sábado, 15 de março de 2014

Cuba: renovando a Revolução

Todos em Cuba, população e governo, partido e sindicatos, estão plenamente conscientes da necessidade urgente de eliminar a existência das duas moedas


Por Eric Nepomuceno na Carta Maior

Um dos pesadelos infernais do cotidiano dos cubanos é ganhar numa moeda e enfrentar os preços em outra. A distorção causada pela convivência entre o peso cubano (o CUP) e o peso conversível (o CUC) afeta todos os trabalhadores que recebem seus salários em moeda nacional. É que os preços de praticamente todos os bens de consumo são calculados em CUC. Como um CUC equivale a 25 pesos, o salário de um médico, por exemplo, mal alcança para comprar um par de tênis para seu filho. Usar a internet por uma hora pode significar um terço do salário médio de um engenheiro. E por aí vai.

Todos em Cuba – população e governo, partido e sindicatos – estão plenamente conscientes da necessidade urgente que eliminar a existência das duas moedas, e desta forma acabar com uma divisão radical na sociedade. Os que têm acesso ao CUC, a moeda conversível, dispõem de um poder aquisitivo muitas vezes maior dos que ganham seu salário na moeda nacional.

Remessas de parentes que vivem no exterior criaram uma nova casta numa sociedade que vive uma Revolução que deveria criar a igualdade. Quem trabalha no setor de turismo, por exemplo, seja porteiro ou garçom, motorista ou telefonista, ganha dez vezes mais que um físico nuclear ou um médico. O salário dos funcionários públicos – e eles conformam 75% da força de trabalho da Ilha – é o mais pressionado. Mesmo tendo uma bonificação em CUC, mal dá para chegar ao meio do mês. Ao fim, nem pensar. É preciso buscar ‘complementações paralelas’.


O salário médio em Cuba é de 466 pesos cubanos, o que equivale a uns 19 CUC. Ou seja: se algum familiar que mora no exterior mandar 200 dólares por mês para seus parentes na Ilha, estará multiplicando por dez o salário médio dos trabalhadores.

Um médico pode chegar a ganhar 900 pesos cubanos. Um garçom de restaurantes que atendem turistas ganha dez vezes isso só em gorjetas. Tanto um como outro pagam roupas, aparelhos domésticos e comida cujos preços são calculados em CUC. Claro que o custo de vida de um e de outro é totalmente distorcido.

Quando se unifique a moeda, e Cuba volte a ter somente uma denominação monetária, será preciso reformar integralmente todos os preços. Ou seja, os salários pagos em pesos terão de sofrer aumentos drásticos, para equiparar seu poder aquisitivo. Ou o CUC terá de sofrer uma desvalorização formidável. Qualquer alternativa poderá disparar um maremoto de inflação.

Aí é que está o nó dessa questão intrincada, que talvez seja hoje o que mais gera irritação entre os cubanos, cuja maioria ganha em pesos e não em moeda conversível. 

Além da questão salarial, será preciso, e rapidamente, estabelecer um câmbio realista. Hoje, o CUC tem seu valor equivalente ao do euro, ou seja, superior ao dólar norte-americano. Não há lógica nessa situação esdrúxula.

O peso conversível foi criado em 1994, no auge do chamado ‘período especial’, quando, logo depois da dissolução do bloco soviético, Cuba enfrentou uma etapa de penúria extrema. Foi uma forma de procurar captar divisas, ou seja, dólares, e atrair investimentos estrangeiros, principalmente na área de turismo.

Quando criado, um CUC valia um dólar. Em 2005, foi valorizado em 8%. Em 2011, voltou ao seu valor inicial. Hoje, equivale a um euro. 

Outras medidas posteriores, como a permissão para receber remessa de familiares no exterior, ou a delimitação de áreas restritas a turistas (ou a cubanos que tivessem dólares, euros ou CUC), acabaram criando divisões insuperáveis entre os cubanos.

É bem verdade que ninguém paga por serviços básicos, como educação e saúde, e que boa parte do que se consome é subsidiado (água, luz, gás). Pagar aluguel é uma novidade recente, e ainda assim, para quem quis mudar e encontrou moradia disponível no mercado.

Comprar um imóvel é fácil. Basta ter o dinheiro. Difícil é estabelecer seu valor. Afinal, o mercado imobiliário ficou desativado entre 1961 e 2011. Agora tratam de estabelecer parâmetros. Conheço quem comprou, por 60 mil dólares, um apartamento de 90 metros quadrados na avenida chamada Paseo, zona nobre de El Vedado. E conheço quem quis comprar um carro médio e tropeçou com o preço de 110 mil dólares. Essa falta de critérios terá de ser resolvida logo. Jamais pensei que fosse ver em Cuba uma imobiliária buscando clientes. Pois agora em janeiro, vi. E vi várias.

A venda de imóveis a estrangeiros é muito restrita. É preciso passar por um crivo severo. Mas já há estrangeiros comprando apartamentos e casas em Havana e no interior. Em Cienfuegos, por exemplo, uma cidade de beleza luminosa, cresce a cada semana o número de estrangeiros que ou alugam imóveis para longas temporadas, ou entram na fila buscando o direito de comprar uma casa.

Durante décadas, ouvi de cubanos, principalmente de cubanos jovens, queixas contra o imobilismo em que havia caído a Revolução. E de amigos da minha geração, ouvi que era preciso mexer em muita coisa, era preciso começar a caminhar.

Devagar no princípio, enfrentando a dura resistência da velha guarda, da qual aliás ele mesmo faz parte, Raul Castro foi tentando, tentando. Agora, parece que deslanchou e vai em frente.

Aliás, uma curiosidade: poucas vezes vi alguém criticar tanto a burocracia, a lentidão, a ineficiência de tudo como ouço de Raul Castro. 

É como se, finalmente, alguém da cúpula do poder tenha entendido que para preservar a Revolução, é preciso renovar. E renovar muito. E rápido.

Nota do Solidários: o artigo acima é a segunda parte do artigo "Cuba: renovando a Revolução" de Eric Nepomuceno. No entanto, estamos reproduzindo apenas este trecho devido a nossa política de publicação. Mas o leitor pode ler a outra parte (primeira) no site da Carta Maior aqui.

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