Santiago Feliú veio ao Brasil para lançamento do seu livro “Canto épico a la ternura”. Foto: Guilherme Santos/Sul21 |
No ano do cinquentenário de sua morte, a figura de Ernesto Che Guevara segue influenciando jovens no mundo inteiro, seja como inspiração política, seja como um símbolo pop de rebeldia. Mas qual é o mesmo legado e a atualidade desse jovem argentino que, após ser um dos líderes da Revolução Cubana junto com Fidel Castro, trocou os postos que ocupava em ministérios do governo revolucionário, para se engajar na luta antiimperialista no Congo e, mais tarde, na Bolívia, onde acabaria por ser morto aos 39 anos de idade?
Pesquisador da vida de Che, o jornalista e professor cubano Santiago Feliú vem reunindo desde a década de 90 canções compostas em homenagem à memória do jovem médico argentino que virou revolucionário. Mais do que simples homenagem, a preocupação central de Feliú é resgatar o que chama de face ética de Che Guevara, da exemplaridade com que este exerceu a sua luta política. Em entrevista ao Sul21, Feliú fala sobre a atualidade da figura de Che e de seu legado. “Essa atualidade tem a ver, não com o Che heróico e guerrilheiro da luta armada, mas sim o Che ético, que foi ministro em várias pastas no início da Revolução Cubana e que acreditava em determinados valores e, em especial, no melhor do humano”.
Santiago Feliú veio a Porto Alegre a convite da Associação Cultural José Martí para o lançamento da segunda edição do seu livro “Canto épico a la ternura” em homenagem à obra e ao pensamento de Che Guevara. Na entrevista, ele também fala sobre o presente de Cuba e sobre os desafios colocados para o país após a morte de Fidel Castro e aposentadoria de Raúl Castro.
Sul21: Você pesquisou e reuniu canções escritas e compostas em vários países da América Latina para homenagear a vida e a trajetória política de Che Guevara. Como nasceu esse trabalho? Como é que você definiria o legado de Che hoje? Ele segue presente e representa uma figura forte e inspiradora politicamente na América Latina?
Livo de Feliú terá lançamento em Santos, Floripa e Belo Horizonte. Foto: Guilherme Santos/Sul21 |
Santiago Feliú: A primeira edição foi lançada em 1993 no Uruguai, com 40 canções. Depois, o livro foi lançado em sete outros países e hoje reúne 158 canções para o Che, de 100 autores, de 17 países. A figura do Che está mais presente que nunca. Muitas das coisas que ele disse hoje tem muita vigência. Essa atualidade tem a ver, não com o Che heróico e guerrilheiro da luta armada, mas sim o Che ético, que foi ministro em várias pastas no início da Revolução Cubana e que acreditava em determinados valores e, em especial, no melhor do humano. Houve uma manipulação da figura dele, como se a sua trajetória se resumisse à luta armada. Ele, de fato, defendeu que, nos anos 60, a luta armada era a via para a libertação da América Latina, mas não era o único caminho. Uma prova disso é uma dedicatória que ele escreveu para o presidente chileno Salvador Allende ao dar a ele um exemplar do único livro que realmente escreveu, “A guerra de guerrilhas”. Nesta dedicatória, ele escreveu: Para Salvador que, por outros meios, quer o mesmo que nós”.
Outro aspecto que é pouco difundido sobre o Che é a importância fundamental que ele dava aos meios de comunicação. Não havia uma visita que ele fizesse a qualquer país do mundo – e ele visitou 56 países – , que ele não se reunisse com a imprensa. E quando regressava a Cuba a primeira coisa que fazia era se reunir com a imprensa e fazer um relato da viagem. Ele tinha muita clareza sobre o poder da imprensa que não é mais o quarto poder, como se chegou a dizer. Em muitos lugares, representa, de fato, o primeiro poder, capaz de eleger e derrubar presidentes, como vocês sabem muito bem aqui no Brasil.
Então, respondendo a primeira parte da tua pergunta. Sim, ele está presente e atual em muitas coisas. Agora, essa presença é forte? Lamentavelmente, não. Uma das razões disso é essa redução da trajetória dele à luta de guerrilha. Houve também uma grande operação de marketing que o transformou em uma figura pop. Esse não é o Che que queremos. Ele não é um cartaz ou uma canção. A mim me interessa principalmente, com esse livro, que os jovens ouçam uma canção, gostem dela e se interessem em conhecer o pensamento de Che que está marcado profundamente pela defesa da ética, da honestidade em todas as dimensões da vida, da transparência, da solidariedade, de uma consciência crítica e autocrítica. Ele disse que não devemos ocultar os nossos erros porque os que vem atrás de nós podem aprender com eles. Esse é o Che que precisa ser resgatado.
Sul21: Esse resgate precisa ser feito também dentro de Cuba? Há necessidade, em nível interno, dessa valorização maior do Che ético em detrimento da figura heróica do guerrilheiro?
Santiago Feliú: Em Cuba, o que defendemos é justamente essa dimensão ética. Nós travamos uma grande batalha contra a corrupção. Em uma reunião, quando era ministro da Indústria, Che disse: “En socialismo, se pode meter la pata, el que no pode se meter es la mano”. Ou seja, no socialismo, você pode se equivocar, mas não pode roubar. Em Cuba, como em qualquer outro lugar do mundo, há corrupção, mas não há impunidade. Nós temos três ministros presos e fomos o único país do mundo a fuzilar um ministro do Interior. O pensamento do Che era muito claro sobre esse tema e é esse pensamento que queremos valorizar.
Sul21: Na sua opinião, a opção que ele fez de deixar os cargos que ocupava em ministérios para se engajar em lutas revolucionárias em outros países, acabou influenciando, de algum modo, os próprios rumos da Revolução Cubana?
Santiago Feliú: Creio que não. É importante ter em mente o contexto dessa escolha. Era um momento épico. Estamos falando de 1965, um momento de muita agressividade do imperialismo em nível mundial. Naquele ano, o imperialismo assassinou Patrice Lumumba, grande líder do Congo, invadiu o Vietnã e a República Dominicana. Ou seja, os Estados Unidos invadiram, ao mesmo tempo, a África, a Ásia e a América Latina. A mensagem de Che, neste contexto, foi de que a única maneira de derrotar o imperialismo era criando dois, três, muitos Vietnãs. Ele acreditava nisso. Era preciso enfrentar o imperialismo em vários lugares. Em função disso, a partir de uma solicitação feita por congoleses, ele foi para lá. A operação no Congo foi um fracasso. Ele regressa a Cuba e, em 1966, decide ir para a Bolívia, que foi a sua última missão. Che queria ir diretamente do Congo a Bolívia, mas foi convencido por Fidel a ir para a Cuba para poder preparar com mais tempo essa missão. Fidel sempre criticou um traço de Che: como líder, era muito impetuoso e não se preservava. Isso acabou se comprovando na Bolívia.
Outro elemento importante para compreender essa decisão é que ele considerava que a Revolução Cubana estava consolidada. Em 1965, a economia começava a funcionar bem e, politicamente, a revolução estava bem posicionada. Ele considerava que, neste contexto, era apenas um ministro mais dentro da revolução. A vida depois mostrou que isso não era assim e que ele fez muita falta. Em uma carta, ele disse a Fidel mais ou menos o seguinte: estou fazendo o que você, pela posição que ocupa hoje na condução da Revolução, não pode fazer.
Mas, respondendo a tua pergunta, não acredito que essa decisão condicionou os rumos da Revolução que seguiu se desenvolvendo e teve seu melhor momento nos anos 80, mostrando que o socialismo era factível e realizável. Depois, com a queda do Muro de Berlim e da União Soviética, a revolução entrou em uma crise econômica, embora politicamente tenha conseguido se manter, sob a liderança de Fidel. É preciso ter em mente uma coisa: não há Che sem Fidel. Che, com toda sua grandeza, tornou-se Che porque teve a influência de Fidel, ainda nos anos 50. Se isso não tivesse acontecido ele teria sido um jovem argentino com muitas idéias e espírito de aventura, mas sem um caminho seguro.
Sul21: O que achou da figura do Che retratada no filme realizado pelo cineasta brasileiro Walter Salles?
Santiago Feliú: Gostei muito. Achei um filme belíssimo. Até onde conheço, há nove filmes de ficção sobre Che. Alguns são terríveis. O filme de Walter Salles sobre o jovem Che, baseado nos Diários de Motocicleta, é excelente e fundamental especialmente para o público jovem. A primeira viagem que Che fez, em 1951, antes dessa retratada no filme de Walter Salles, foi para conhecer o norte da Argentina. Ele esteve no Brasil também nesta ocasião. Inclusive esteve aqui em Porto Alegre, em 1951, como enfermeiro em um navio. Ele era puro Ernesto nesta época.
Sul21: Qual sua avaliação sobre o presente de Cuba, pós-Fidel?
Santiago Feliú: O pós-Fidel já vinha sendo preparado há algum tempo, em função do período de enfermidade pelo qual ele passou. O presente de Cuba é forte e difícil, mas quando olhamos para a América Latina e para o resto do mundo, estamos melhor que muita gente. Temos muitos problemas de ordem econômica. Se o Brasil, que é um enorme país com petróleo, água e uma agricultura potente, não pode viver só e precisa inserir-se no mundo, você pode imaginar o quanto é difícil para Cuba. O petróleo que temos garante 60% das nossas necessidades para que a economia funcione. Politicamente, a situação de Cuba é estável. Economicamente, é instável, mas capaz de resolver os nossos problemas básicos.
A crise na Venezuela, que estava nos ajudando na questão do fornecimento de petróleo, está nos forçando, pela terceira vez, a buscar uma reacomodação no mercado mundial, via Ucrânia, Argélia e alguns países da América Latina. Mas o país funciona. Cuba é mais ou menos o Rio Grande do Sul, com 11 milhões de habitantes. Todo mundo trabalha e a taxa de desemprego é mínima. Os níveis de educação e de saúde são reconhecidos até por nossos inimigos. Cuba tem segurança social. As pessoas podem caminhar pelas ruas à noite sem medo de serem assaltadas, mortas ou violentadas. Cerca de 89% dos cubanos têm casa própria e não tem uma espada sobre a cabeça ameaçando de despejo pela falta de pagamento de uma prestação. Os Estados Unidos viveram esse drama há quatro anos. O que Cuba não tem? Muitas coisas. Não pode ter o último carro, a última moto, o último celular…É um país concebido para a grande maioria. Um dos desafios para o futuro está relacionado ao surgimento de uma nova classe social.
Sul21: Qual a natureza e o tamanho dessa nova classe social?
Santiago Feliú: Cuba tem aproximadamente 11 milhões de habitantes e uma população economicamente ativa de cerca de 6 milhões. Há muitos idosos em Cuba. Um pouco mais de um milhão de pessoas têm mais de 60 anos. É o país mais envelhecido da região. Mas a minha geração ainda trabalha. Estamos desenhando agora um novo modelo econômico com um importante setor privado que, em Cuba, eufemisticamente, está sendo chamado de trabalhadores por conta própria. Estamos falando de algo em torno de 580 mil pessoas. Um dos desafios que temos que enfrentar é que mais de 80% desses trabalhadores não produzem nada. Trabalham no setor de comércio e serviços. Agora, estamos tratando de fomentar esse setor privado para que ele produza.
Durante 30 ou 40 anos, o Estado foi o pilar central da economia em Cuba. O Estado segue coordenando o eixo da economia. Cerca de 3,8 milhões de trabalhadores dependem do Estado. E há cerca de 1 milhão de trabalhadores que estão organizadas de forma cooperativada, com cooperativas estatais e mistas. Então, hoje temos um setor econômico privado, com renda maior que a dos trabalhadores do setor estatal, que ainda não está, porém, organizado como classe. Ele ainda não se expressa politicamente, o que não quer dizer que isso não venha acontecer no futuro. Hoje, em Cuba, temos um partido político que governa e cerca de 90 pequenos partidos que não prosperam porque estão muito vinculados aos Estados Unidos, inclusive financeiramente. É preciso ver o que acontecerá quando existir um partido que não seja pago pelos Estados Unidos. A oposição que existe hoje em Cuba é esta muito vinculada aos Estados Unidos. Agora, em 2018, teremos eleições. Raúl já anunciou sua aposentadoria. Acabou a era dos Castro.
Sul21: Quem deve sucedê-lo?
Santiago Feliú: Um dos principais nomes é o do vice-presidente Miguel Diaz-Canel, de 55 anos, pertencente a uma geração já nascida na Revolução. É um quadro que começou a sua militância na juventude e foi se formando no partido, chegando ao Comitê Central. Mas, pelo sistema de votação cubano, pode ser outra pessoa também. Há outros nomes que são muito populares como o de dois dos cinco heróis cubanos que estiveram presos durante anos nos Estados Unidos. Um deles é Gerardo Hernández Nordelo, de 53 anos, o mais jovem de todos eles, simpático e inteligentíssimo. Outro é René González Sehwerert, de 60 anos, professor e aviador, que também é muito carismático. Há muitos nomes qualificados para essa renovação. Mas o mais provável é que seja Diaz-Canel mesmo.
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