domingo, 8 de fevereiro de 2009

Revolução Cubana: reforma econômica não significa reintrodução de relações capitalistas

Atílio Boron, sociólogo argentino | Foto: Correio da Cidadania 

Por Valéria Nader e Gabriel Brito no
Correio da Cidadania

Entrevista com Atílio Boron.

Correio Cidadania: Qual o real significado das medidas que Raul Castro tem tomado em Cuba, relativas à propriedade agrícola, à possibilidade de aquisição de artigos eletroeletrônicos, ao salário do funcionalismo e à circulação de residentes pelas áreas turísticas, dentre algumas com maior visibilidade em nossa mídia?

Atílio Boron: Essas medidas indicam que a reforma econômica dentro do socialismo está começando a ser levada à prática. É o início de um processo longo e difícil, porque quer se evitar, com toda a razão, aplicar reformas que impliquem de um jeito ou outro, a reintrodução de relações capitalistas em Cuba ou a ficção de um 'socialismo de mercado', onde o segundo terminaria devorando o primeiro.

Isso é o que, ao menos parcialmente, ocorreu na China e no Vietnã. E os cubanos não estão dispostos a incorrer no mesmo erro. Essa seria a rota reformista fácil, mas desencadearia uma enorme regressão econômica e social na revolução cubana que acarretaria no seu esgotamento prático. O outro caminho, das reformas dentro do socialismo, é mais longo, complexo e não existem antecedentes internacionais que permitam extrair algumas lições acerca do que se deve fazer ou não. As reformas da ex-União Soviética culminaram em um fenomenal retrocesso e com a Rússia convertida em um país capitalista. E na China e no Vietnã, como dito acima, se iniciou uma transição que, especialmente no segundo caso, bem poderia terminar igual à Rússia. A China é diferente, porque suas meras dimensões geográficas e demográficas unidas à fortaleza de seu Estado dão a possibilidade de fixar condições ao capital estrangeiro (e ao nacional) que nenhum outro país do mundo possui.

Por isso os cubanos estão na vanguarda da história, efetuando um experimento muito complicado. Por outro lado, a inédita circunstância de três furacões, que arrasaram a Ilha em 2008, obrigou a retardar o processo de reformas e a movimentos de grande cautela dentro de uma situação de emergência nacional. Além do mais, a continuação do bloqueio imperialista é outro obstáculo formidável em um processo de inovações como o que Cuba está ensaiando.

CC: A seu ver, o que caracterizaria atualmente alguns dos principais impasses da sociedade cubana nesse caminho de 'reformas econômicas no socialismo'?

AB: Creio que existem muitos fatores. Na resposta anterior já mencionei alguns muito importantes, como o caráter inédito de reformas socialistas dentro do socialismo, o bloqueio imperialista, a devastação dos furacões. Deveriam ser agregados outros: a existência de uma burocracia com pouquíssima vocação inovadora é um dos fatores que também explica a existência de tais impasses.

Outro elemento importante é a debilidade do debate econômico em Cuba, que nos anos iniciais da revolução soube ter uma notável densidade teórica, como mostra o intercâmbio entre Che Guevara e Bettelheim. Hoje, esse debate está ausente, ou tem uma incipiente presença. As reuniões anuais da ANEC foram um dos poucos âmbitos nos quais os economistas e os especialistas começaram a discutir tais temas, centrados em torno da grande pergunta: o que fazer diante da irreversível obsolescência do modelo de planificação ultracentralizada? Se esse modelo funcionou no passado, coisa que é motivo de intensas polêmicas, não cabe dúvida alguma de que já não funciona mais. Como substituí-lo?

Por outro lado, e para isso Fidel e Raul alertaram reiteradamente nos últimos anos, há uma tendência 'quietista' numa sociedade que após 50 anos de revolução se acostumou com que os problemas, qualquer um, sejam resolvidos pelo Estado. A conseqüência é a passividade e o imobilismo, e, para uma efetiva mudança, requer-se exatamente o contrário: ativismo e mobilização.

Por fim, creio que o partido deveria cumprir um papel educativo e mobilizador que não estou seguro de que esteja desempenhando com a intensidade necessária. Os esforços são parciais e insuficientes. E isso se agrava pela aparição de um importante hiato geracional entre os grandes líderes da revolução e a juventude, que considera a epopéia de Sierra Maestra com a distância dos acontecimentos históricos e quer a mudança já. Essa urgência desperta, em amplos setores da burocracia estatal, uma reação 'imobilista' que, longe de facilitar as mudanças, as tornas muito mais difíceis.

CC: Como será possível solucionar esses impasses? Cuba prosseguirá seu caminho socialista?

AB: Estou seguro de que sim, de que Cuba, que rompeu os moldes da tradição com o triunfo de sua revolução em um país da periferia e subdesenvolvido, e mesmo assim sobreviveu a meio século de bloqueios, atentados e sabotagens de toda ordem, também saberá responder exitosamente aos desafios atuais. Cuba é um país que conta com um amplo setor da população que possui elevado grau de consciência política, em proporção inexistente em qualquer outro país da América Latina e talvez do mundo.

É, ademais, uma população que foi muito bem organizada pelo partido e que sabe que uma eventual queda do socialismo faria a ilha retroagir ao século 19, com a máfia terrorista de Miami à cabeça e disposta à revanche pela ousadia de terem desencadeado a revolução. Sabe também que as conquistas da revolução em campos como saúde, educação, esportes e cultura colocam Cuba muito acima de qualquer país da América Latina, e que seriam varridos pelo retorno da direita em caso de fraquejarem as forças revolucionárias. Mas não há perigo: Fidel se manteve com os pés firmes quando o socialismo caía no mundo todo e a história, também neste caso, o absolveu, dando-lhe razão. E seu exemplo seguirá vigente, ainda mais depois de seu desaparecimento físico, para inspirar os milhões que estão dispostos a entregar sua vida pela defesa do socialismo e do comunismo em Cuba.

CC: Especula-se muito a respeito do tipo de socialismo que deverá existir em Cuba, aludindo-se, por exemplo, ao modelo chinês e também aos governos de Chávez, Morales e Correa, na América Latina, que têm feito um enfrentamento mais forte contra o neoliberalismo. Como você encara essa questão?

AB: Examinei um pouco disso de forma extensa em um livro que acabo de publicar e que se chama "Socialismo Século XXI: há vida depois do neoliberalismo?". A tese central é de que não há nenhum modelo ou tipo de socialismo que se possa imitar ou que se encontre pronto para ser aplicado. Cada processo é uma criação histórica única e, apesar de alguns 'denominadores comuns' – como, por exemplo, a intransigente batalha contra as relações capitalistas de produção (e não só contra o neoliberalismo) e a mercantilização de todos os aspectos da vida social, desde bens e serviços a idéias, religiões, política e o Estado –, as experiências concretas de construção socialista neste século serão muito distintas entre si. A experiência cubana é inimitável; Chávez também; o mesmo ocorre com Correa e Evo. Vale aqui o verso de Machado, com um par de pequenas mudanças: "militante, não há modelo, o modelo se faz ao caminhar".

Brasil, Argentina, Chile, na medida em que abandonem as ilusões centro-esquerdistas da 'terceira via' (que tanto mal nos causaram e tanto tempo nos fizeram perder), irão se incorporando a este projeto de construção socialista, porém, com características absolutamente próprias, idiossincráticas e irrepetíveis. E é bom que assim seja: tal diversidade de caminhos até o socialismo nos enriquece e nos torna mais fortes.

CC: Mas não existe o temor de que as forças imperialistas possam, de alguma forma, sobrepujar a resistência cubana?

AB: Não se conseguiu isto nestes 50 anos, quando a correlação mundial de forças era muito mais favorável ao imperialismo. Agora não há mais condições de se tentar algo assim. A incorporação de Cuba ao Grupo do Rio e à Unasul, assim como a expulsão do império na resolução da crise boliviana do ano passado, demonstra que, como diz o presidente Correa, "estamos vivendo uma mudança de época e não só uma época de mudanças".

Quem teria imaginado, apenas alguns anos atrás, que um presidente da Bolívia poderia expulsar o embaixador norte-americano sem ter que enfrentar, poucos dias depois, um golpe militar? Quem poderia pensar que a frota russa faria manobras no Caribe com a armada venezuelana sem desencadear uma exemplar represália dos EUA? Ou que o Equador poderia avisar a Washington que não renovará a concessão da base de Manta, estratégica para o controle político da região andina?

A reação imperialista não conseguiu acabar com a revolução cubana quando existiam condições internacionais propícias para tal. Perdeu a oportunidade e hoje essas condições não existem mais. A revolução chegou para ficar.

CC: Qual a expectativa em Cuba com o governo Obama e a relação que se espera travar com os estadunidenses a partir de agora?

AB: Não há grandes expectativas. Não pode haver grandes expectativas porque as declarações de Obama em relação a Cuba foram pouco felizes, para não falar o quão ruim foram as de Hillary Clinton em sua audiência no Senado de confirmação como secretária de Estado. Continuam exigindo "liberdades políticas para a oposição" sem reconhecerem que, em Cuba essa oposição é contra-revolucionária e está comprovadamente financiada e organizada pela CIA e as diversas agências do governo norte-americano. Existem até filmagens que constatam que essa oposição é, na realidade, um grupo de agentes do império operando em Cuba.

Obama disse que não pensa em levantar o bloqueio que foi condenado desde a Assembléia Geral da ONU até o papa João Paulo II, passando pelas mais importantes personalidades do mundo inteiro. Creio que os cubanos, com razão, não criam ilusão alguma com Obama e seria bom que o resto da América Latina tampouco as criasse. Se por algum motivo Obama saísse do script e tivesse gestos concretos de abertura, compreensão e maior racionalidade com Cuba, neste caso, Havana responderia positivamente.

CC: Como os cubanos têm sentido o atual momento? A despeito da persistência de um forte apoio à experiência revolucionária, segundo o relato anterior, não se percebe a ampliação de algum tipo de ambivalência da população?

AB: O apoio à revolução segue impressionante. Obviamente, não é unânime, e nem poderia ser. Mas é muito forte. Isso não significa que aprovem todas as políticas tocadas pelo governo revolucionário. Há muitas críticas quanto à escassa oferta de alimentos, os baixos salários, a moradia, o burocratismo, o limitado acesso à internet ou as restrições para viajar. Porém, as pessoas sabem que tais problemas se originam em causas que em boa medida excedem o que o governo pode fazer ou controlar. O bloqueio custou a Cuba quase 100 mil milhões de dólares, mais de duas vezes o PIB da ilha. O impacto sobre as finanças públicas foi demolidor.

Além do mais, devido à permanente agressão de Washington, Cuba deve destinar gastos à defesa em uma proporção muito elevada de seu orçamento público. Se não existissem essas duas condições, quer dizer, sem bloqueio e sem ameaças permanentes de ataque do exterior, Cuba disporia de muito mais recursos para incentivar a produção de alimentos, construir casas, melhorar os salários. No entanto, tais condições não existem, lamentavelmente. Mas é claro que, mesmo assim, algumas coisas poderiam melhorar: por exemplo, adotando uma política mais flexível em relação ao campesinato para incrementar a oferta alimentícia ou para explorar terras que seguem sem ser cultivadas.

Aqui pesa o papel de uma burocracia que se 'conservatizou' e que não está pensando em uma alternativa "pós-planificação centralizada". Outras restrições também causam mal-estar na população: o transporte era um problema gravíssimo, sobretudo em Havana, mas no último ano houve uma considerável evolução graças ao apoio da China. A Internet é um problema, pois os EUA sancionam qualquer país que facilite a banda larga a Cuba – agora, a Venezuela está fazendo um cabo submarino para resolver o problema.

Enfim, há queixas, até porque o povo cubano é muito extrovertido e não tem temor algum em expressar suas queixas e demandas. Porém, essas se dirigem fundamentalmente a algumas políticas, e não ao regime revolucionário ou ao socialismo. Muito menos à figura de Fidel. Crêem, e com razão, que pode existir um socialismo mais eficiente, com maior capacidade de proporcionar bem-estar à população. Porém, não esquecem que, apesar de todas as limitações e restrições, Cuba conta com a taxa de mortalidade infantil mais baixa das Américas, igual à do Canadá e menor que a dos EUA – e três ou quatro vezes mais baixa do que a de países potencialmente riquíssimos, como Argentina e Brasil.

CC: Como se viu na Cúpula das Américas, na Bahia, os pedidos de governantes pelo fim do embargo são cada vez mais freqüentes – mesmo a ONU se manifestou em igual sentido, pela 17ª vez, aliás, em 2008. Existe na ilha a ilusão de finalmente se inserir e participar plenamente da economia mundial, ou, por outra, ao menos estreitar parcerias com parte das nações latino-americanas?

AB: O cubano é um povo muito culto e que aprendeu muito com a revolução. Não abriga ilusão alguma porque sabe que o imperialismo nunca deixará de hostilizar Cuba – e, portanto, sua inserção na economia mundial, dominada por grandes transnacionais, muitas delas norte-americanas ou de países governados por aliados ou clientes da Casa Branca, estará repleta de dificuldades. Não acreditam que no plano imediato os EUA levantem o bloqueio (não se trata de um embargo, senão de um bloqueio, que é muito mais grave), ainda que, se o fizesse, seria uma grande notícia.

Porém, ao poder comercializar livremente com os países da América Latina e Caribe, unida a seu crescente relacionamento com China, Rússia e outras grandes economias, Cuba pode resolver grande parte de seus problemas. Por isso é de suma importância que as maiores economias da América Latina – como Brasil, México e Argentina – adotem uma política de solidariedade militante com a revolução cubana. Uma revolução que exporta médicos, enfermeiros, odontologistas, professores, técnicos esportivos; uma revolução que ajuda a desterrar o analfabetismo na Bolívia e na Venezuela; que devolve a vista a milhões de pessoas; que vende vacinas para combater doenças à margem e abaixo dos preços de mercado. Uma revolução, em suma, que sempre foi solidária com nossos povos e que merece nossa mais profunda solidariedade.

Chega de pensar, para os que ainda têm dúvidas, no que teria sido da América Latina se a revolução cubana tivesse sido derrotada em Playa Girón ou se, após a imposição da União Soviética, Cuba chegasse à conclusão de que deveria retornar ao capitalismo o mais rápido possível. Se tal tivesse ocorrido na América Latina, não existiria um Chávez, um Evo, um Correa, um Lugo, para não falar da 'centro-esquerda'; estaríamos convertidos num imenso protetorado norte-americano, onde as figuras mais à esquerda da região seriam políticos como Álvaro Uribe, Alan Garcia ou Oscar Arias. Graças à inquebrantável presença da revolução cubana economizamos esse pesadelo. Por isso, nossa dívida com Cuba será eterna e tudo o que façamos para ajudar a Ilha será pouco.

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