Fidel-Cuba: Um outro modelo?
por Narciso Isa Conde
Fonte original: Kaos en la Red.
Traduçom do Diário Liberdade.
Adaptação para o português (Brasil): Robson Luiz Ceron
No curso das transições socialistas do século XX, predominou o modelo estadista burocrático com um sistema político altamente centralizado, caracterizado pela vigência do partido único, a fusão de partido-estado e organizações sociais, e pela negação progressiva da democracia participativa e do poder popular.
Isso foi chamado "socialismo real" ou "socialismo de Estado" e essa experiência entrou em crise e finalmente colapsou na URSS e em toda a Europa oriental.
As críticas a essa formação econômico-social e política, que mais do que avançar para o socialismo terminou negando importantes valores socialistas, tiveram lugar muito antes, mas, sobretudo, após o chamado derrube.
A necessidade de uma mudança de modelo em Cuba - dado que esse processo perdeu originalidade e transplantou não poucas estruturas do sistema euro-oriental- foi proposta desde que ganhou corpo o processo de sovietização dessa revolução.
No meu caso, estas inquietações e as suas expressões públicas datam de várias décadas atrás, mas agora quero transcrever aqui as propostas que sobre esse tema aparecem na primeira edição do meu livro 'Rearmando a Utopia. Do Neoliberalismo Global ao Novo Socialismo' (Editora Tropical, Dezembro 1999):
"No caso cubano e no dos restantes processos de trânsito para o socialismo é ainda imprescindível superar todo o parecido com esses modelos fracassados que influíram nas suas crises, com clara consciência de que foram e são, comparado com um autentico desenvolvimento socialista, valores anti-socialistas, deformações do projeto original".
(...)
"Isto implica assimilar também a lição soviética quanto à errática condução e evidente traição de Gorbachov nos momentos em que a necessidade da renovação e da democratização bateu à porta da URSS e, sobretudo quanto ao processo degenerativo que sofreu a Perestroika, abrindo passagem a uma tortuosa libertação pró-capitalista e a uma vergonhosa subordinação aos EUA e às outras potências imperialistas."
(...)
"No caso cubano 'voltar à America Latina' não deve entender-se como reproduzir o sistema político e as estruturas sociais capitalistas que predominam nos nossos países, estremecidos pela pior crise da sua história".
(...)
"Cuba precisa identificar profundamente todo o negativo transplantado do modelo burocrático soviético e assumir a sua superação progressiva".
(...)
Isso implica aprofundar o processo de retificação e impulsionar o esforço para um modelo de transito para o socialismo genuinamente cubano e essencialmente capaz... de garantir o predomínio da propriedade social e da propriedade pública socialmente controlada e democraticamente gerida, bem como um processo de maior socialização do poder e participação popular.
Do atraso e estagnação à mobilidade.
As estruturas estadistas transplantadas prolongaram-se demasiado tempo e só recentemente se estão fazendo limitadas tentativas das reformar e adequá-las, sem que ainda essas mudanças apontem para a socialização estatal.
Agora Fidel lhe deu uma estocada ao modelo econômico vigente em Cuba ao declarar ante o mundo que este já não funciona. Isto desatou um redemoinho pelo poder amplificador da voz do líder histórico da revolução cubana, sem que pelo momento se tenha formulado uma proposta alternativa que defina as características do novo modelo a implantar.
Em verdade não se trata unicamente de um modelo econômico, senão de algo bem mais integral e multifacético, de estruturas econômicas, políticas e sociais- e formas de pensar e gestionar o trânsito ao socialismo- que deram claros sinais de esgotamento.
A nosso juízo, em Cuba não se esgotou o socialismo, mas a falta de socialismo no caminho para ele.
Está em crise a falta de socialismo expressada na estatização e burocratização da economia e dos mecanismos de poder.
Há quem aposte na substituição do estadismo por um modelo capitalista à Ocidental: a imagem e semelhança do capitalismo dependente neoliberal e das pseudo-democracias liberais-representativas do continente.
E também há quem tente reformas econômicas e modernizações pró-capitalistas de "estilo chinês", para estabelecer um modelo em que o estadismo modernizado se combine com as privatizações em diferentes escalas e setores e com o alargamento da presença do capital multinacional e as empresas mistas.
Ambas as propostas seriam fatais.
A primeira é simplesmente recolonizadora, catastrófica, sumamente traumática. Mas bastante improvável, salvo uma eventual conjuntura interna e internacional mais favorável; e sempre com escassas possibilidades de transitar sem guerra civil.
A segunda é menos traumática, mais nacional e desenvolvimentista, ainda que conducente a uma espécie de Capitalismo de Estado (no melhor caso neo-keynesiano, com incremento inicial dramático das desigualdades sociais. Esta com maiores probabilidades de ser acolhida por certos estamentos burocráticos, tecnocráticos e militares inclinados para o pragmatismo e, em geral, com menos poder traumático.
Há outro caminho para outro modelo capaz de dar novos ares e continuidade à revolução e capaz de revitalizar a via socialista: socializar o estatal, abrir vias à autogestão e cooperativização da economia, impulsionar formas associativas do “por conta própria“ e da pequena propriedade, criar novas formas de propriedade social e de gestão e co-gestão democrática, estimular a economia de equivalências, descentralizar e democratizar o sistema político para uma democracia participativa. Enfim, avançar progressivamente para o novo socialismo participativo e para a democracia socialista.
Debate transcendente e perspectivas por definir
O debate entre as possíveis opções, ainda que com meios desiguais, está em andamento e debilitou sensivelmente o imobilismo estadista-burocrático, colocando-o à defensiva e com escassas probabilidades de sustentar o seu "status quo".
Fidel não falou de como ultrapassar o modelo existente. Possivelmente isso seja objeto de outras reflexão e propostas.
Mas de qualquer jeito este pontapé de Fidel acelera a tendência para o movimento, ainda sem rumo e metas públicas claras e precisas; mas com alguns sinais não totalmente positivas do comando governamental.
Eu penso - e gostaria de me enganar - que a equipe de governo encabeçada por Raúl tende a se inspirar bastante, ainda que não categoricamente, na atual experiência de China Popular. As recentes medidas anunciadas apontam nessa direção, ainda que não todo tenha sido dito enquanto continuam a predominar as indefinições e o pragmatismo militar.
Fidel aponta mais para o papel do líder do processo que para o do estadista que recentemente deixou de ser. Isso explica também o seu novo ênfase no plano internacional e o positivo giro a respeito do espinhoso tema colombiano.
Agora incursiona numa questão crucial da política interna e terá que ver em que direção consegue influir sobre o transcendente debate para o futuro da Cuba de Martí.
O importante de qualquer jeito é que na nossa querida Cuba avança a autocrítica e a critica que faz superar, no interior de um processo cujos inimigos aspiraram à sua morte por velhice e que, ao contrário, hoje exibe uma relativa vitalidade para decidir a sua renovação e o sentido da mesma: se a reforma e modernização para um futuro híbrido (Estado redistribuidor e benfeitor mais capital privado local e multinacional e regime político forte e centralizado) ou se socialização do estatal mais democracia participativa; quer dizer: se uma via reformista para um capitalismo de Estado mais ou menos social-democratizante, ou se a rota para novo socialismo com vocação latino-caribenha e mundial; sem descartar os riscos da contrarrevolução imperialista, sobretudo se lhe for dada a chance e mudarem a seu favor as condições continentais.
Perante essas disjuntivas, apostamos com firmeza no novo socialismo.
Santo Domingo, 9 de Setembro de 2010.
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