamento na mão, se comprava o arroz, o sabão, o fósforo, o azeite, o sal, o ovo, o pão, o leite e outros quejandos de uma existência sem faustos. Nasceu, assim, um novo conceito no dinâmico linguajar dos cubanos: o cuentapropismo, ou seja, o trabalho por conta própria.

Mesmo assim…

A actividade empresarial privada a novidade com que o cubano de hoje aprende a lidar nalguns casos festivamente e, noutros, meio desconfiado nem por isso representa um escancarar de portas para um capitalismo que se pretende evitar a todo o custo.

Os negócios permitidos, para lá da imbricada teia burocrática que os envolve, estão condicionados por uma rígida lista de regras, que inclui, por exemplo, a definição do número de mesas que um restaurante privado não deve ultrapassar e a cobrança de taxas que boa parte dos novos aprendizes de negociantes acha excessiva.

“Há uma semana, o meu barbeiro duplicou o que cobra por um corte normal de cabelo, porque subiram-lhe para o dobro a taxa mensal que tem de pagar ao Estado. Nós os clientes é que nos tramamos, contas feitas”, queixa-se um cidadão, ele próprio um produtor artesanal de queijos que vende a vizinhos e amigos mas sem actividade comercial formalizada. Não faz parte, portanto, dos mais de 900 mil cubanos que já obtiveram licenças para desenvolverem os seus próprios negócios desde que a abertura foi decretada, há três anos.

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