Por Vânia Barbosa no Jornalismo B
É valente, digna e soberana a sociedade
que sabe reconhecer seus heróis. E é escrava a sociedade que se dobra ao
silêncio ou subestima o verdadeiro heroísmo contribuindo, assim, para
empurrar o mundo no sentido inverso à sua humanização.
Em uma sociedade onde o egoísmo, a
prepotência e a ambição têm defesa só resta às pessoas seguir na sua
tarefa maçante de caminhar pela vida banalizando a morte. Neste sentido a
estupidez de muitos médicos no Brasil amedronta, pois é explícita a sua
incapacidade de entender o momento histórico ou de serem independentes
de consultas à internet e às tecnologias para definir medicações e
decidir um diagnóstico.
Para estes médicos dedicar tempo a um
paciente, tocá-lo e ouvi-lo são coisas do passado. Enfrentar a lama, o
frio e defender a miséria e arriscar a própria vida para salvar outras
são tarefas de médicos utópicos. E a grande mídia também não está
interessada em mostrar o que é justo, pois atende aos padrões e
privilegia quem polariza para excluir e transformar a medicina em artigo
de luxo, em mercadoria e possibilidade de status e ascensão financeira.
Tudo isso é uma enorme vergonha e causa descrença para quem vive nesta
“aldeia dita civilizada”.
Acredito que a rejeição e o preconceito
aos médicos cubanos estão diretamente vinculados à parcela da nossa
gente para a qual eles voltarão suas atenções e suas ternuras. A mesma
gente que no Brasil historicamente foi alijada de seus direitos e causa
repulsa à burguesia e aos seus fiéis seguidores. Aos hostilizar uma
médica negra cubana foram hostilizados os negros, os índios e os pobres,
os ainda discriminados pela mentalidade dissimulada e preconceituosa de
soberbos brasileiros. Os ”pobres, sujos e malvados” não servem também
para a elite de branco que precisa se manter imune às bactérias da
solidariedade e do direito de existir.
As manifestações raivosas contra a vinda
de médicos internacionalistas para o Brasil, especialmente os cubanos,
demonstram que lamentavelmente ainda há setores tão fechados e
mesquinhos no Brasil e que nos levam a crer que há uma segregação, não
oficial, mas que funciona para destruir qualquer sonho de igualdade. E
que a essência do debate e o boicote premeditado ao Programa Mais
Médicos deverão ser amplamente denunciados por atentar contra uma
política centrada na justiça e na reparação social.
Na contramão desta segregação quem se
manifesta para apoiar a vinda dos médicos cubanos que chegam ao Brasil
se pergunta como é possível não reconhecer e respeitar profissionais que
entendem e curam, enobrecem a profissão, protegem e salvam milhares de
pessoas em Cuba e em outros países do mundo, sem distinção de raça,
classe social, idade, ideias...
Em Cuba a graduação em medicina não tem
preço, mas a exigência de formação humanista e internacionalista. Os
médicos cubanos e estudantes de outros países formados na Ilha caribenha
trazem na bagagem não só o aprendizado técnico, mas ainda o
conhecimento sobre a origem de um projeto que os ensina a ajudar e a
minimizar o sofrimento em qualquer parte do mundo: após o furacão Mitch
devastar vários países na América Central, em 1998, o presidente Fidel
Castro decide criar a Escola Latinoamericana de Medicina – ELAM para
formar bons médicos e fortalecer a solidariedade entre os povos.
Atualmente a ELAM acolhe e gradua estudantes de 122 países lda América
Latina, do Caribe,Estados Unidos, África, Ásia e Oceania. Entre os
graduados estão 500 jovens negros e pobres dos EUA, moradores dos
bairros do Harlem e do Brooklin e cerca de uma centena de jovens do MST,
além de 600 estudantes do Timor Leste e dois filhos privilegiados do
mal-agradecido Paulo Argollo Mendes, presidente do Sindicato Médico do
Rio Grande do Sul e critico ferrenho do Programa Mais Médicos.
Outros dados, muitos já reconhecidos,
outros ignorados ou manipulados, que ajudam a definir quem são os
verdadeiros “doutores”. A saber:
Médicos cubanos no Haiti
- Graças à sua medicina preventiva, em
Cuba a mortalidade infantil é das mais baixas do mundo (4,8 por mil),
taxa comparável com as das nações mais desenvolvidas, e inferior à dos
Estados Unidos, “a maior potência mundial”, e do Canadá. E a expectativa
de vida dos cubanos também foi elevada para 78,8 anos;
- Cuba participou com brigadas militares
e médicos em diversos processos de libertação nacional do Continente
Africano, e a primeira campanha de vacinação contra a poliomielite,
realizada no Congo, em 1996, foi organizada por médicos cubanos;
- Cuba e Venezuela criaram, em julho de
2004, o projeto humanitário continental denominado Operación Milagro, e 3
milhões e meio de cidadãos latino-americanos já foram salvos da
cegueira e outras doenças oftalmológicas por médicos cubanos e
venezuelanos, que realizam cirurgias gratuitamente em vários países da
região. Esta missão se disseminou por outras regiões (África e Ásia) e
já dispõe de 49 centros oftalmológicos em 15 países da América Central e
do Caribe;
- Em 1986 o Estado cubano concedeu
tratamento médico na Ilha para cerca de 3 mil crianças russas
contaminadas pela radioatividade vazada no desastre da Usina Nuclear de
Chernobyl, bem como outras centenas de vítimas do desastre;
- Também em 1986, durante o governo
Sarney, foram as vacinas cubanas contra a meningite que permitiram ao
país enfrentar o surto da doença;
- Quando a indústria farmacêutica
internacional - em razão de considerar os preços muito baixos - negou à
OMS a possibilidade de produzir vacinas para combater um assustador
surto de febre amarela na África, a cooperação entre o Instituto Bio
Manguinhos, brasileiro, e o Instituto Finley, cubano, ajudaram a salvar
vidas africanas por meio da produção de milhares de doses de vacinas;
- A partir da devastação provocada pelo
furacão Katrina, em Nova Orleans, nos Estados Unidos, que desprotegeu a
população negra e pobre abandonada pelo governo daquele País, o Estado
cubano disponibilizou ao então presidente estadunidense George Bush 1300
médicos para prestar ajuda à população. Bush não autorizou a ajuda de
Cuba em razão da hostilidade que os sucessivos governos dos EE.UU. têm
com a Ilha, prejudicando, assim, a saúde e a sobrevivência das vítimas
do furacão;
- Dados de dezembro de 2010 mostram que a
equipe médica – cubana que trabalha em 40 centros de saúde no Haiti
atendeu mais de 30.000 doentes de cólera até aquela data, representando a
maior missão estrangeira ao tratar mais de 40% da população afetada.
Segundo recentes manifestações do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) "uma das coisas mais esperançosas que viram no
Haiti foi a ajuda cubana e o apreço do povo do País pelos médicos
cubanos";
- Com a participação de professores
cubanos o Governo da Ilha montou três Faculdades de Medicina na África
(Eritreia, Gambia e Guiné Equatorial), que se encontram em pleno
funcionamento;
- Cuba tem hoje 78 mil médicos, um para
cada 150 habitantes, considerada uma das maiores médias do mundo. Esta
média permitiu ao governo da Ilha enviar mais de 30 mil médicos para
trabalhar em 102 países;
- A exemplo de países africanos como
Nigéria, Guiné Equatorial e Gabão, Cuba colabora com Angola, entre
outras enfermidades, com o programa de combate aos vetores que provocam a
malária e a dengue;
- Apesar das restrições impostas pelo
bloqueio norte-americano na aquisição de recursos e tecnologias, Cuba
aprofundou a pesquisa de vacinas, entre outras, para o vírus da cólera,
dengue, o HIV e contra o câncer de próstata e pulmão.
“É preciso mais do que estetoscópios para ouvir um coração”
O exemplo de dois jovens gaúchos
formados na ELAM demonstra que, apesar da alegada falta de recursos
tecnológicos e demais estruturas para o exercício da medicina no Brasil,
é possível salvar vidas e encarar a figura do médico como eixo central
desta luta.
O médico Marcus Dutra partiu para a
Venezuela para prestar serviços em uma comunidade indígena chamada
Nabasanuka, no Estado de Delta Amacuro. Em um ambulatório feito de
tábuas semi - apodrecidas da comunidade do estado mais pobre da
Venezuela, em frente ao Rio Orinoco, às 4 da madrugada Dutra começou a
fazer o parto de uma mulher com eclampsia e que possivelmente não fosse
sobreviver.
Médico Marcus Dutra na Venezuela
Aplicou-lhe todo o tratamento possível, pois não contava com muitos dos recursos de um hospital e nem tinha tempo para levá-la para outro centro porque a criança estava nascendo e a lancha do ambulatório estava sem combustível.
Aplicou-lhe todo o tratamento possível, pois não contava com muitos dos recursos de um hospital e nem tinha tempo para levá-la para outro centro porque a criança estava nascendo e a lancha do ambulatório estava sem combustível.
Nasceu um “menino gordinho” e o médico
passou a noite toda atento a qualquer ocorrência. A mãe começou a
reagir, não convulsionou mais, a pressão se normalizou e estava
tranquila. Quando a mãe adormeceu Marcos saiu para respirar o ar fresco
no pequeno cais que há defronte ao ambulatório.
Jovem e recentemente formado, Dutra
sentiu um enorme orgulho do que fez e não pode evitar a pergunta:
“caramba, saberia Fidel a exata dimensão do bem que fez à humanidade?
Acaso imaginaria que em uma pequeníssima comunidade existe um médico
filho da ELAM salvando gente há muito esquecida por todos”?
Também formado na ELAM, em 2012, o
médico Marcos Tiaraju Correa da Silva, de 27 anos, mesmo aprovado no
Revalida e defensor do Mais Médicos, optou em não se inscrever no
Programa para permanecer atuando na atenção primária de saúde, em
comunidades carentes do município de Nova Santa Rita, no interior do Rio
Grande do Sul.
Nascido no primeiro Acampamento, Sepé
Tiaraju, na fazenda Anonni, em 1986, Marcos perdeu a mãe Roseli Celeste
Nunes da Silva, a Rose, liderança social e defensora de uma reforma
agrária justa. Aos 33 anos Rose foi morta, em 1987, por um motorista que
jogou seu caminhão sobre uma barreira humana, na BR-386, em Sarandi,
RS, ferindo 14 agricultores e matando ela e mais dois companheiros
durante um protesto com mais de 5.000 pessoas. A história de Rose é
contada no filme "Terra para Rose" (1987), de Tetê Moraes.
A decisão do doutor Tiaraju em exercer a
medicina vinculada aos movimentos sociais está ligada as suas origens, a
sua história e ao compromisso de cuidar da sua gente, valores aliados
aos reforços humanistas que recebeu na ELAM.
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