Por Jesús Arboleya Cervera
Fonte: ANNCOL
Tradução: Joaquim Lisboa Neto
Como analisar a legitimidade de um sistema político? É democrático ser eleito por menos de 20% dos eleitores?
Recentemente, num de meus artigos para Progreso Semanal, afirmei
que a capacidade de resistência demonstrada durante meio século,
confirmava a vontade popular da maioria dos cubanos a favor do
socialismo. Ainda creio que esta é a melhor evidência; no entanto,
para alguns isto não é suficiente e argumentaram a suposta falta de
legitimidade de um regime que, em sua opinião, não cumpre com os
padrões democráticos exigidos no mundo.
Está claro que partimos de premissas distintas para analisar
a legitimidade de um sistema político. Não obstante, tratei de
adaptar-me a sua lógica para responder-lhes e então descobri que o
problema nem sequer radica nas premissas, mas sim na utilização de
parâmetros diferentes para avaliá-las. Decidi, então, empreender o
exercício teórico de comparar os instrumentos formais da democracia
cubana com a estadunidense, considerada por muitos a democracia
perfeita, aquela que os demais devem imitar, se não quiserem correr
o risco de que lhe caiam matando a canhonaços.
Para referendar o socialismo em Cuba, existe uma Constituição
votada mediante plebiscito por mais de 90% da população em 1976.
Ainda assim, alguns a consideram menos legítima que a Constituição
dos Estados Unidos, tão sagrada como a Bíblia, apesar de que foi
referendada por um pequeno grupo de pessoas, quando no país ainda
existia a escravidão e nunca foi objeto do escrutínio popular. Não
digo que, por isso, a Constituição norte-americana não seja legítima,
de fato, sua legitimidade está confirmada pela história do país, porém
o mesmo padrão deveria prevalecer para analisar a cubana.
O mesmo ocorre com as eleições, enquanto o prefeito de Miami-
Dade recentemente foi eleito com menos de 20% de participação
dos eleitores, em Cuba sempre supera os 80%. É certo que não
está estabelecido o voto direto para eleger o presidente de Cuba,
senão que isso é decisão da Assembleia Nacional do Poder Popular,
cujos deputados são eleitos pelo voto direto e secreto dos eleitores,
porém o mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde um presidente pode
resultar eleito apesar de não contar com a maioria do voto poular e,
em várias ocasiões, tem sido assim, sem que isso seja considerado
uma demonstração de ilegitimidade.
Nem os piores críticos do sistema têm expressado que existe fraude
nos processos eleitorais cubanos. No entanto, é bastante comum nas
eleições norte-americanas, seja a nível local ou nacional, que alguma
das partes acuse ser vítima de fraude. Basta recordar o escândalo
monumental que constituiu a eleição de George W. Bush, em que
muito teve que ver, aliás, a maquinaria da extrema direita cubano-
americana. Ainda assim, na comparação perde Cuba, porque se aduz
que os eleitos são instrumentos do regime, como se Bush e tantos
outros, incluindo o popular Obama, sirvam a outra coisa que não seja
aos grandes interesses econômicos do país.
Não creio que o sistema político cubano esteja isento de
insuficiências, porém isso não radica na organização do sistema
eleitoral, nem na legitimidade dos eleitos. Quase ninguém se detém
a analisar que, mediante este sistema, se os opositores tivessem
respaldo popular, seus candidatos ganhariam facilmente em muitas
localidades. O problema reside em seu funcionamento, onde é
limitada a capacidade dos eleitos, sobretudo a nível de base, para
satisfazer as demandas de seus eleitores, algo por resolver, enquanto
se aspira a uma democracia popular com todos os seus atributos.
Não obstante, não estamos falando da demagogia que caracteriza os
políticos norte-americanos, algo tão normal que ninguém espera que
cumpram o que prometem em suas campanhas.
Tampouco, ante a opinião de seus críticos, para legitimar o socialismo
em Cuba, pode invocar-se o respaldo expressado em manifestações
ou consultas populares, nem sequer a participação do povo na defesa
do país. Se trata simplesmente de manipulações do governo ou
resultado da repressão imperante, como se os cubanos, que em
apenas um século fizemos quatro grandes revoluções armadas,
fôssemos uns covardes cordeirinhos, controlados por governantes
que nem sequer têm necessidade de nos tratar a pauladas, como
vemos frequentemente na televisão, por parte de governos
considerados perfeitamente legítimos.
Tampouco serve o argumento do desenvolvimento humano
alcançado, porque o acesso universal à educação, à saúde pública
e a proteção social, ainda que constituam aspirações fundamentais
de todos os povos do mundo, inclusive nos países desenvolvidos
e nos próprios Estados Unidos, no caso de Cuba são, quando
mais, reconhecidos como conquistas menores do sistema, que não
alcançam para explicar o apoio dos cubanos, já que parece que
também somos bastante idiotas.
Como para os fundamentalistas do capitalismo não são aceitáveis
estes argumentos, preferi, então, recorrer a um que provém de uma
fonte que me parece irrepreensível, por tratar-se do pior inimigo da
Revolução Cubana, a saber, o próprio governo norte-americano. E
refere-se a indagar a razão pela qual os Estados Unidos, que invadem
qualquer país, não se decidiu a invadir Cuba.
Uma razão é que estão convencidos da resistência que ofereceria
o povo cubano, validando meu principal argumento, porém,
ainda assim, é evidente que a capacidade militar cubana não é o
que contém as sempre dispostas e poderosíssimas tropas norte-
americanas, mas sim o impacto político que teria esta resistência
em escala mundial, como resultado da legitimidade da Revolução
em todas as partes. Isto não é o que replica a imprensa mundial e a
opinião de alguns expertos, porém, afortunadamente, os governantes
estadunidenses não dependem deles para fazer seus julgamentos e,
neste caso, têm sido bem aconselhados, até agora.
Como disse o reconhecido intelectual mexicano Pablo González
Casanova, o socialismo é um projeto que, como meta, se identifica
com o comunismo, diga-se, uma sociedade sem diferenças de
classes e, por sua vez, é um social para alcançar este cometido,
pelo que os erros, incongruências ou as dificuldades do processo
não deslegitimam a qualidade do projeto socialista. Claro está que
este raciocínio é válido para analisar qualquer outro projeto social,
inclusive o capitalismo, por isso, estamos na presença de um debate
ideológico a respeito do ideal de sociedade que se pretende alcançar.
Nisto reside a dificuldade para pôr-se de acordo os defensores de
uma e outra ideologia, assim como as manipulações interessadas em
adulterar a prática, com o fim de desqualificar a teoria. Sobretudo
quando se trata dos dogmáticos de qualquer partido, porque o
ideal se converte num ato de fé e isso os inabilita para analisar as
qualidades dos processos com a objetividade requerida, como ocorre
frequentemente no caso cubano.
Ainda assim, a solução não é evadir o escrutínio, porque a
legitimidade não é algo que só aporta a virtude da ideia, a história
de luta, nem sequer os benefícios alcançados, os quais justamente
são assumidos como direitos conquistados, formando parte da vida
cotidiana das pessoas, que sempre se propõe metas superiores.
Tampouco é uma condição imutável, mas sim dialética, que tem
que renovar-se dia a dia, avançando no desenvolvimento social e
construindo o consenso popular, sem o qual é insustentável o projeto
socialista, por sua própria natureza.
Montões de tropeços tem este caminho, porém a ideia de avançar
para esse ideal não está só nas palavras de ordem oficiais, muitas
vezes contraproducentes, porque simplificam a mensagem até
adulterá-la, senão que forma parte de uma consciência social
integrada à identidade do cubano atual. A cultura popular também
é um fator que aporta legitimidade ao socialismo em Cuba, porque
vive na mente dos cubanos, ainda que alguns não atinem para isso e
outros pretendam negá-lo.
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