José Martí em Cuba | Foto: Eupassarin |
Postamos abaixo mais um texto sobre José Martí, devido as comemorações dos 158 anos de nascimento do poeta cubano. O artigo selecionado dessa vez é "Revolucionaria mente: José Martí (1835-1895)"de autoria de Jefferson Vasques, militante-educador do "movimento Camará", poeta - autor do livro "Subverso (barulho no escuro dos corpos)" e blogueiro - editor do blog "EU Passarin". O texto foi publicado originalmente no extinto jornal "Gerais" que circulou, anos atrás, no movimento estudantil da UNICAMP e também no blog do autor.
AO MORRER em combate, em 19 de maio de 1895, no local conhecido como Dois Rios, no oriente cubano, na guerra que havia preparado contra a Espanha, José Martí tinha apenas 42 anos e já se convertera em um dos grandes heróis de “Nossa América”. Um dia antes, em carta inconclusa a seu amigo mexicano, Manuel Mercado, escreveu:
“Estou todos os dias na iminência de dar a vida por meu país e por meu dever – pois essa é a minha decisão e estou disposto a realizá-la – de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os Estados Unidos estendam seu domínio pelas Antilhas e caiam, com essa força mais, sobre Nossa América. Tudo quanto fiz até hoje, e continuarei fazendo, é para realizar essa missão (…) impedir que em Cuba se abra, pela anexação dos imperialistas e dos espanhóis, o caminho que facilitará – e com o nosso sangue não permitiremos – a anexação dos povos de Nossa América pelo Norte violento e brutal que os deprecia…”
Desde sua adolescência foram grandes as lutas e os sacrifícios pela independência de Cuba e a felicidade de todos os cubanos. Com apenas 16 anos tornou-se preso político e, pouco tempo depois, com a deportação, teve início seu exílio. Num longo peregrinar por países da América Latina e Caribe aprendeu a conhecer e a amar os povos de Nossa América, desde o Rio Bravo até a Patagônia, e a lutar por sua integração. Amou sua pátria tanto como a todas e a cada um dos povos irmãos da América Latina e Caribe. Nos legou seu conceito universal de pátria: “Pátria é humanidade”.
Por sua fidelidade à defesa dos interesses dos povos latino-americanos, os governos do Uruguai, Paraguai e Argentina o designaram Cônsul dos seus países em Nova York. O Uruguai o nomeou, além disso, seu representante na Conferência Monetária Internacional, que se realizou em Washington; e de tal forma se destacou que se tornou o responsável pela derrota da tese dos Estados Unidos, que se propunham a ser os maiores produtores de prata, e defendiam o bimetalismo das moedas (que poderiam ser fundidas em ouro ou prata), o que tornaria os países latino-americanos dependentes, de forma quase exclusiva, dos Estados Unidos e alijada de maior aproximação com os países europeus. Os mais de 15 anos vividos nos Estados Unidos permitiram-lhe apreciar as virtudes do seu povo e os projetos expansionistas dos seus dirigentes: “vivi dentro do monstro e conheci suas entranhas”.
A palavra de Martí é a todo o momento um instrumento educador de primeira ordem, e a educação que o interessa é a que conduza o homem latino-americano a ser dono de si, universal e livre por sua cultura, autóctone por seus valores, lúcido ante todos os perigos, fraterno com todos os homens de boa vontade. Sua proximidade das dores e virtudes da raça negra na América e do esplendor destruído das culturas indígenas está na base do seu profundo americanismo literário. Sentia-se espiritualmente mestiço, irmão do escravo, do preso e do pária.
Entendeu a América por dentro, o que se pode ver em suas assombrosas evocações das “Las ruínas índias” ou de “La pampa”. Partindo dessa capacidade de identificação através do tempo e do espaço, pôde chegar a ser o primeiro latino-americano, filho de todos os povos do continente e das ilhas do Caribe, primogênito de Bolívar e pai de Davi, das ilhas Turcas, que dele se despediram chorando.
Revolucionaria mente: José Martí (1835-1895)
Por Jefferson Vasques
AO MORRER em combate, em 19 de maio de 1895, no local conhecido como Dois Rios, no oriente cubano, na guerra que havia preparado contra a Espanha, José Martí tinha apenas 42 anos e já se convertera em um dos grandes heróis de “Nossa América”. Um dia antes, em carta inconclusa a seu amigo mexicano, Manuel Mercado, escreveu:
“Estou todos os dias na iminência de dar a vida por meu país e por meu dever – pois essa é a minha decisão e estou disposto a realizá-la – de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os Estados Unidos estendam seu domínio pelas Antilhas e caiam, com essa força mais, sobre Nossa América. Tudo quanto fiz até hoje, e continuarei fazendo, é para realizar essa missão (…) impedir que em Cuba se abra, pela anexação dos imperialistas e dos espanhóis, o caminho que facilitará – e com o nosso sangue não permitiremos – a anexação dos povos de Nossa América pelo Norte violento e brutal que os deprecia…”
Desde sua adolescência foram grandes as lutas e os sacrifícios pela independência de Cuba e a felicidade de todos os cubanos. Com apenas 16 anos tornou-se preso político e, pouco tempo depois, com a deportação, teve início seu exílio. Num longo peregrinar por países da América Latina e Caribe aprendeu a conhecer e a amar os povos de Nossa América, desde o Rio Bravo até a Patagônia, e a lutar por sua integração. Amou sua pátria tanto como a todas e a cada um dos povos irmãos da América Latina e Caribe. Nos legou seu conceito universal de pátria: “Pátria é humanidade”.
Por sua fidelidade à defesa dos interesses dos povos latino-americanos, os governos do Uruguai, Paraguai e Argentina o designaram Cônsul dos seus países em Nova York. O Uruguai o nomeou, além disso, seu representante na Conferência Monetária Internacional, que se realizou em Washington; e de tal forma se destacou que se tornou o responsável pela derrota da tese dos Estados Unidos, que se propunham a ser os maiores produtores de prata, e defendiam o bimetalismo das moedas (que poderiam ser fundidas em ouro ou prata), o que tornaria os países latino-americanos dependentes, de forma quase exclusiva, dos Estados Unidos e alijada de maior aproximação com os países europeus. Os mais de 15 anos vividos nos Estados Unidos permitiram-lhe apreciar as virtudes do seu povo e os projetos expansionistas dos seus dirigentes: “vivi dentro do monstro e conheci suas entranhas”.
A palavra de Martí é a todo o momento um instrumento educador de primeira ordem, e a educação que o interessa é a que conduza o homem latino-americano a ser dono de si, universal e livre por sua cultura, autóctone por seus valores, lúcido ante todos os perigos, fraterno com todos os homens de boa vontade. Sua proximidade das dores e virtudes da raça negra na América e do esplendor destruído das culturas indígenas está na base do seu profundo americanismo literário. Sentia-se espiritualmente mestiço, irmão do escravo, do preso e do pária.
Entendeu a América por dentro, o que se pode ver em suas assombrosas evocações das “Las ruínas índias” ou de “La pampa”. Partindo dessa capacidade de identificação através do tempo e do espaço, pôde chegar a ser o primeiro latino-americano, filho de todos os povos do continente e das ilhas do Caribe, primogênito de Bolívar e pai de Davi, das ilhas Turcas, que dele se despediram chorando.
Arte & Vida irmanadas
“Quem é o ignorante que sustenta que a poesia não é indispensável aos povos? Há pessoas de tão curta visão mental, que crêem que toda a fruta se resume a sua casca. A poesia, que congrega ou desagrega, que fortifica ou angustia, que sustenta ou demoli as almas, que dá ou tira dos homens a fé e o alento, é mais necessária aos povos que a própria indústria, pois esta lhes proporciona o modo de subsistir, enquanto que aquela lhes dá o desejo e a força da vida.” José Martí
Nas mais significativas páginas de José Martí, desde “El presídio político en Cuba” (1871) até seu último “Diário de Campaña” (1895), o conteúdo revolucionário e a criação artística resultam inseparáveis. Nasce desse feito a grande dificuldade para apresentar uma seleção de sua obra especificamente “literária”, da qual deveriam ser excluídos aqueles textos políticos (artigos como “Nuestra América”), discursos (como “Con todos y para el bien de todos”), e os testemunhos de sua ação revolucionária em cartas e diários. São exatamente nesses textos onde se encontram, com freqüência, o mais fecundo e o mais perdurável de sua expressão.
Compreendemos, então, que o cerne dessa dificuldade consiste na essência de Martí como escritor, caracterizado por uma obra em que literatura e revolução, literatura e serviço, literatura e redenção histórica do homem são elementos inextrincáveis, unidos desde o impulso original da palavra. A rigor não é possível despojar nenhuma página de Martí de seu caráter nativamente ético, moralizador, e, em seu sentido mais profundo, político e revolucionário. Tal é a substancia mesma de sua palavra, tanto em sua obra lírica, como na periodística, como na obra de propaganda e de conscientização para a guerra libertadora e antiimperialista.
Em Martí, vida e arte, realidade e imaginação são irmãs:
Duas Pátrias
Duas pátrias tenho eu: Cuba e a noite.
Ou são uma as duas? Mal retira
sua majestade o sol, com largos véus
e um cravo na mão, silenciosa,
Cuba, qual viúva triste me aparece.
Eu sei qual é esse cravo sangrento
que em sua mão treme! Está vazío
meu peito, destroçado está e vazío
onde estava o coração. Já é hora
de começar a morrer. A noite é boa
para dizer adeus. A luz estorva
a palavra humana. O universo
fala melhor que o homem.
Como bandeira
que convida a batalhar, a chama vermelha
da vela flameja. As janelas
abro, já apertado em mím. Muda, rompendo
as folhas do cravo, como uma nuvem
que turva o céu, Cuba, viúva, passa…
Um outro modernismo
Nos mesmos anos em que Stéphane Mallarmé levava até suas últimas conseqüências o sentido sagrado, ou até mesmo religioso, da escritura, José Martí dava um exemplo magno da escritura como encarnação.
O primeiro parece inscrever-se na linhagem iniciada no Ocidente pelo Oráculo de Delfos que, segundo Heráclito, “não diz, nem oculta, apenas sinaliza”: essência do signo como ídolo da literatura, que vem desde o hieróglifo até a letra impressa (e seus brancos).
O segundo pode remontar-se originariamente à idéia evangélica do verbo encarnado a serviço dos homens. Dessa idéia evangélica, excluindo-se o sentido teológico, se desprende uma concepção da palavra humanizada como participação e sacrifício no mundo laico e político. Sua escritura não é portadora de uma liturgia senão de uma paixão; não se define pela espacialidade senão pela temporalidade; não tem um interesse icônico, senão um impulso missionário e redentor. Deste modo, Martí se situa na antípoda da tendência dominante nas décadas finais do século XIX – parnasianismo, decadentismo, modernismo em sua primeira fase -, para converter-se no maestro e arauto de uma literatura de serviço e agonia cujo fundamento não é o signo mas a voz, como ocorrerá também, por exemplo, em Miguel de Unamuno e em César Vallejo.
O que está presente em todas as páginas de Martí, o que não falta nunca, nos escapa. Não nos escapa por sutileza de conteúdo (seu pensamento é sempre claro) nem por obscuridade da expressão (sua palavra é sempre radiante). Nos escapa por sua presença, como a luz em que se encontra imersa uma paisagem. Gostaríamos de apresentar essa luz, saber o que significa, o que nos diz. “O discurso do escritor – observa Roland Barthes – diz o que diz mas também diz que é literatura”. Não é assim o caso de Martí. Sua literatura não diz que é literatura (mesmo que também o seja): por debaixo de seus outros dizeres, diz que é vida, que é compaixão, que é homem. Ou melhor, não diz em realidade: é vida, é homem, é fome e sede de justiça. Sendo se diz: não há fissura para um distanciamento do ser e do dizer. A estética de Martí fulmina a ficção, encarna o que diz e nos remete sempre a um campo de luta extra-literário: o da eticidade militante.
Meus versos vão revoltos…
Meus versos vão revoltos e acesos
como meu coração: bom é que corra
manso o arroio que em fácil plano
entre gramas frescas desliza:
Ai!; mas a água que do monte vem
arrebatada; que por fundas fendas
desce, destroçada; que em sedentos
pedregulhos tropeça, e entre rudes
troncos salta em quebrados borbotões,
Como, despedaçada, poderá logo
qual cão de salão, jorrar submissa
no jardím podado com as flores,
ou em aquário de ouro ondear alegre
para o querer de damas cheirosas?
Inundará o palácio perfumado,
como profanação: entrará como fera
pelos brilhantes gabinetes, onde
os bardos, lindos como abades, fiam
tenras quintilhas *1 e rimas doces
com agulha de prata em branca seda.
E sobre seus divãs espantadas
as senhoras, os pés de meia suave
recolherão, – enquanto a água turva,
falsa, como tudo o que expira,
beija humilde o chapín *2 abandonado,
e em bruscos saltos alterada morre!
*1: forma poética de 5 versos
*2: calçado exótico, típico da nobreza
Eticidade Militante
Escrever a partir do que vem de si seria a única maneira de manter a palavra viva. Glosando um apontamento de Martí, se pode afirmar que para “renovar a forma poética” (em verso ou prosa) se faz necessário “escrever vivendo”, o que significa, no contexto martíniano, escrever o que a vida nos dita com estrita fidelidade às suas formas fluídas, à sua mutante natureza e sentido; e, também, assumindo e amando a realidade, em perene combustão de sacrifício. Não esqueçamos como sintetizou Martí sua própria vida: “Tenho padecido com amor”. Esta identificação de Arte e Vida, de forma e amoroso sacrifício é sua principal diferença com o tipo de modernismo representado em Cuba por Julian Del Casal, e desde logo com as correntes parnasianas, esteticistas e arte-puristas. Essa identificação, por sua vez, exige dois princípios: “a expressão sincera” e “o pensamento livre”.
A sinceridade de Martí não é somente um valor ético, mas também estético, enquanto inclui os valores de fidelidade e participação, isto é, comprometimento. O ajuste intrínseco entre conteúdo e forma se origina na verdade do estilo, e essa verdade só pode ser alcançada mediante a participação efetiva. Essa liberdade, com sua retórica sempre em estado nascente e criador, tem que romper sem cessar as travas da outra retórica, a esclerosada e escravizadora.
Em Martí se apresenta as sementes do que poderá ser nossa literatura quando a justiça e a arte puderem realmente consumar-se e coincidir. Uma literatura dona da imaginação assim como da realidade, cujo centro seja o homem inteiro e novo, trabalhador e artista, amoroso e justiceiro. Martí era um homem comprometido e desse comprometimento nascia sua liberdade. Suas palavras assim foram, livres e comprometidas:
“Não há letras, que sejam expressão, enquanto não houver essência que expressar nelas. Nem haverá Literatura Hispano-Americana, enquanto não houver Hispano-América”.
A sinceridade de Martí não é somente um valor ético, mas também estético, enquanto inclui os valores de fidelidade e participação, isto é, comprometimento. O ajuste intrínseco entre conteúdo e forma se origina na verdade do estilo, e essa verdade só pode ser alcançada mediante a participação efetiva. Essa liberdade, com sua retórica sempre em estado nascente e criador, tem que romper sem cessar as travas da outra retórica, a esclerosada e escravizadora.
Em Martí se apresenta as sementes do que poderá ser nossa literatura quando a justiça e a arte puderem realmente consumar-se e coincidir. Uma literatura dona da imaginação assim como da realidade, cujo centro seja o homem inteiro e novo, trabalhador e artista, amoroso e justiceiro. Martí era um homem comprometido e desse comprometimento nascia sua liberdade. Suas palavras assim foram, livres e comprometidas:
“Não há letras, que sejam expressão, enquanto não houver essência que expressar nelas. Nem haverá Literatura Hispano-Americana, enquanto não houver Hispano-América”.
Leia todos os textos do Especial: José Martí: 158 anos.
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