sábado, 19 de fevereiro de 2011

De Praga a Havana

Por Eduardo Grandi

Quem passeia pelas vizinhanças de Vyšehrad, na zona sul de Praga, capital da República Tcheca, irá fatalmente se deparar com a espantosa visão da ponte de Nuselský.

Construída nos anos 70 pelo antigo regime socialista da então Tchecoslováquia, a hoje principal artéria de ligação do trânsito do sul ao centro da capital tcheca é um colosso de concreto de quase 500 metros de comprimento e mais de quarenta de altura, tão grande que por dentro de si passam duas vias da linha C do metrô de Praga. Obra de vital importância para o transporte na capital tcheca e até mesmo cartão postal da cidade, Nuselský no entanto aparece com outros olhos para quem vive debaixo dela.

Pois o que há de mais inacreditável sobre a titânica ponte é que, sob o imenso vão desta, no vale de Nusle, há todo um bairro repleto de prédios residenciais, onde vivem pessoas que foram simplesmente ignoradas pelos que decidiram construir o gigante. Vista das ruas e prédios escondidos debaixo de Nuselský, a ponte adquire uma onipresença faraônica, capaz de encolher quase à insignificância a vida das pessoas e transmitir a qualquer visitante a incômoda sensação de ter sido transportado de súbito a uma espécie de futuro distópico e decadente. Sob esses diferentes pontos de vista, a visão dos que se beneficiam da ponte e dos que são obrigados a conviver no vale sob ela, Nuselský torna-se um símbolo bastante esclarecedor do que foi o socialismo no leste europeu: muito utilitarista, mas também bruto demais; bastante importante sob os principais aspectos necessários à vida das pessoas, mas ao mesmo tempo, frequentemente insensível para com essas mesmas pessoas.


Foi com o espírito de mudar aquilo que precisava ser mudado que, em 1968, o povo tcheco-eslovaco foi às ruas em apoio aos seus líderes do Partido Comunista quando esses anunciaram a realização de reformas no sistema visando, nas palavras destes, implementar na Tchecoslováquia uma outra forma de socialismo, um "socialismo com face humana". Mesmo desconsiderando a infeliz escolha de palavras (pois mesmo com todos os seus problemas, não há nem nunca houve sistema mais humano do que quaisquer dos socialismos), é de se louvar a decisão dos comunistas tchecos de 1968, que souberam captar a voz das fábricas e das ruas que dizia que as coisas não iam bem e tiveram a sensibilidade de seguir as reivindicações do seu povo por mudanças, iniciando assim um processo de transformações que chamou a atenção e encheu de expectativas a comunistas e amantes do progresso e da liberdade em todo o planeta.

Porém, tão logo iniciou, o processo conhecido como a Primavera de Praga foi esmagado pelos tanques das tropas do Pacto de Varsóvia, sob o comando do conservadorismo burocrático vigente na União Soviética da era Brejnev, que decidiu que o protagonismo popular dos tchecos e seus anseios por mudança eram "uma ameaça ao socialismo", uma subversão tão perigosa ao monolitismo stalinista que justificava a sua supressão pela força bruta.

O trágico destino da Primavera de Praga serviu para destruir de vez a imagem do socialismo no mundo, dando munição aos capitalistas que sempre o apresentaram como "irremediavelmente autoritário", além de dividir os comunistas europeus entre os que apoiavam e os que denunciavam a agressão à Tchecoslováquia, levando os primeiros em em geral a se fechar cada vez mais no seu conservadorismo, os últimos a caírem numa repulsa anti-soviética que os desviou por caminhos como o eurocomunismo, e ambos a um crescente definhamento e isolamento político, marcando a curva descendente, o começo do fim, do socialismo na Europa.

Porém, pior que tudo isso, com a destruição violenta da "primavera de Praga", Moscou acabou por transmitir uma clara mensagem aos povos da Tchecoslováquia e de todo o leste europeu: só podia haver uma forma de se fazer socialismo, e estavam fechadas quaisquer possibilidades de mudanças dentro dos marcos deste sistema. Assim, se não podia realizar seus anseios dentro de tal ordem, e não podendo escolher nada além do seis ou sessenta, o povo decidiu cada vez mais pela rejeição ao sistema, que se consumou duas décadas depois com a destrutiva onda anticomunista de 1989. Hoje, os comunistas tchecos se agrupam em torno do Partido Comunista da Boêmia e Morávia, que mantendo algo da tradição da Primavera de Praga, é conhecido – e denunciado por stalinistas – por manter uma certa crítica ao passado socialista de seu país, o que não por coincidência faz com que tchecos tenham o único partido comunista do leste europeu, fora da antiga União Soviética, com representação no seu Parlamento nacional e com expressiva influência política sobre seu povo.

E o socialismo cubano, o que tem a ver com isso? Tem a ver que, a partir de abril deste ano, durante o 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, o país terá a oportunidade de discutir aquela que poderá ser a maior onda de mudanças no socialismo da ilha desde a revolução em 1959. Acompanhando a realização de tal Congresso, as forças progressistas e libertárias do mundo esperam ansiosas por ver ali um pouco do espírito da Primavera de 1968, da mesma forma que o povo cubano espera desse Congresso uma maior realização dos seus anseios por resolver os problemas que afligem o dia a dia do cubano comum, problemas que têm causas muito mais profundas do que tão somente o criminoso bloqueio imposto pelos Estados Unidos à ilha, conforme o próprio presidente cubano Raúl Castro tem admitido em diversas ocasiões.

Assim, nesta que é hoje a pátria do socialismo no mundo, o último bastião da causa revolucionária internacionalista, surge no horizonte uma nova oportunidade de os comunistas corrigirem seus erros e mostrarem ao mundo uma forma de socialismo que melhor apele a anseios populares universais, permitindo ao comunismo sair de sua posição defensiva dos úlitmos vinte anos e voltar a avançar politicamente. Não mais a velha prática de fazer o que for necessário para atravessar o vale, custe o que custar, mas de antes ouvir o que as pessoas lá embaixo no vale têm a dizer. Não mais apenas fazer "o que for melhor" para o povo, mas antes ajudar este a se organizar para que o próprio povo possa fazer para si aquilo que julgar melhor. Em outras palavaras, não mais a dureza desse "utilitarismo" puro e simples, mas também, como nas palavras de Che, a ternura da qual o socialismo não pode prescindir. Clima propício para mudanças radicais dentro do socialismo existe, com a crise mundial do capitalismo pondo em xeque os valores neoliberais e com a América Latina fecunda de governos progressistas (embora seja preciso ressaltar, não socialistas) amigos de Cuba.

Que, a exemplo dos reformadores de 1968, o Partido cubano tenha a coragem, a força e a sensibilidade de mudar o que for preciso, dentro dos marcos do socialismo, pela evolução e aprimoramento deste sistema. E que nenhum comunista sincero se ponha contra as necessárias mudanças dentro da ordem socialista, do contrário se correrá o risco de se repetir a história, primeiro como tragédia e depois como farsa, "ensinando" aos cubanos que eles deveriam pensar em mudanças fora dos marcos do socialismo.

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