sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Cuba não se rende ao capitalismo

Entrevista com Ângelo Alves e Carlos Chaparro
Fonte: AVANTE

A ampla participação popular na construção do socialismo em Cuba é uma razão mais para confiar no futuro de Cuba e prosseguir e reforçar a solidariedade com a sua Revolução Socialista, afirmam Ângelo Alves e Carlos Chaparro em entrevista ao Avante! sobre a sua recente visita a Cuba.

Quais foram os principais objectivos da visita da delegação do PCP?

Ângelo Alves: O primeiro foi, naturalmente, estreitar os laços de amizade e cooperação entre o PCP e o PCC e abordar aspectos das relações bilaterais. O segundo, foi aprofundar aspectos da situação internacional e trocar ideias sobre questões relativas ao movimento comunista e revolucionário internacional. Finalmente, permitiu-nos uma visão mais aprofundada da realidade social, económica e política e das medidas em curso de actualização do modelo económico socialista cubano.




Ficaram com uma ideia mais clara sobre essa actualização do modelo económico cubano?

Ângelo Alves: Sim, e devido à abertura dos camaradas foi possível abordar as medidas que estão em discussão. A impressão que trazemos é a de que, contrariamente ao que se ventila em Portugal, Cuba não está a tomar medidas avulsas resultantes de um qualquer desespero económico e muito menos terá iniciado uma «rendição» ao capitalismo.

Da informação que nos foi dada, pode-se afirmar que o que se está a passar é um processo natural no contexto de uma revolução socialista que o quer continuar a ser.

O que está em curso é um amplo e ambicioso processo de reflexão e decisão, iniciado há já vários anos, sobre a necessidade do fortalecimento da economia, factor que os camaradas consideram fundamental para manter a médio e longo prazo as importantes conquistas da revolução socialista, para elevar as condições de vida do seu povo e para garantir a independência e soberania de Cuba.

As medidas em consideração são inúmeras, afectam toda a sociedade e visam desenvolver as forças produtivas, modernizar o sector produtivo, aumentar a capacidade produtiva da economia, a sua eficiência e produtividade. Simultaneamente pretende-se acabar com factores que estão a entravar o desenvolvimento da economia cubana como a dupla circulação monetária, a economia informal, a burocracia e o excessivo paternalismo do Estado que em algumas situações leva ao laxismo e mesmo à corrupção.

A maior parte das medidas foram já apontadas no V Congresso do Partido Comunista de Cuba realizado em 1997, tais como o reordenamento da economia de modo a aumentar a produção e a produtividade e assim inverter a tendência negativa da balança comercial; a libertação de recursos para aumentar o nível de vida dos cubanos aplicando o princípio Socialista de «a cada um segundo o seu trabalho»; a realocação da mão-de-obra disponível combatendo o sobredimensionamento de alguns sectores e canalizando mão-de-obra para áreas produtivas fundamentais como a Agricultura, a Construção, a Indústria, mas também preenchendo necessidades na área das conquistas essenciais da revolução como a Saúde e a Educação. Simultaneamente está em curso uma reflexão sobre a organização administrativa, seja do território, do Estado, das empresas, do exército, assim como, noutro plano, da própria organização do Partido. A palavra de ordem é simplificar, eliminar gastos desnecessários e tornar mais eficientes todas as estruturas económicas, políticas e administrativas.



Carlos Chaparro: Basicamente, Cuba está a realizar, desde uma perspectiva social e revolucionária, o balanço da evolução da sua economia, a fazer a crítica e a autocrítica que são necessárias, a identificar as virtudes do modelo económico mas também as suas insuficiências e erros, e a tentar, num quadro económico nacional e internacional exigente, tomar as medidas necessárias para garantir a sustentabilidade do seu sistema económico, social e político.



E os 500 000 desempregados de que tanto se fala?

Ângelo Alves: Podemos dizer que também nós fizemos essa pergunta em vários encontros e recebemos sempre a mesma resposta: «em Cuba ninguém que queira trabalhar ficará desamparado, é um princípio da nossa Revolução». Como referi a realocação de força de trabalho é uma das várias medidas que se estão a tomar. O desenvolvimento dos sectores produtivos – seja por via do sector empresarial do Estado seja por via do sector cooperativo – absorverá, segundo os camaradas cubanos, uma grande parte da mão-de-obra excedentária em outros sectores e permitirá a libertação de recursos financeiros que serão aplicados na elevação geral dos salários. Simultaneamente o Estado irá proceder à legalização e regulamentação de uma realidade que já existe – o trabalho por contra própria. Alguns dos trabalhadores excedentários serão estimulados a estabelecer-se por contra própria e para tal existirá um sistema quer de subsídio temporário quer de empréstimos do Estado para início de pequenos negócios. As 178 profissões em que será possível fazê-lo foram já divulgadas, o processo está em discussão e obrigará à criação de novas leis e a alterações no sistema fiscal.



Carlos Chaparro: Aliás, uma parte destas medidas já está em curso num sector considerado como «assunto de segurança nacional»: a agricultura. Os camaradas consideram que cerca de 70% das importações de bens alimentares são evitáveis se desenvolverem a sua agricultura e a tornarem mais eficiente. Então, o que está em curso é toda uma reorganização e modernização do sector agrícola em que coexistem já o sector estatal, o cooperativo e o trabalho por conta própria, e os resultados têm sido positivos. Mas atenção, o Estado cubano não privatizou nem a agricultura, nem a terra! Aquilo que aqui na Europa se apelidou de «entrega de terras a privados» é tão só o princípio que nos é tão querido de «a terra a quem a trabalha», com a concessão de um total de 1 milhão de hectares de terra que não estava a ser explorada a quem se comprometa a trabalhá-la. Concessão que a qualquer momento pode ser retirada se se comprovar que não há produção.



Uma maior abertura à iniciativa privada não poderá fazer emergir uma camada social desinteressada no aprofundamento do socialismo?

Ângelo Alves: Bem, o termo iniciativa privada não é o mais adequado. Será mais correcto falar de um sector de trabalho por conta própria, que, aliás, já existe, por exemplo os célebres “Paladares” que nada mais são do que empresas familiares. Colocámos aos camaradas a mesma questão e eles esclareceram que não haverá iniciativa privada em Cuba como a conhecemos nos países capitalistas. A propriedade social é um dos princípios que nos foi transmitido como um dos pilares destas medidas. A planificação económica, ou seja o controlo da economia pelo poder popular, continuará a ser a pedra angular da economia cubana. Assim, a propriedade de negócios e a contratação de força de trabalho serão regulamentados e limitados pelo Estado através do mecanismo de licenças. Além disso a dimensão dos negócios por conta própria será limitada ao nível do que aqui chamamos micro e pequenas empresas, uma vez que, segundo nos foi referido, o modelo fiscal em estudo para o sector «cuenta propista» irá por si impedir processos de concentração.



Reuniram com a Central dos Trabalhadores Cubanos e União dos Jovens Comunistas. Qual o papel destas estruturas neste processo?

Carlos Chaparro: O seu papel é envolver todo o povo no processo de consulta sobre as medidas propostas, visando construir um consenso político em torno das decisões a tomar pela Assembleia do Poder Popular, que, contrariamente à ideia que passou em Portugal, ainda não legislou sobre o conjunto das medidas. A CTC tem um papel central. Desde logo pelo seu «peso» político. Num país onde a sindicalização é uma decisão individual e livre de cada trabalhador, os filiados nos sindicatos da CTC representam 95% dos trabalhadores. Quer isto dizer que a CTC está neste momento a discutir directamente com cerca de três milhões e quatrocentos mil trabalhadores as medidas propostas e a sua aplicação concreta em cada local de trabalho. Mas a CTC não discute apenas com os seus filiados, promove o debate com todos os trabalhadores, à semelhança do Partido e de muitas outras organizações de massas, como os Comités de Defesa da Revolução. Mas não é só a capacidade mobilização que dita a importância da CTC neste processo. A Central tem tido, como estrutura sindical, uma participação directa no estudo e definição das medidas, garantindo à partida que os direitos laborais e o controlo operário da economia não são tocados com estas medidas e que os trabalhadores são quem discute e decide da sua aplicação em cada local de trabalho, através da eleição de comités com a participação de um elemento da administração, um do movimento sindical e mais 6 trabalhadores eleitos pelos seus pares. Ou seja, o papel da CTC é o de assegurar que a participação dos trabalhadores é garantida, e mais que isso, determina o resultado final deste processo. A União dos Jovens Comunistas tem também um importante papel nos centros laborais com grande concentração de mão-de-obra juvenil, além de os seus 500 000 membros estarem envolvidos numa profunda discussão com os jovens cubanos sobre as medidas. Nas visitas que fizemos constatámos sempre um papel activo da UJC nos mais diversos planos, e isso é muito interessante, porque não se limita a discutir os problemas dos jovens, discute tudo.



Que questões estão a ser levantadas e que soluções se apresentam no debate em curso?

Ângelo Alves: Eu diria que as questões são aquelas que é normal serem levantadas num processo desta envergadura. As pessoas interrogam-se sobre várias coisas, e naturalmente sobre a sua vida, mas têm uma possibilidade que é negada, por exemplo, aos trabalhadores portugueses, que é a de ter uma participação directa na definição e na aplicação das medidas, e isso transmite confiança a quem como nós observou o processo de discussão. Há uma consciência no povo de que se tem de superar atrasos, insuficiências e problemas, e melhorar o funcionamento da economia. As pessoas têm noção das dificuldades decorrentes de factores como o impacte das catástrofes naturais que assolaram a ilha, a crise económica internacional que também está a afectar Cuba, nomeadamente no turismo, e, claro, o bloqueio dos EUA que em cálculos recentes revela um impacte directo de, no mínimo, mais de 100 000 milhões de dólares. Entendem portanto a necessidade das medidas em discussão. As soluções são muitas e variadas e por exemplo numa fábrica de charutos que visitámos o resultado das medidas será o aumento de mais de uma centena e meia de novos postos de trabalho. Num plano geral, haverá por exemplo formação profissional para quem mude de profissão e há a intenção de aumentar o salário médio para o dobro, de modo a garantir que este cobre todas as necessidades essenciais do povo. Mas para isso a produção terá de aumentar. Como nos foi dito, o processo foi iniciado, tem balizas e princípios bem definidos, e tem como objectivo final tornar mais sustentável o sistema socialista e simultaneamente responsabilizar o conjunto da população pelo sucesso das medidas. Mas é um processo cujos resultados só serão possíveis de analisar daqui para a frente. Os camaradas cubanos são os primeiros a dizer que será necessário ir medindo a cada passo se os objectivos estão a ser alcançados.


E que papel têm os comunistas neste debate?

Ângelo Alves: O Partido Comunista tem um papel muito importante na unidade do povo cubano e no estímulo ao funcionamento da democracia, e é esse o seu principal papel. Como nos foi afirmado num interessante encontro com um comité do poder popular de bairro, o Partido não interfere nos processos eleitorais, nem no funcionamento dos diferentes órgãos de poder popular. Mas, como referi, este processo vai muito além do Partido, envolve toda a população. Aliás, como se verificou em processos anteriores e igualmente exigentes como o Período Especial. Se há dado que se destaca de todos os que recolhemos, é o da ampla participação popular na construção do socialismo em Cuba e essa é uma razão mais para termos confiança no futuro de Cuba, prosseguirmos e reforçarmos a solidariedade com aquele povo e a sua Revolução Socialista.

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