sábado, 31 de dezembro de 2011

Autocrítica, porque a construção do socialismo não é um processo linear.


Respondendo a Ricardo Torres
por Richards Levins [*] e Aurora Levins Morales [**]

Entramos nesta discussão com alguma timidez. Para julgar as decisões económicas da nova viragem é necessário um conhecimento íntimo da realidade cubana, que não temos por haver estado ausente durante quatro ano e porque mesmo com visitas frequentes aprende-se apenas um esboço dela. E o que é mais importante, nós, que somos solidários com Cuba, não somos cubanos; os fenómenos da ilha que nos inspiraram não são os mesmos que agora preocupam os seus cidadãos. 

Neste caso, por que nos atrevemos a comentar? Porque cada comunidade olha a realidade com lentes próprias e traz tanto visões acertadas como erros. Todos nós, os cubanos e os aliados, entendemos essas questões com a nossa própria perspicácia e a nossa própria cegueira. Quando nos encontramos, cada parte traz seus erros típicos e sua razão acertada. Para que uma discussão se torne frutífera, um bom ponto de partida é que ambas as partes indiquem que consideram seu próprio padrão de erros e os de seus camaradas, arraigados nas suas condições de vida e de luta. 

Na generalidade, Cuba enfrenta uma situação económica urgente. E sabemos que a urgência reduz os horizontes não apenas temporais, como também do âmbito dos problemas e das fronteiras intelectuais. Quando os cubanos se vêem obrigados a envolver-se no comércio internacional capitalista, são muito vulneráveis aos vocabulários e aos conceitos da economia neoliberal que reinam neste ambiente. Estudam o marxismo, mas comparados com as necessidades de negociações no mundo capitalista, os princípios marxistas ficam relegados aos cursos universitários, cada vez mais afastados da experiência vivida, até que se desvanecem. Por isso, os erros teóricos vão projectar-se na prática, pressionados pela urgência. Nós os amigos de Cuba destacamos o longo prazo e por vezes subestimamos as urgências actuais, a partir de uma perspectiva utópica e um tanto ignorante. Como aliados estrangeiros, não podemos julgar se uma decisão é ou não correcta. Mas podemos, sim, notar os problemas colaterais, as consequências nocivas, que as melhorias políticas ainda acarretam. 


Queremos esclarecer que não alegamos haver um abandono do socialismo com os novos lineamientos . Afirmamos sim que podem debilitar as relações sociais e a consciência de colectividade que inspiraram ao mundo e que podem reduzir a resistência da sociedade cubana frente às pressões múltiplas de um mundo hostil. 

Nesta breve nota só podemos esboçar algumas das nossas preocupações, não para oferecer soluções e sim para abri-las ao debate. 

1. Nos Lineamientos há uma ausência quase total de análise de classe. Referem-se à população, a problemas de administração, a temas que se encaixam bem dentro da ciência gerencial burguesa. Mas o trabalho por conta própria coloca uma diferenciação de classe em Cuba. Se se contrata mão-de-obra, temos a exploração e a extracção de mais-valia. Se ainda for necessário permiti-lo, a mão-de-obra converte-se em mercadoria alienada e os lucros em mais-valia. Além disso, não se especifica se as empresas novas participam na produção simples de mercadorias, para se manterem, ou na ampliada. Então, qual é o papel dos sindicatos nesses negócios privados? 

2. Os trabalhadores por conta própria têm preocupações e interesses. Como irão exprimi-los? Podem ter voz na Assembleia Nacional? Podem ser eleitos nas suas circunscrições? Haverá um tipo de Partido informal para a nova pequena burguesia? 

3. Utiliza-se o vocabulário da economia burguesa. Por exemplo: "distorções de preços". A expressão implica que existem preços "naturais" – aqueles fixados no mercado –, e que um desvio destes é uma distorção. Mas não existe nenhuma relação entre o valor social, a utilidade de um produto, e seu valor económico. Como se devem determinar os preços socialistas? Por exemplo: a batata-doce é um produto muito útil, nutritivo e saboroso, mas relativamente fácil de produzir. Absorve pouco trabalho por hectare em comparação com a produção de alho ou de carne. Então, com a crescente desigualdade em Cuba, seria "natural" produzir carne e condimentos para os ricos. Mas se se vender a batata-doce de acordo com o seu valor, ela não proporciona ganho suficiente ao camponês com pouco terreno. Pelo que faria falta algum tipo de subsídio ao produtor ou ao consumidor. De qualquer modo, os preços socialistas hão de ser "distorções" dos do mercado. Se os preços de produtos dos que trabalham por contra própria vão se reger pela lei da oferta e da procura, como podemos reconciliar essa contradição? Os produtos mais necessários podem ser os menos rentáveis. Preenchemos o vazio com subsídios? 

4. Quando o Estado diz que algo é muito custoso, pensa-se que o consumidor há de pagar os custos de produção. Mas para a economia como um todo, passá-lo do Estado para o consumidor só redistribui o gasto, não economiza. Junto a um incremento dos preços no consumidor fará falta um aumento de salário. Não está claro porque representa poupança para a sociedade. 

5. O plano não considera categorias como a composição orgânica do capital (crítica para criar emprego), ou a divisão do investimento entre Departamento I (produção para o consumo) e Departamento II (produção dos meios de produção), ainda que esta diferenciação seja essencial para sair da urgência. 

6. Parece ser necessária uma maior autonomia da empresa para flexibilizar a produção. Mas autonomia para quem? Os gerentes? Vimos na URSS sob Kruschov uma descentralização com maior autonomia para os dirigentes. Mas numa sociedade onde a corrupção é tão endémica, a autonomia para os administradores vislumbra uma privatização de facto. Descentralização sim, mas com a autoridade descansando nos trabalhadores. 

7. A autonomia implica a liberdade de determinar os bens a produzir. Mas numa sociedade com crescente desigualdade, seria exercida em favor das mercadorias desejadas pelos ricos. 

8. Uma empresa privada busca rentabilidade a curto prazo. Na agricultura seria um incentivo para retornar os praguicidas e adubos químicos e retroceder na agricultura ecológica. 

9. Há uns poucos anos, o igualitarismo foi inscrito na bandeira do socialismo, o que significava a solidariedade e o colectivismo de uma população com uma meta comum. O seu sentido mudou. Como vai afectar a sociedade cubana quando a solidariedade é o único recurso que tem para prevalecer? 

É possível que no passado se hajam imposto formas organização que a base material não pôde sustentar e que seja necessário dar alguns passos atrás para reequilibrá-las. Há que reconhecê-lo. Todos destacam as vias financeiras como as melhores para incentivar. Quando os Lineamientos falam de diversas formas de organização da propriedade, sublinham as capitalistas, à parte das cooperativas. Não existem em Cuba quadros de jovens comunistas que queiram formar colectivos igualitários, com alta consciência e compromisso? E não poderiam estes, de maneira experimental, funcionar como modelos das vantagens do socialismo, ainda não acessíveis à sociedade como um todo? Por que não autorizam que um grupo de cidadãos solicitem, colectivamente, terreno para experimentar novas formas de organização, uma vez que as valhas formas falham muito? 

Repetimos que estas são preocupações, não denúncias. No passado, quando Cuba teve que fazer concessões a formas alheias de actuar, inventaram maneira de lhes dar a volta para preservar o importante. Esperamos que um dia palavras como "resolver" refiram-se a meios mais revolucionários para lutar com os problemas de um mundo global em decadência. 

[*] Professor, Universidade de Harvard, humaneco@hsph.harvard.edu 
[**] Escritora. 

O original encontra-se em http://www.temas.cult.cu/catalejo/economia/Levins.pdf 

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