sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Teatro cubano está ao alcance do povo

Por Amanda Cotrim especial para Caros Amigos
“Acredite apenas no que seus olhos veem e seus ouvidos ouvem! Também não acredite no que seus olhos veem e seus ouvidos ouvem! Saiba também que não crer algo significa algo crer!” (Bertold Brecht)
As palavras de Bertold Brecht, dramaturgo alemão do século XX, podem indicar o efeito que o teatro tem na vida de quem faz e na de quem recebe: despertar. Fazer sair do conforto e ir para algum lugar; aproximar pessoas. Pelas artes cênicas ser um bem simbólico, não têm nos cálculos do PIB (Produto Interno Bruto) a justificativa para existir. Se com o advento da indústria cultural a arte tornou-se o resultado da força de trabalho de seu artista, que precisa vendê-la para viver, resta saber qual é a papel do teatro num lugar onde o lucro não parece ser o objeto de desejo. Para isso, a reportagem desceu em Cuba, que há 53 anos vive a revolução socialista.

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contentes querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence”. (Bertold Brecht)

Na Ilha é possível que a população assista a maioria das peças gratuitamente, tanto as realizadas por companhias profissionais quanto por grupos amadores. Entretanto, vez ou outra para assistir a um espetáculo profissional é preciso pagar um valor popular (5 pesos cubanos, que valem bem menos de 1 centavo de real), subsidiado pelo governo. Parte dessa quantia é destinada aos gastos do próprio grupo, a outra vai para o Ministério da Cultura de Cuba, que com esse dinheiro fomentará outros grupos. De acordo com o diretor de teatro da Universidade de Havana, o cubano Armando Del Rosário, “5 pesos cubanos está ao alcance de todos que têm interesse no teatro”. O salário em média do cidadão é de 1.200 pesos. “As salas de teatro estão sempre cheias. O público cubano gosta muito de teatro. Em Cuba há grande aceitação”, ressalta.

Rosário é diretor de teatro universitário desde 1966. “Comecei como ator, passei um tempo no teatro profissional, com uma companhia, que mais tarde se dissolveu. Estreei como diretor teatral em 1970, quando o diretor da peça ficou doente de repente e me pediram para dirigir. A partir daí, cada vez dirigia mais e atuava menos”, conta rindo.

Revolução, Cultura e Arte

O hábito adquirido pelos cubanos de irem ao teatro é explicado a partir do início da revolução, em 1959. A cultura e a arte, conforme argumenta Rosário, foram as maiores beneficiárias, pois foram expandidas por toda a Ilha até se tornarem ao alcance de todos.

Em Cuba, o artista é admirado. Durante uma entrevista, informal, com um gerente de um restaurante estatal em Vedado (distrito de Havana), lhe disse que estava em Cuba para estudar cinema. Com os olhos surpresos, ele em seguida se manifestou: “É uma artista? Que bom! Que bom! Cinema é muito lindo. Eu gosto muito de cinema”. Em terra de José Martí, a arte se coloca como transformadora social. A justificativa para a adesão do povo ao teatro está na ponta da língua: “Um povo culto é um povo livre” (José Martí).

Curiosidade

O teatro cubano existe desde o século XIX e tem sua data lembrada todo o dia 27 de março. A origem se deu quando Cuba era colônia da Espanha. Rosário lembra que certa vez os cubanos realizavam uma peça na qual sua Metrópole acreditava ser subversiva e, por isso, não aceitava que o espetáculo fosse encenado. Quando a Espanha rompeu com Cuba, a peça foi realizada. Dessa data em diante é celebrado o Dia do Teatro Cubano.

Teatro e Sociedade

A atividade cênica praticada em Cuba dialoga com a vida cultural, política e social do país. Os anseios e inquietações dos atores são manifestados de múltiplas formas. A sociedade cubana ainda passa por uma transformação e a arte também se relaciona com esse complexo processo de mudanças. E o teatro, tanto da encenação quanto da dramaturgia, absorve isso e imprime estilos. Nos espetáculos, de um modo geral, é possível notar as contradições humanas que sequestram o espírito de todo artista; com o cubano isso não seria diferente.

Rosário conta que em todas as cidades e províncias de Cuba existem companhias teatrais profissionais. Ao todo são 17 províncias e 177 municípios (ou distritos). Em todas as cidades há casas de cultura, movimentos artísticos e artistas amadores. Alguns atores, além de trabalharem com teatro, também atuam em novelas cubanas. Existe ainda a Escola Nacional de Arte, que tem carreira de Artes Cênicas, além da Faculdade de Teatro.

As companhias teatrais em Cuba, destaca Rosário, são heterogênias. Cada grupo tem suas características. Há coletivos que fazem excelentes trabalhos infantis, outros encontram no teatro o lugar para se manifestar politicamente, com espetáculos que criticam o governo cubano; algumas peças se valem dos clássicos, outras, nem tão políticas, discutem as complexas relações humanas, a identidade, o amor, e encenam que o “trágico” do homem está no fato de existir. “No grupo de estudantes universitários que eu dirijo, trabalho com obras de qualidade. Gosto muito de Eugene Ionesco, do teatro espanhol de Lorca e Alejandro Casso, além do teatro russo”, resume.

O professor de teatro cubano Francisco Lopez Sacha detalha que o personagem teatral está em cima de um mecanismo trágico. Para justificar essa premissa, ele cita Shakespeare: “Somos todos vítimas da História”. O teatro atua nessa linha conflituosa entre indivíduo e sociedade.

Em Cuba, valorizar o artista é valorizar, sobretudo, o povo, que tem na cultura seu maior patrimônio. Sasha explica que o teatro cubano, por ser um bem imaterial, ganha ainda mais notoriedade numa sociedade que não é pautada pela indústria cultural, cuja origem se deu na Europa, onde os personagens criavam uma estrutura dramática “perfeita”, como o que conhecemos hoje das telenovelas.

Investimento

O Ministério da Cultura de Cuba foi criado em 1976 para substituir o Conselho Nacional de Cultura. Rosário explica que isso foi uma tentativa do governo Cubano, pós-revolução, de corrigir erros, restituir os artistas afetados e recuperá-los para os seus trabalhos.

Luz Maria Rolelos é mãe de Jorge Rolelos, produtor de teatro em Havana. Além disso, ela é uma entusiasta das artes cênicas. Segundo Luz, dentro do Ministério da Cultura existe o Conselho de Artes Cênicas (CAC). Cada grupo de teatro profissional tem uma direção que administra o dinheiro recebido do governo. As direções dos grupos estão associadas ao CAC e são elas que repassam o dinheiro (salário) aos integrantes das companhias teatrais.

Os grupos amadores, no entanto, não são remunerados (como em todo o lugar do mundo, já que a própria etimologia da palavra revela: faz por amor), mas ainda assim o governo Cubano ajuda esses grupos cedendo-lhes espaços para ensaios e vestuários, conforme destaca o diretor.

A Universidade de Havana tem 18 faculdades e cada uma tem um grupo de teatro amador. “No meu grupo de teatro na Universidade tem estudantes de todos os cursos. As faculdades de engenharia e ciências da computação também têm grupos de teatro”, ressalta Rosário. “Os grupos profissionais também são muitos”, destaca.

Mas Rosário lembra que não é só dos palcos que vivem os grupos, há coletivos que se fazem nas ruas. “Em Havana há dois grupos que fazem teatro de rua. Há um grupo maravilhoso... não me lembro bem o nome, mas é algo como ‘Estátuas vivas’. Maravilhoso”, diz empolgado.

Além de fomentar a cultura e arte, valorizando os profissionais, não só com dinheiro, mas principalmente com reconhecimento e prestígio, Cuba realiza vários festivais de teatro. Todos os anos, no mês de setembro, há o festival da província de Camagüey (ela fica no centro de Cuba e é a terceira maior província do país). O diretor de teatro enfatiza que se trata de um festival de muito valor e que “todos os grupos vão para lá participar. Mas não se trata de um festival competitivo.”

O país também enxerga nas artes um caminho para ativar a sensibilidade em seu povo, desde as crianças. “Aulas de teatro nas escolas tem com certeza”, diz Rosário espantado, como se o contrário fosse um absurdo. “Há muito teatro para crianças, marionetes, teatro para adultos, teatro para todos os cubanos. Há muitos grupos de teatro formados por crianças; elas cantam, dançam, atuam. É fascinante”, empolga-se.

Espaços Culturais

Durante as tardes, em Havana Velha (distrito de Havana), é possível ser surpreendido com o teatro de rua, que aparece quase sempre às 16h (horário de Cuba; 19h, no horário de Brasília). Acompanhados com músicas, os artistas interagem com o público e ocupam as principais ruas do município. Com roupas coloridas e muita maquiagem se misturam com o público e brilham em meio a suas encenações “improvisadas”. Eles são homens e mulheres de teatro reconhecidos profissionalmente por isso. Os atores são um evento nas ruas, capazes de provocar no público uma alegria momentânea ou uma grande vontade de fugir com eles pelas fantasias cênicas. O que não há é como passar impunemente pelo teatro praticado nas ruas.

O teatro em Cuba não tem apenas um caráter profissional, mas também educativo. O “fazer teatral” não está restrito aos artistas profissionais. O povo cubano também tem garantido seu direito de fazer teatro. A população encontra nas casas de cultura espalhadas pelo país o reduto artístico que potencializa qualquer criatividade mais tímida. As apresentações de espetáculos amadores também são bastante contempladas pelos cubanos, como conta o diretor.

Armando Rosário, além de exercer suas funções na Universidade de Havana, também dirige dois monólogos, um deles é com a Débora Dora, uma atriz de televisão. O espetáculo estreou em 2011, mas Rosário não sabe quando apresentará novamente, “porque há mais grupos de teatro do que teatros”, diz orgulhoso. Apesar disso, ele reconhece que é possível apresentar os espetáculos em espaços alternativos. “As únicas coisas que necessito é um banco, uma tela branca para colocar em cima e nada mais... ah, e uma atriz”.

O diretor é adepto do teatro menor, com poucos recursos, no qual o ator é mais importante que qualquer grande cenário. Tudo isso, sem abrir mão da qualidade. “Cubano adora teatro e vai ao teatro, tem cultura teatral. É um público exigente, sabe? Os teatros sempre estão cheios”, ressalta. Rosário é um apaixonado por Shakespeare, Ionesco, Lorca e Brecht. Não conhece muito dos dramaturgos e diretores brasileiros, mas confessa que se deixa envolver pela música tupiniquim. Villa-Lobos está entre seus preferidos.

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