José Martí em Cuba | Foto: Eupassarin |
José Martí: Singelo Vigor do Aço
Por Sidnei Schneider
José Martí constitui um caso singular na literatura. A trajetória de sua existência expõe o desenvolvimento de uma unidade fundamental entre vida e obra, idéia e ação, política e poesia. Herói nacional da independência cubana; pioneiro no enfrentamento do imperialismo norte-americano, que então se formava; crítico literário e de arte insubmisso aos ditames europeus, que concebia um desenvolvimento cultural com características próprias para o Novo Mundo; fundador da literatura hispano-americana e do modernismo na América Latina; articulista de uma multitude de jornais e revistas, de Buenos Aires a Nova York; cônsul do Uruguai, da Argentina e do Paraguai nos EUA; autor dos versos de uma das músicas mais conhecidas do planeta, “Guantanamera” – lançava-se a tudo isso de corpo e alma.
Walt Whitman, a quem Martí dedicou um belo estudo e a quem muito admirava, poderia figurar a seu lado como representante dessa inteireza. Ambos se distinguem, entretanto, da poesia que se gestava na França com Mallarmé, por exemplo, abandonando a reflexão das novas injunções impostas pela realidade francesa e mundial sobre os seres humanos, como o fizeram à sua maneira Baudelaire e Rimbaud, para se refugiar num formalismo infenso à vida e à realidade, que iria contaminar boa parte da poesia do século XX. Se alcançou alguma conquista técnica e formal, não foi com ele que ela se realizou, necessitada de um conteúdo que lhe insuflasse de sentido humano e vital, e que, nesse sentido, a subvertesse. Recordemos, também, que Balzac dissecou criticamente a sociedade de sua época, mas no plano político era um “legitimista” adepto das classes destronadas pela Revolução Francesa; que Gogol era conservador, apesar da sua obra implicar forte denúncia do regime feudal russo, chegando a lhe criar problemas com as autoridades; que o grande Tolstói era um conde contrário a industrialização e a toda doutrina social, que propunha não se oferecer resistência ao mal, mas a outra face. Nada disso diminui a obra desses gigantes; refletindo ficcionalmente a realidade para além das suas limitações pessoais - o que ficou conhecido como “triunfo do realismo” - contribuíram, inclusive, para o avanço das idéias novas e libertárias. São fatos, entretanto, que revelam a terrível contradição em que se debatiam esses autores.
Em Martí essa contradição desaparece. Ou, em outras palavras, quando ela se coloca, a decisão que toma o encaminha inapelavelmente para frente, pois para ele “fazer é a melhor maneira de dizer”. Vale ressaltar, todavia, que existe uma identidade entre a obra que produziu e a dos mestres abordados, e esta reside no fato de ele não sentir necessidade de se evadir da realidade, ao contrário, como eles, faz dela seu ponto de partida, mesmo quando escreve um grande poema de amor como “Versos Sencillos”.
Mas vejamos como isso pôde acontecer.
Cuba era, com Porto Rico, a última colônia espanhola da América, quando José Julián Martí Pérez veio ao mundo, no dia 28 de janeiro de 1853, em Havana. Filho de espanhóis emigrados que se conheceram na ilha, Dom Mariano e Dona Leonor, iria ter sete irmãs. O ano do seu nascimento seria marcado pelo trágico fim de dois líderes cubanos que combatiam a atávica dominação colonial. Dois anos antes, Nárciso López, mercenário venezuelano, falhara numa invasão com o propósito de anexar a ilha aos Estados Unidos. A proposição do chanceler James Monroe, de que Cuba seria uma fruta madura que precisava ser retirada da Espanha e tomada pelos norte-americanos, entretanto, continuava como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos cubanos.
Martí cresceu e se desenvolveu sob essa situação explosiva. Na escola, decisivo foi o encontro com o professor Rafael María Mendive, poeta dedicado e patriota irredutível. Quando estoura a Primeira Guerra da Independência, em 1868, que se estenderia por dez anos, Martí, com quinze anos de idade, apóia a luta pela soberania. No ano seguinte edita o jornal “La Patria Libre”, no qual publica o poema “Abdala”, onde defende que o amor à pátria é também o “ódio invencível a quem a oprime”, reverso da unidade psíquica que formam esses sentimentos antagônicos. Pouco depois é encarcerado por ter chamado de “renegado”, numa carta, um colega que aderira ao exército espanhol. Condenado a seis anos, permanece seis longos meses realizando trabalhos forçados numa pedreira nos arredores de Havana. Em 1871 é desterrado para a Espanha, aos dezoito anos.
Trabalha como professor, estuda direito, filosofia e letras nas universidades de Madri e Zaragoza. Reune-se com patrícios, polemiza nos jornais sobre a questão colonial, publica “A República Espanhola ante a Revolução Cubana”, lê os clássicos e conhece pintura. Martí não quer a dependência castradora da metrópole, mas não rejeita o que de bom a história e a cultura do seu povo tenha produzido, ao contrário, quer ganhar o coração do povo espanhol para apoiar a luta do seu país pela independência.
Em 1874, através da França, ruma para Nova York e vai ao México, onde encontra sua família. Casa-se com Cármen Zayas Bazán (1877), indo viver na Guatemala. Retorna a Cuba com o fim da Guerra dos Dez Anos (1878), mas é deportado no ano seguinte, por ocasião da chamada “Guerra Chiquita” (1879-1880), novo estágio da luta pela soberania, justo quando nasce seu filho. Na Venezuela, funda e edita a “Revista Venezolana” (1881), fixando-se após em Nova York.
Nesta cidade publica seu primeiro livro de poemas, “Ismaelillo” (1882), manifestação modernista anterior a “Azul” (1888), do nicaraguense Rubén Darío, tido por muitos como o precursor do movimento na América Latina. Este, entretanto, mais jovem e adepto da estética martiana, soube reverenciar o mestre no ano mesmo de sua estréia literária, afirmando em 1888 que Martí “escreve, a nosso modo de julgar, mais brilhantemente que nenhum outro da Espanha ou da América”. O modernismo de Darío, de fato, só se faria apresentar na segunda edição de “Azul”, reformulada, de 1890, e o poeta mais tarde o consideraria “um livro parnasiano, e, portanto, francês” (“Los Colores del Estandarte”).
No prólogo ao “Poema del Niágara”, de Pérez Bonalde, editado em 1882, sente-se o espírito mudancista de Martí, pois “ninguém hoje tem sua fé segura” e “em todos está fervendo o sangue novo”, já que se encontra “alarmado a cada instante o conceito literário por um evangelho novo, desprestigiadas e desnudas todas as imagens que antes se reverenciavam”. É uma época em que “urge devolver os homens a si mesmos, urge tirá-los do mau governo da convenção que sufoca e envenena seus sentimentos, acelera o despertar de seus sentidos mas recarrega sua inteligência com um caudal pernicioso, alheio, frio e falso. Somente o genuíno é frutífero. Somente o direto é poderoso”. Aponta os danos que podem causar à poesia tanto o formalismo estéril e demasiado enxuto (hoje diríamos rarefeito) como a redação excessivamente esparramada - na verdade Martí não faz distinção entre essas categorias, verso e reverso da mesma moeda, que diluem o conteúdo até (quase) o seu desaparecimento e que sobrevivem na literatura apenas enquanto podem se atacar mutuamente. Para ele a poesia não pode ser realizada com “utensílios de cortar e de ferir, a embotar aqui um extremo, a fortificar ali uma ligadura, a abrilhantar e arredondar a jóia, sem perceber que se o diamante sofresse talhe, a pérola morreria. (...) O verso é pérola. Não hão de ser os versos como rosa centifoliada , toda cheia de folhas, mas como o jasmim de Malabar, carregado de essências”.
Em 1884, reúne-se com os heróis da “Guerra dos Dez Anos”, Máximo Gómez e Antonio Maceo, mas ainda não chegara o momento do combate na ilha, que viria a reiniciar, dirigido por esse triunvirato, onze anos mais tarde.
O período em que permanece em Nova York (1881 a 1895) coincide com o processo de transformação da economia norte-americana de um estágio pré-monopolista para o de fusão do capital bancário com as grandes empresas, gerando o voraz capital financeiro - o surgimento do que viria a ser chamado de imperialismo. Martí percebe que a unidade do continente é uma ilusão que esconde a submissão aos interesses do grande país do Norte. Passa a falar então de “Nossa América”; escreve em vinte e oito jornais de todo o continente, inclusive dos EUA, sobre política, literatura e arte; aborda San Martín e Simón Bolívar; redige vários artigos e ensaios sobre os Estados Unidos; escreve e reúne seus “Versos Libres”; traduz poemas de Horácio, Hugo, Poe, Emerson e Longfellow. Em 1889 funda a revista infanto-juvenil “La Edad de Oro”, onde aborda, em linguagem acessível , a “Ilíada de Homero”, as “Ruínas Indígenas” pré-colombianas, a vida do Padre Las Casas, os libertadores da América e a China ancestral - publica, também, maravilhosos poemas para crianças e adolescentes. Por esta época Martí é, indubitavelmente, o intelectual de língua espanhola mais lido e admirado do continente.
No texto “Nuestra América”, publicado no México em 1891, expõe o objetivo de tanto empenho: “Crê o aldeão vaidoso que o mundo inteiro é obra sua, e contanto que ele fique com a prefeitura, ou mortifique o rival que lhe roubou a noiva, ou que cresçam no cofrinho de barro suas economias, já dá por boa a ordem universal, sem saber dos gigantes com botas de sete-léguas que podem pisar em cima de sua cabeça, nem da peleia dos cometas pelo céu, que vão adormecidos pelo espaço engolindo mundos. O que permanece de aldeia na América tem que despertar”. Para tanto, “as armas do juízo, que vencem as outras. Trincheiras de idéias valem mais do que trincheiras de pedra”. Rejeita, todavia, o artificial das idéias importadas que não levam em conta a realidade local, mas antes buscam deixar as nações de joelhos: “O livro importado tem sido vencido na América pelo homem natural. Os homens naturais têm vencido aos letrados artificiais. O mestiço autóctone tem vencido ao nativo exótico. Não há batalha entre civilização e barbárie, mas entre a falsa erudição e a natureza”.
Quando publica, em 1890, uma apreciação da obra de Francisco Sellén, a quem enaltece como “um poeta salvo da erudição”, afirma que os povos latino-americanos não recebem outra coisa que “não seja manjar requentado” da Europa, o “pessimismo de punho de renda que anda na moda” - as “tristezas de contágio”, que já recomendara lançar no fogo. Mas é em “Nuestra América” que é mais implacável: “Os que não têm fé em sua terra são homens de sete meses . Porque lhes falta valor, negam-no aos demais. Não alcança a árvore difícil o seu braço raquítico, o braço de unhas pintadas e pulseira, o braço de Madri ou de Paris, e dizem que não se pode alcançar a árvore. Há que carregar os barcos com esses insetos daninhos, que roem o osso da Pátria que os nutre. Se são parisienses ou madrilenhos, que vão ao Prado, de lanternas, ou ao Tortoni, de sorvetes. Estes filhos de carpinteiro, que se envergonham de que seu pai seja carpinteiro! Estes nascidos na América, que se envergonham, porque vestem avental índio, da mãe que os criou, e renegam, velhacos, a mãe enferma, e a deixam sozinha no leito das enfermidades! Mas, afinal, quem é o homem - o que permanece com a mãe, curando-lhe a enfermidade, ou o que a põe a trabalhar onde não a vejam, e vive do seu sustento nas terras apodrecidas, com o verme de gravata, maldizendo o seio que o alimentou, passeando com o letreiro de traidor nas costas da casaca de papel? Estes filhos de Nossa América, que há de salvar-se com seus índios, e vai de menos a mais; estes desertores que pedem fuzil nos exércitos da América do Norte, que afoga em sangue a seus índios, e vai de mais a menos!”
Martí se põe a analisar os Estados Unidos, pois considera que a independência exigirá uma luta tenaz contra o inimigo imediato, a Espanha, mas que não se deve perdê-los de vista. Critica o preconceito racial; denuncia o assassinato dos operários em Chicago que originaria o 1o de Maio (reproduzindo, em apropriadíssimo contexto, o poema “Os Tecelões”, do alemão Heirich Heine, adotado pelos revoltosos); analisa a trajetória do Presidente Grant e a formação do imperialismo norte-americano. Mas Martí não quer apenas livrar Cuba e Porto Rico das garras do Norte, quer, com isso, assegurar a independência latino-americana ameaçada e, assim, salvar a dignidade e a história dos Estados Unidos, evitando que trilhem o seu cruel destino de “Roma Americana”: “É um mundo o que estamos equilibrando: não somente duas ilhas que vamos libertar”. Por isso retoma Washington, Lincoln e as melhores tradições democráticas da grande Nação; comemora junto com o povo os Cem Anos da Independência; descreve a inauguração da Estátua da Liberdade, em 1886; aborda Longfellow, Emerson e Walt Whitman.
No ensaio sobre este último, uma grande identificação de propósitos e de linguagem, Martí, com Whitman, combate o pessimismo bolorento: “Já não se trata da queixa estéril dos que não têm a energia necessária para domar a vida. (...) Trata-se de refletir em palavras o ruído das multidões que se assentam e das cidades que trabalham”. Aos que se encolhem num intimismo cerceante e demasiado, recomenda: “Olhem para as montanhas cobertas de matas, poetas que regais com lágrimas pueris os altares desertos”. É aqui, também, que expõe o papel que atribui à poesia, e, por extensão, a toda a arte: “Quem é o ignorante que sustenta que a poesia não é indispensável para os povos? Há gente de vista mental tão curta, que acredita que toda a fruta se acaba na casca. A poesia, que congrega ou disagrega, que fortifica ou angustia, que aguça ou derruba as almas, que dá ou retira a fé e o alento, é mais necessária aos povos que a indústria, pois esta lhes proporciona o modo de subsistir, enquanto que aquela lhes dá o desejo e a força da vida”. Não cabe supor se se trata de hipérbole, ou não, a alegada supremacia da poesia, “mais necessária do que o progresso”, basta percebê-la tão necessária quanto - como dois rios que correm juntos para o mesmo mar.
Nesse período novaiorquino, a relação com a esposa Carmen Zayas Bazan, que não aceita a missão que Martí se impôs, evolui até a separação em 1890. Cerca de um ano depois Martí passa a viver com Carmen Miyares, viúva dona da pensão em que reside, tomando como seus os filhos desta, especialmente a caçula Maria, a quem dedica vários poemas. Um deles, “Los Zapaticos de Rosa”, prenuncia a forma de “Versos Sencillos”.
Estabelecida a custo ao longo dos anos, a poética de Martí realiza-se plenamente com “Versos Sencillos”. Não há mais oposição entre o erudito e o popular, entre forma e conteúdo, e, como dissemos no início, entre teoria e ação. Um longo poema de amor, de quarenta e seis seções, quase todo em quadras metrificadas - amor à mulher, ao povo, à pátria, ao filho, aos pais, à natureza, à cultura e à humanidade. É, sem dúvida, sua maior realização literária, escrita quando adoeceu após a Primeira Conferência Internacional Americana, ocorrida em Washington, durante o inverno de 1889-1890. O abatimento, como ele mesmo confessa no prefácio do poema, publicado no decisivo ano de 1891, se deu pela dúvida cruel que sentiu diante da possibilidade de que as nações americanas pudessem “ajudar no insensato plano de apartar Cuba, para o bem único de um novo amo dissimulado, da pátria que a reclama e nela se completa, da pátria hispano-americana”. A superação dessa fraqueza se dá na própria realização de “Versos Singelos”: “Dores?! Quem ousa dizer/ Que eu tenho dores? Logo, / Depois do raio, e do fogo, / Terei tempo de sofrer”.
No mesmo ano, Martí abre mão dos cargos consulares e da presidência da Sociedade Literária Hispano-Americana, envia para “La Nación” de Buenos Aires seu último artigo jornalístico, para preparar exclusivamente a luta pela independência, que se mostrava madura em Cuba. Funda o Partido Revolucionário Cubano, ampla frente de combate, e, em 1892, o decisivo jornal “Patria”. Viaja para México, Jamaica, Santo Domingo (onde se encontra com Máximo Gómez), Costa Rica (encontro com Antonio Maceo) e por todas Antilhas, bem como à Miami. Articula os líderes, os apoios, os recursos, as armas. Em 1893 encontra-se com o jovem Rubén Darío, de passagem por Nova York, a quem chama carinhosamente de “filho”. A notícia do aprisionamento de três barcos carregados de armas no início de 1895, recuperadas por Martí através de um advogado, entusiasma, pela magnitude dos preparativos, os cubanos da ilha e os emigrados.
No dia 24 de fevereiro tem início a luta, e poucos dias depois Martí chega num bote, vindo do Haiti. O trio composto por ele, Maceo e Gómez dirige os acontecimentos. Os cubanos passam a chamar Martí de “presidente”. No dia 19 de maio, em Dos Rios, uma escaramuça surpreende os combatentes, Martí avança junto com um companheiro e cai ferido de morte. Ele, que havia escrito no seu diário após chegar a Cuba: “Até hoje não havia me sentido um homem. Vivi envergonhado, arrastando as correntes de minha pátria, toda minha vida. (...) Este repouso e bem estar explicam a constância e o júbilo com que os homens se oferecem ao sacrifício. (...) É um grande prazer viver entre homens na hora de sua grandeza”.
A tarefa ciclópica que se impôs deixou marcas profundas. Herói latino-americano na acepção plena do termo - aquele que representa e dignifica seu povo, ao tempo em que é gerado física e historicamente por ele - Martí não só ampliou a consciência política da América, como influenciou com sua obra os poetas hispano-americanos e toda a nova e moderna poesia espanhola , numa clara inversão de expectativas: no que se entende como modernismo, como no que diz respeito a um conteúdo e forma próximos do povo. Assim, Garcia Lorca encontraria uma fonte cristalina no romanceiro popular, e Antonio Machado, Miguel Hernandéz e Rafael Alberti buscariam apoio nas “coplas” para enfrentar o franquismo. Não queremos com isso limitar, mas tão somente dar um lampejo do legado martiano. Afinal, 507 poemas, além de novelas e dramas, somados a uma incrível profusão de artigos e cartas, constituindo dezenas de volumes quando editados em livro, não permaneceriam incólumes. A presença de “Guantanamera”, cuja letra foi retirada de “Versos Sencillos”, no repertório musical que identifica os latino-americanos perante o mundo, é apenas um exemplo. Martí veio para ficar, para unir e dignificar a América Latina, para embelezar o mundo.
Leia todos os textos do Especial: José Martí: 158 anos.
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