terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Intelectual cubano em uma rádio alternativa estadunidense: em Cuba existe um grande debate público

Transcrição da entrevista dada pelo professor Rafael Hernández [1] ao programa A tarde se move (La Tarde se Mueve), sob apresentação do jornalista Edmundo García, da rádio 14.50 AM de Miami-Florida, do dia 20 dezembro de 2011, de cinco a seis horas da tarde.

Edmundo García: Amigos, muito boa tarde. Bem-vindos, bem-vindos a "La Tarde se Mueve". Tal como anunciei ontem, na tarde de hoje contarei com a presença de um cientista social: o Dr. Rafael Hernández, que hoje nos acompanha após concluir um ciclo de trabalho, nesta ocasião, para a Universidade de Harvard. Dr. Rafael Hernández, eu o entrevistei há quatro anos e quatro meses, em Montreal, por ocasião de um Congresso da LASA (Latin American Studies Association), por isso gostaria de começar por onde deixamos aquela conversa. Eu a recordo porque a reli, não sei se o senhor a recorda. Boa tarde e muito obrigado a Rafael Hernández por estar novamente em "La Tarde se Mueve".

Rafael Hernández: Boa tarde, e muito obrigado a você, Edmundo; e obrigado aos ouvintes por estar atentos a esta conversa.

EG: Vamos retomá-la onde a deixamos. O que lhe digo de concreto é que há quatro anos e quatro meses falávamos de "reajuste", hoje se fala de processo de "atualização" do modelo socialista cubano. As relações de Cuba com a América Latina foram também um tema naquela entrevista. Hoje isso se transforma com a criação da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe). E falamos também, naquela época, do estilo de direção do, hoje, Presidente Raúl Castro. Naquele momento, ainda não era Presidente como hoje. E das relações raciais em Cuba; tema que fará parte da Conferência do Partido no próximo janeiro de 2012. Não quero que me venha com particularidades, já iremos a elas; fale-me em geral. Disparei várias coisas e quero que, de modo geral, o senhor me diga como vê esses diferentes fatos, no dia de hoje.

RH: Bom, é evidente, quatro anos depois, que a tendência se manifesta já nas relações exteriores de Cuba, em geral, e em particular com a região da América Latina e do Caribe, se consolidou e se aprofundou. Hoje Cuba tem relações com absolutamente todos os países da América Latina e do Caribe, inclusive El Salvador e Costa Rica, que foram os últimos; tem relações, naturalmente... Nunca foram interrompidas, com o Canadá. As únicas relações no hemisfério que seguem rompidas são com os EUA. Então, essas relações, hoje, estão feitas de um ingrediente fundamental que não é necessariamente uma identidade ideológica, porque a América Latina é uma multiplicidade, é uma pluralidade de conteúdos políticos, de processos políticos. Está sendo feita de uma vontade de cooperação, de uma vontade de integração, de um interesse comum compartilhado. E Cuba forma parte desse aspecto latino-americano contemporâneo. Se olharmos para trás, não há quatro anos, quando da entrevista que você gentilmente me fez no Canadá, mas sim há cinquenta anos, quarenta e cinco anos, há quarenta anos, em que Cuba estava completamente isolada no hemisfério, em que Cuba era vista por muitos governos da América Latina como uma ameaça, hoje a situação é radicalmente diferente. Em países onde houve guerrilheiros cubanos combatendo, na Venezuela e na Bolívia, hoje existem governos com os quais Cuba tem as relações mais estreitas do que nunca existiram. De fato, existem outros processos que não têm esse conteúdo tão radical, com os quais Cuba tem também pontos de comunicação e colaboração muito mais profundos do que nunca existiram, como é o caso do Brasil, como é o caso das relações com países como a Argentina e, por suposto, o Equador.

Mas, em geral, estamos vivendo um contexto latino-americano que está muito mais próximo de Cuba. E não é só que a política cubana se moveu, mas que a política da América Latina e do Caribe se moveu em relação a Cuba. A América Latina e o Caribe estão mais próximos de Cuba hoje, inclusive em outros processos que não são tão próximos do cubano, que não compartilham tantos problemas como os que têm em comum a agenda de Cuba e a agenda da maioria dos países do Caribe. Inclusive os mais afastados têm muitas coisas em comum, estão mais próximos de Cuba do que nunca antes.

Sobre os outros temas que você mencionava, creio que o problema das relações inter-raciais em Cuba avançou na medida em que se converteu cada vez mais num tema de debate público. Já hoje se fala não em círculos restritos, inclusive em marcos institucionais exclusivamente, senão que se trata o tema de uma maneira muito ampla e, como você diz, esse debate tem a ver também com uma política do Partido dirigida a complementar, a suprir, a facilitar, a fazer com que se tome maior consciência, publicamente, nos livros de história, na televisão, nos meios de comunicação, acerca do grande saldo de contribuição dos afrodescendentes em Cuba à construção da nação e da cultura cubana. Eu creio que se avançou muito nessa direção, creio que o que se logrou foi não o resultado de uma decisão política, creio que vem de baixo, creio que a sociedade civil cubana se manifestou através dos meios culturais, através dos meios intelectuais; cresceu o espaço ganho para o debate público.

O próximo número da revista "Temas" estará dedicado à comunicação e à esfera pública em Cuba; já podemos falar de uma esfera pública expandida no sentido de um espaço de convergência de diversas correntes, de posições, de critérios, e de fato eu diria que a política cubana, a política do governo e do Partido estão hoje mais próximas do que nunca desse debate.

EG: Prof. Rafael Hernández, em novembro passado, este ano, em novembro, o senhor fez uma apresentação sobre o tema cubano no Diálogo Interamericano, junto com outros especialistas, como Julia Sweig, Diretora do Latin American Studies del Council for Foreing Policy. Nesse encontro definiram o atual processo político cubano como "update" do socialismo; quer dizer, "atualização" do socialismo, e deixaram claro que Cuba não ia pelo chamado caminho das primaveras árabes... Quero que o senhor explique aos ouvintes e aos leitores desta entrevista, que será transcrita também, com suas próprias teses, por que Cuba não foi ontem pelo caminho da URSS e dos países da Europa do Leste, quando renunciaram e se desintegrou a URSS, e por que não é hoje como o Egito, como a Líbia ou como a Tunísia que, por certo, acaba de cumprir no fim de semana passado o primeiro aniversário de sua "primavera democrática". Por que Cuba não, e como vai o "update" do socialismo?

RH: Bom, eu creio que o processo de mudança que teve lugar nos países da Europa Oriental e na União Soviética teve uma natureza diferente do que teve lugar em Cuba nos últimos vinte anos e que, hoje, se encaminha através de políticas e através de uma legislação que está contribuindo para projetar um novo modelo socialista. No caso da União Soviética, a Perestroika e a Glanost começaram por serem políticas de reforma, mas muito claramente se advertiam correntes profundamente antissocialistas e também a expressão de males profundos instalados desde a época do stalinismo. A União Soviética, apesar do período de renovação de Kruschov nos anos 50 e 60, apesar dos intentos de modernização do modelo econômico, dos êxitos indubitáveis que teve a União Soviética na conquista do cosmos, de seu enorme poderio militar, a União Soviética nunca pode ultrapassar, como sistema político, os males que arrastava da época de Stalin. Essas marcas ficaram ali, o Partido e a liderança soviética foram perdendo cada vez mais o contato com as suas bases, muitos cidadãos soviéticos, autenticamente socialistas, não sentiam, entretanto, que tinham suas ideias e seus sentimentos refletidos nas políticas e na complexa situação dos países da Europa do Leste, pois ali, obviamente, o socialismo nunca deitou raízes profundas, nunca teve raízes profundas; e isso foi, sobretudo resultado de uma situação de fato, na qual o Exército Vermelho ocupou essas cidades depois da Segunda Guerra Mundial e do Pacto de Yalta, etc. O que se conhece a respeito...

No caso de Cuba, como todo o mundo sabe, as origens do processo socialista cubano estão na própria situação histórica cubana de fins da década dos anos 50, é o resultado acumulado de uma luta pela liberdade e pela independência que vem desde o século XIX. Não se pode entender a revolução socialista sem entender que é a desembocadura de um processo histórico anterior. E digo a desembocadura não porque seja o ponto de chegada; porque nunca é "a" chegada final, sempre há uma ponte adiante; e isso é o que está se passando agora. O que está se passando agora é que nos últimos vinte anos, não só como resultado do fim do bloco socialista, não só como resultado da desconexão de Cuba do sistema internacional através do conduto que a ligava à União Soviética e aos países da Europa do Leste, senão que como resultado das insuficiências do próprio modelo socialista que se esgotou.

A partir de sua adoção no ano 1976, se esgotou. Tinha já sintomas de esgotamento em meados dos anos 80 e, nos anos 90, entrou "junto com a", "catalisada pela" queda do campo socialista, entrou num claro processo de crise; isso que chamamos em Cuba o "período especial". O "período especial" não é somente uma crise econômica, é uma crise da maneira de pensar o socialismo, é uma crise de valores, é uma crise moral, é uma crise que envolve a sociedade; de maneira que esta transformação não começou há seis anos, quando Raúl Castro tomou posse. Nem há uns meses, quando o Partido adotou as medidas econômicas e sociais aprovadas no Congresso. Começou muito antes a transformação da sociedade cubana, a manifestação de problemas que estavam lá, de espaços nos quais a opinião pública se estabeleceu, um espaço maior de debate junto com uma crise, junto com a queda do nível de vida. Se produziu ao mesmo tempo uma expansão dos espaços de liberdade de expressão dentro de Cuba. Isso é um fato patente, qualquer um que tenha visitado Cuba há vinte e cinco anos e há visite vinte anos depois, agora, poderá se observar que este debate público se expandiu muito, ainda quando não se reflita nos meios de comunicação. Isso não tem nada a ver com o que ocorreu e com o que era o status quo existente nos países do norte da África, nos países árabes. Isso não tem nada a ver com o que ocorreu no Egito, no Marrocos, na Líbia... Não tem nada a ver porque nem a cultura, nem o regime político, nem o processo histórico que conduziu a isso têm nada a ver.

Falam-se, alguns analistas fazem comparações, puxados pelos cabelos, que atribuem aos celulares, ao Facebook e ao Twitter a possibilidade da subversão, de ser o instrumento da subversão. Isso é absolutamente ridículo, isso é como crer que houve revoluções políticas produzidas pelo telefone e pelo telégrafo. Isso é conferir aos aparatos, à tecnologia, um poder de força de expressão, de motivo e de causa no desencadeamento de um processo de transformação social e política. Esses processos tiveram lugar nos países árabes, onde uns regimes muito autoritários e que cada vez menos refletem os interesses da população se desmoronam.

Em Cuba, nestes vinte anos de dificuldades econômicas sérias, de mal-estar e, inclusive, de crise de valores, em todos esses anos não houve realmente signos significativos de instabilidade política. E não porque a política cubana seja mais efetiva que qualquer outra. De fato, a política cubana não utiliza a violência, os meios de repressão que são tão comuns em quase todas as partes, inclusive nos Estados Unidos, para reprimir as manifestações. E pensar o contrário seria pensar que o povo cubano, numa situação de decisão de que esse fosse o melhor caminho, no teria o valor para fazê-lo, porque tem medo da polícia. Isso é ridículo. De fato, o que ocorre é que o consenso político que se rearticula neste contexto dos anos 90 e dos anos 2000 é um consenso político que demanda um sistema mais descentralizado, um sistema que envolva um espaço maior para o setor não estatal, uma redução do aparato burocrático e uma série de medidas que devolvam à população o padrão de vida que logrou ter nos anos 80 e que foi fruto do socialismo. Um modelo socialista que, com o passar do tempo, deixou de ter capacidade para seguir mantendo esse alto nível, não somente, repito, pela queda da União Soviética.

O que ocorre, por conseguinte, agora, é que essa mudança de consenso também é um consenso no qual há uma coincidência em torno a não produzir situações de perturbação da ordem, de violência pública, de altercação, de uso de meios de força para resolver esse problema. Muito poucas pessoas em Cuba realmente pensam inclusive pessoas que estão na oposição ao governo, realmente pensam que a melhor maneira de resolver isso, essa situação em que estamos, é a de recorrer à violência, a de recorrer à insurgência, a de recorrer à perturbação da ordem. E isso é muito evidente para qualquer um que visite Cuba e é mais evidente, obviamente, para quem vive dentro de Cuba.

EG: Prosseguindo com o processo de reformas em Cuba, quisera pedir-lhe que nos esclareça sobre uma espécie de prólogo que a maioria dos especialistas faz quando se refere às mudanças na ilha. Quase todo o mundo assinala que as reformas têm inimigos, que há pessoas revolucionárias que estão contra as reformas em Cuba. Agora bem, se pode identificar algum desses adversários para mais além do termo geral de "a burocracia"? Sempre se diz "a burocracia", mas existe algum documento, existe algum livro ou algum discurso de alguém, falo de nomes, que permita dizer "olhem, aqui está, este é um documento da contrarreforma em Cuba, isto é o que estão dizendo alguns dirigentes que se opõem à reforma"? Existe isso, o senhor conhece algo assim?

RH: Bom, eu creio que não. Eu creio que as expressões de resistência à mudança são expressões que eu, para andar rápido, chamaria de oposições que não são negativas, que são construtivas, e de outras que são francamente negativas.

Entre as construtivas, indicaria aqueles grupos que obviamente não vão receber um benefício instantâneo e direto, porque não participam dos espaços e das novas oportunidades que se abrem com o trabalho por conta própria e com a ampliação do setor não estatal. Entre outros, as pessoas que têm uma idade que já não lhes permite incorporar-se à força laboral ou iniciar um novo projeto de vida, aquelas pessoas que estão definidas como abaixo do nível de pobreza, o que cresceu no período da crise. Alguns sociólogos estimam isso ao redor de 20% da população. Estas pessoas não dispõem necessariamente dos recursos para poder aproveitar as mudanças que estão tendo lugar, com o que existe a necessidade de uma política social que aproveite o crescimento da economia para apoiar esta posição desvantajosa destas pessoas que se enfrentam às reformas, às mudanças, com uma determinada incerteza, com uma considerável incerteza, porque não representam para eles uma clara oportunidade de recuperação de seu padrão de vida. Essas pessoas não se colocam necessariamente frente à reforma com expectativa, com as ganas e com o entusiasmo de outras que, sim, têm essas condições.

Há também uma resistência negativa que foi identificada pela direção do governo explicitamente, que é a burocracia. A burocracia não se opõe através de discursos, a burocracia não se opõe tampouco através de um documento; se opõe na lentidão com a qual se implementam as medidas já adotadas, já aprovadas; no que Raúl Castro descreve como uma velha mentalidade das mudanças, como impedimento, como a inaptidão de um estilo de trabalho antiquado e que se manifesta, por exemplo, em meios de comunicação que são um insulto inclusive ao nível educacional dos militantes do Partido. Essa crítica a esta inércia com a qual o aparato burocrático se demora em adotar novas regras, em adotar novos padrões, em operar de acordo com os novos critérios e os novos enfoques é possivelmente o mais difícil de mudar, de transformar e, do meu ponto de vista, fará que a Conferência do Partido tenha isso como um de seus pontos centrais.
De maneira que a sua pergunta de se há um, como o chamam aqui nos Estados Unidos, um "revólver que faz fumaça", um "smoking gun", um lugar onde se vá e se leia que fulano de tal, com nome e sobrenome, que vive em tal lugar, se opõe ferozmente às mudanças, eu creio que isso não é o principal... Ainda que, sim, pode haver pessoas que se manifestem publicamente contra as mudanças e, de fato, em algumas publicações se pode ver, e na Internet, como algumas pessoas receiam que essas mudanças, por exemplo, darão lugar à emergência de uma pequena burguesia e, de certa forma, de expressões de capitalismo. Essa velha mentalidade, que observa em cada ramo do mercado e em cada segmento da pequena propriedade privada a emergência do capitalismo, é muito lógico que exista, porque houve durante muito tempo uma maneira de enfrentar as mudanças que estigmatiza esta emergência de novos atores e de novos espaços para o mercado e que toma como definição absoluta de socialismo, o socialismo de Estado centralizado, que imperou em Cuba durante todos esses anos. Ou seja, que é lógico que existam essas expressões de mentalidade que diga, bom, esses são males necessários. Mas está claro, e este é um dos aspectos mais importantes do momento atual, que, no último ano, a posição do governo cubano foi não só a de legalizar senão que a de legitimar a presença desses novos setores na economia e na sociedade cubana como parte da família socialista; estes, os trabalhadores por conta própria, os cooperativados, a gente que funciona no terreno da pequena empresa: não são emissários do capitalismo, é parte da família socialista, é parte da família revolucionária e assim tem sido reiterado pela direção máxima do governo.

EG: Vamos ao tema do Congresso e da Conferência do Partido. Quase se consolidou como outro lugar comum e queria saber sua opinião. Há analistas, os chamados cubanólogos ou observadores da realidade cubana, que aceitam como um fato que os alinhamentos do passado Congresso do Partido são o documento diretor das transformações, da atualização do socialismo, e que estão neles as propostas suficientes para atualizar o modelo de socialismo. Sem embargo, esses mesmos têm uma posição de alguma maneira mais crítica com o documento da Conferência Nacional do Partido. Alguns dizem que as propostas não são semelhantes. Minhas perguntas específicas seriam: você percebe distância entre ambos os documentos, entre o do Congresso e o da Conferência do Partido? E, junto, vou atirar três em uma: você crê que o Partido avance em seu próprio processo democrático? E finalmente o que espera da Conferência a ser realizar em janeiro? São três perguntas em uma.

RH: Eu creio que os conteúdos dos alinhamentos econômicos e sociais, tal como foram adotados no Congresso, têm naturalmente carências, têm espaços vazios, e esses espaços vazios foram suscitados durante os debates que milhões de pessoas sustentaram sobre os alinhamentos durante várias semanas. Eu creio que não se pode entender a projeção dos alinhamentos se não for acompanhada do Discurso Inaugural ao VI Congresso do Partido, por parte de Raúl Castro, que disse claramente que sem que uma transformação do estilo de trabalho político, sem que uma mudança na maneira de conceber o papel do Partido, sem que uma mudança também na democracia dentro do Partido, na participação, no estilo de trabalho do Partido em suas relações com a população, sem essa mudança, as reformas não terão êxito. E eu creio que isso, obviamente, está chamando a atenção sobre o fato de que os eixos que atravessam esses alinhamentos econômicos e sociais são eixos políticos.

A maior parte dos analistas adota o critério de que se trata de uma série de medidas estritamente econômicas, como se em um país como Cuba, com o tipo de sistema político e social que têm, se pudessem fazer mudanças econômicas de fundo, que modifiquem estruturalmente a ordem existente no terreno da economia, sem mudar os demais. Se, se lê detalhadamente os alinhamentos econômicos e sociais vai se encontrar que o tema da descentralização, o tema da desestatização, o da desburocratização e o do império da lei, o do uso da legalidade como um instrumento das mudanças, como um marco dentro do qual as mudanças não somente se adotam senão que se consolidam e se tornam permanentes, o que é um dado muito importante, um aspecto muito importante.

Essas mudanças são mudanças políticas. São mudanças políticas, obviamente, são mudanças que têm a ver com a redistribuição do poder, com tirar poder das estruturas centrais e entregar mais poder às estruturas de base, às estruturas locais. E isso tem a ver com a democratização do sistema. Possivelmente, muitos dos que criticam o documento da Conferência do Partido esperavam encontrar este tema da democratização ou este tema das ausências, das omissões nos alinhamentos − por exemplo, o papel dos sindicatos, o papel dos trabalhadores nos centros de trabalho, nas decisões que se tomam nos centros de trabalho etc. −, como o eixo central do documento. Eu penso que, se tomamos em conta o que ocorreu, a Conferência do Partido pode retomar e abundar sobre todos esses problemas que estão aí, que estão no centro mesmo da problemática política cubana.

E o digo por que uma das coisas que foi realmente admirável no Congresso do Partido é que no Congresso houve um congresso, houve uma discussão; nós vimos pela televisão, os cubanos e os não cubanos pudemos ver pela televisão um debate real em torno do esboço que foi debatido por parte da população. O Congresso teve um conteúdo, não foi simplesmente um exercício ritual para dar um cunho legal a uma política já decidida, senão que no Congresso se tomaram decisões, se adotara mudanças que não estavam lá. É de se esperar que a Conferência do Partido mude do mesmo modo; se faça cargo do que significam as expectativas da população e se faça cargo da mudança, por suposto, disso que, eu dizia há pouco, é o mais difícil, é quiçá o desafio maior, que é mudar o estilo político. O estilo político que não quero dizer estilo no sentido da forma de fazer as coisas. Trata-se de toda uma concepção em relação com o que é a política, com o que é a participação dos cidadãos e com o que é a relação entre isso que o Che Guevara chamava a vanguarda e a massa; que já hoje é mais a relação entre os dirigentes e os dirigidos, é mais a relação entre as instituições políticas representativas da população, dos interesses e desejos da população, e as respostas que as instituições políticas dão a esses interesses e desejos da população; a capacidade para dialogar, a capacidade para governar respondendo às pessoas, não como um pacote de políticas que se tem que aplicar não importa o que as pessoas pensem. Adotou-se uma medida que é a medida da nacionalização do emprego... Há mais de um milhão de empregos sobrando. É uma análise econômica. Entretanto, a demora na aplicação destas medidas, obviamente, foi o resultado de dar-se conta de que a população estava angustiada, que havia uma angústia nas pessoas em relação ao tema do desemprego; uma angústia natural, uma preocupação natural. Eu creio que o próprio governo, ao se demorar em aplicar essas medidas, demonstrou um alto grau de sensibilidade política.

Eu creio que uma coisa que distingue a direção cubana é essa sensibilidade política a respeito do que a população sente e pensa. É difícil crer, ainda que haja quem o creia, que a direção máxima cubana não está ao tanto do que a gente da rua sente e pensa. E, em um momento como este, no qual os cubanos se expressam em diferentes espaços, no qual fazem sentir suas ideias, fazem sentir seus interesses e seus pontos de vista, que não são homogêneos, obviamente, estamos falando de debate. Sempre que falamos de um espaço de interesses e de ideias estamos falando de diferenças, estamos falando de não coincidências, mas escutá-las e refletir sobre elas, e assumir responsavelmente esses interesses e esses desejos da população, eu creio que está no centro da preocupação do governo cubano atual. E penso que o que se adote, assim como os alinhamentos econômicos e sociais adotados pelo Congresso, o que se adote não é uma varinha mágica, o que se adote não vai ser uma camisa de força, um plano que se vai aplicar como se fosse um livrinho, uma bíblia, mas sim um instrumento de trabalho que se vai transformando na medida em que, ao longo dos próximos meses, se implementem, sem pressa, sem precipitação, porém sem pausa.

EG: Peço a sua capacidade de síntese, pois nos sobram vários temas. Número um, que impressão lhe dá que a Emenda do congressista cubano-americano Mario Diaz-Balart não tenha podido colocar-se como um brinco no orçamento para o funcionamento do governo dos Estados Unidos? Aqui, tivemos que dar uma grande batalha nos meios alternativos para que se tomasse consciência sobre isso... Que opinião geral lhe merece tudo isso que aconteceu neste fim de semana em Washington e Miami?

RH: Olha, eu penso que as mudanças oficiais, as mudanças reais na política dos Estados Unidos em relação a Cuba, realmente, se reduzem ao que o Presidente Obama prometeu em sua campanha a respeito de facilitar o encontro, facilitar a ajuda dos cubanos que vivem aqui com os cubanos que vivem na ilha. E realmente isso se adotou em um momento determinado... Retrair-se, retroceder frente a um grupo de pressão como esse é falhar com as promessas feitas, com as aspirações e com os interesses legítimos dos cubanos que vivem nos Estados Unidos em relação a seus familiares, haveria sido uma prova não somente de inconsequência em relação a essa base eleitoral da Flórida, senão que uma prova de fraqueza política, não só em relação a Cuba.

E eu creio que a administração respondeu mostrando que tem uma capacidade e uma determinação, como executivo, de enfrentar esses desafios, que não têm nenhuma base legítima; porque, na realidade, pedir desde a perspectiva de uma suposta representação dos interesses da comunidade cubana nos EUA, pedir, desde a perspectiva deles, ao governo, que bloquei a possibilidade de que ajudem seus familiares, a possibilidade de que os visitem, é um sem-sentido, é uma flagrante contradição em termos, é a prova mais palpável de que esse grupo de interesse político não está representando os interesses e desejos da maioria dos cubanos nos Estados Unidos. E muito menos responde a uma motivação de democracia e liberdade em Cuba. Essa é a base de legitimação pretendida da política de bloqueio que vai cumprir cinquenta anos. Essa inconsistência, para mim, fora um signo, um sinal de fraqueza que vai além, repito, da relação com Cuba, num contexto em que a administração se encaminha já, diretamente, para a campanha do ano que vem a campanha eleitoral.

Então, eu penso que a ressonância das vozes da sociedade civil real, da autêntica sociedade civil dos cubanos dos EUA, de órgãos como a rádio alternativa, que você representa muito bem com seu programa, e de tantos americanos que estão interessados também em que os cubanos possam continuar visitando e que eles mesmos possam conhecer, por seu próprio olhar, por sua própria mão, por si mesmos, tocar diretamente na ilha, eu creio que isso é um consenso claro, que é evidente, que se manifesta. E isso foi uma prova de força, na qual a derrota desse grupo de interesse foi suficientemente eloquente, não somente porque não o pude lograr, mas porque mostrou sua natureza, mostrou sua verdadeira índole que, repito, não é representativa dos cubanos daqui.

EG: Deixe-me dizer-lhe que, finalmente, estavam tratando de defender a restrição às viagens a Cuba misturando-a com qualquer tema. Entre os temas com os quais a trataram de misturar, esteve o tema de Alan Gross, que se encontra preso em Cuba, algo que é bem conhecido. E minha pergunta específica seria isto o fiz como um comentário: Como vê o problema de Alan Gross e o problema dos cinco heróis da República de Cuba, lutadores antiterroristas? Diga-me se o senhor visualiza uma saída a curto ou médio prazo.

RH: Bom, eu creio que o olhar com o qual se desenvolveu todo o julgamento, que levou à condenação dos cinco cubanos − quatro deles continuam presos, um deles já foi libertado mas ainda não pode regressar a seu país, assim que, de certa forma, continua preso − contaminou, como em muitos outros momentos da história dos Estados Unidos, contaminou o julgamento, contaminou o caráter verdadeiramente justiceiro do processo, da sentença do tribunal.

Sobre isso não tenho que me estender, porque foi muito comentado. De maneira que esses presos são presos políticos, são presos que estão aí por haver cometido uma falta política, e a possibilidade de que sejam soltos, eu creio que corresponde à justiça, depois de cumpridos quinze anos de prisão.

Isso deveria acontecer sem que nada ocorresse do lado de Cuba, mas se houvesse gestos, ou atos, ou mudanças, do lado de Cuba, que se pudessem citar como mudanças importantes em relação ao comportamento do governo cubano em torno a ter pessoas em prisão, faz poucos meses, em um diálogo com a Igreja Católica, o governo cubano, como resultado desse diálogo, libertou a mais de cinquenta pessoas que estavam presas em Cuba com acusações de conspiração com uma potência estrangeira. E isso o fez com um gesto que não foi “um quid pro quo”, foi em troca de nada, o fez unilateralmente e o fez por um ato de justiça, a partir de que entendeu que era conveniente, que era justo, que era razoável que se aceitara a partir da demanda apresentada pela Igreja Católica. Respondeu à Igreja Católica de Cuba. Eu creio que o papel que a Igreja Católica de Cuba tem tido em modelar o diálogo com o governo é um avanço, um progresso... O diálogo da Igreja Católica com o governo cubano se aprofundou e adquiriu uma qualidade nova nos últimos anos. Desde a visita de João Paulo II... e na próxima visita do Papa. Eu creio que, no contexto da visita do Papa à Cuba, tanto o governo dos EUA como o governo de Cuba deveriam pensar, ou poderiam pensar... Eu não sou ninguém para lhes dizer o que têm que fazer, mas, sim, creio que poderiam pensar na conveniência, na oportunidade, no razoável de considerar a situação dessas pessoas que estão presas por esses motivos, por haver violado a lei de ambas as partes, mas onde, obviamente, o contexto político sobrecarregou... em ambos os casos. Eu não creio que se poderia afirmar que a politização teve o mesmo caráter de ambos os lados, mas, em qualquer caso, se trata de situações judiciais nas quais o fator político tem um peso importante. E, definitivamente, eu creio que as mudanças e o relaxamento de tensões, por diferenças acumuladas ao longo de cinquenta anos, é da responsabilidade dos dois governos. E eu diria que, em termos gerais, há uma longa lista de medidas, inclusive todas essas reformas que estão tendo lugar neste momento, e com as quais está empenhado o governo cubano e a população em Cuba, todas essas mudanças formam parte de uma série de transformações ocorridas em Cuba durante os últimos vinte anos, sem que, lamentavelmente, do lado dos Estados Unidos tenha havido uma ação favorável de qualquer tipo.

EG: Muito obrigado ao Dr. Rafael Hernández. Finalmente, para terminar a entrevista, estamos no Natal, em festas de fim de ano. Ao senhor lhe gosta mais celebrar essas festas com cânticos ou com os Van Van?
RH: Bom, os Van Van também podem entoar cânticos... Eu creio que em ritmo de timba.

EG: Muito obrigado ao Dr. Rafael Hernández. Muitas outras perguntas sobraram já preparadas; por questão de tempo não puderam ser feitas. Muito obrigado, feliz Natal e felizes festas.

[1] Rafael Hernández é cientista social. Diretor da revista TEMAS, uma publicação cubana trimestral dedicada à teoria e à análise dos problemas da cultura, da ideologia e da sociedade. Hernández foi professor Adjunto na Escola de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade de Colúmbia; recentemente, cumpriu compromissos acadêmicos como Professor Visitante da Universidade de Harvard. Publicou vários livros e ensaios sobre temas de emigração, segurança internacional e cultura cubana. É um profundo conhecedor das relações Cuba-EUA no plano acadêmico.

Fonte: blog Cambios en Cuba. Tradução: Segio Granja. Revisão para esta versão: Sturt Silva.

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