segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A enfermidade e os médicos brasileiros formados em Cuba

Luciano Rezende *
Fonte: PORTAL VERMELHO

No início do mês de dezembro do ano passado o presidente Lula participou do Congresso Mundial de Engenheiros, realizado pela primeira vez no Brasil, e ao fazer o discurso de abertura reconheceu a grande carência de engenheiros no país e apontou medidas

Esse reconhecimento público é fundamental. Mais importante ainda é a tomada de decisão para reverter o atual quadro de deficiência de profissionais qualificados para a área. Lula anunciou algumas políticas que estão sendo implementadas nesse sentido como a valorização das escolas técnicas, o aumento de vagas nos cursos de graduação em engenharia - resultante da criação de novas universidades (em 2006 as universidades federais ofereciam 16 mil vagas nos diferentes cursos de engenharia, para 2012 a expectativa do MEC é que elas superem 35 mil vagas) -, e o saudável intercâmbio acadêmico e cultural entre as instituições de ensino nacional e estrangeiras.

Tudo isso faz lembrar uma enfermidade crônica há muito enfrentada pelos médicos brasileiros formados em Cuba (e em outros países): o preconceito de classe. O agente causal dessa doença é justamente o reacionarismo hospedado em seus pares que dirigem importantes entidades representativas no Brasil, tais como a Associação Médica Brasileira, o Conselho Federal de Medicina e a Federação Nacional de Médicos. Se nas engenharias o quadro atual é alvissareiro, nas ciências da saúde em geral fica a impressão de que tudo está ótimo e de que atendemos a todos os interesses da nação.


Totalmente na contramão dos clamores populares e do próprio posicionamento da Federação Brasileira das Associações de Engenheiros do Brasil (Febrae), que saudou o discurso do presidente Lula, o presidente da Associação Médica Brasileira (ABM), José Luiz Gomes do Amaral, chegou a afirmar que no Brasil não faltam médicos!!!

Por trás desse posicionamento, além do corporativismo e de muita insensibilidade social, se esconde o preconceito contra os médicos brasileiros formados em um país socialista e a defesa enrustida do controle de reserva de mercado de emprego da categoria. A AMB é radicalmente contrária à validação do diploma cubano no Brasil sem a necessidade de uma prova de proficiência feita para reprovar e extorquir (algumas custam mais de 6 mil reais só em documentos).

Entretanto, não é apenas preconceito ou corporativismo de categoria. Há uma disputa ideológica e de interesses patrocinada por aqueles que enxergam a área da saúde sob o prisma mercadológico, mais voltada para a cura que para a prevenção.

Uma das justificativas para a obstrução no aproveitamento dos médicos brasileiros formados em Cuba é uma suposta defesa da qualidade e do mérito na formação destes recursos humanos. E o irônico é que quase todos os dias assistimos (pela imprensa ou na própria pele) casos de erros grosseiros cometidos por profissionais da saúde formados no Brasil. Na semana passada, por exemplo, um bebê foi resgatado com vida no necrotério por uma faxineira após a recém-nascida ser dada como morta pela equipe médica. Onde estão a Associação Médica Brasileira, o Conselho Federal de Medicina e a Federação Nacional de Médicos nesses momentos?

Claro que erros são cometidos em todas as áreas, nas mais diversas profissões. Além do mais, os valorosos médicos brasileiros muitas vezes são submetidos às mais adversas e precárias condições de trabalho em um sistema nacional de saúde que ainda apresenta grandes gargalos e limitações com uma visão histórica, como bem lembra o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, muito mais fincada no tratamento da doença do que propriamente na prevenção, onde a demanda cada vez maior por tratamentos de alta complexidade e por medicamentos caros faz com que boa parte dos processos de cura - que deveria ser realizada pelo SUS - passe para as mãos de setores privados, processo que gera uma dependência cada vez maior para com os mesmos. Mas existem erros que, mesmo apesar do sucateamento dos hospitais, jamais podem ser tolerados. É inadmissível a passividade e condescendência destas mesmas entidades que são tão exigentes com a excelência quando se trata de médicos formados em outro país e se emudecem na maioria das vezes quando quem está no alvo da denúncia são os diplomados em solo brasileiro.

O vice-presidente do CFM, Roberto D`Ávila, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo do dia 31 de dezembro de 2008 é taxativo: “Não somos corporativistas. O que não podemos é arriscar entregar a saúde da população para médicos despreparados”. Pergunto: Acaso são bem preparados esses médicos formados nas inúmeras faculdades particulares brasileiras que se proliferaram na década de 1990 e que constantemente aparecem nas manchetes policiais? O que o CFM está fazendo em nome da tão propalada “excelência” médica nacional? Por acaso os milhares de brasileiros que moram no estrangeiro esperam voltar ao Brasil para serem tratados com os seus conterrâneos médicos?

Engraçado. Hoje um professor universitário qualquer viaja para os Estados Unidos ou Europa, faz um curso com a duração de alguns meses e quase que automaticamente acrescenta ao seu Currículo Lattes o pomposo “título” de “pós-doutorado” Outros inovam e se dizem “pós - Ph. D.” Nesses casos quase ninguém se atreve a questionar a qualidade e relevância de tal curso (na maioria feito por conta própria do doutor, mas com financiamento público) para sua formação. Tudo é aprovado entre os seus pares sem alarde.

Importante lembrar que os mais de mil brasileiros que cursam ou cursaram medicina em Cuba não querem validação automática e instantânea de seus diplomas. Estão todos sujeitos a realizarem provas em universidades que mantenham convênios com a Escola Latino-Americana de Medicina de Cuba (Elam) com o objetivo de testarem seus conhecimentos e desenvolverem no Brasil as diversas especialidades. Se há uma diferença significativa entre a qualidade do ensino da Elam e das muitas faculdades particulares existentes em nosso país é que enquanto estas selecionam os filhos da burguesia e estimulam a busca pelo lucro e pelo “status”, a Elam democratiza o acesso aos filhos da classe operária e valoriza o enfoque na medicina social (redundância?) para ir de encontro dos que estão mais desassistidos, mesmo abrindo mão de certos confortos e vantagens financeiras. Além do mais, Cuba é referência mundial em saúde.

Cuba oferece bolsas integrais de estudo aos estudantes brasileiros oriundos de famílias de baixa renda e inseridos a movimentos sociais com a exigência da contrapartida de que após formados esses médicos retornem às suas comunidades ou outros locais de maior carência em assistência médica (que no Brasil é urgente).

O remédio mais eficiente para o enfrentamento da doença do preconceito e da insensibilidade social é a radicalização da luta. O tratamento deve ser junto ao povo como é feito na Venezuela, Bolívia, Nicarágua e Equador, que adotam, cada um à sua forma, os projetos “Barrio Adentro” (Bairro Adentro), “Misión Milagro” (Missão Milagre), entre outras iniciativas apoiadas entusiasticamente por seus povos.

Mas para isso é preciso maior audácia do governo federal através dos seus ministérios envolvidos no tema. A Câmara já demonstrou estar infecta pelo poderoso lobby da medicina privada. O governo deve encaminhar uma proposta de convênio direto de cooperação e reciprocidade a ser firmado entre algumas universidades brasileiras e a Elam. A partir daí esses profissionais poderão fazer as suas complementações através de disciplinas que abordem as normas do Sistema Único de Saúde ou que trate sobre doenças tropicais já extintas em Cuba e ainda existentes no Brasil e, sobretudo, sejam avaliados de forma justa e ágil (hoje as vagas para a validação de diploma nas universidades brasileiras não ultrapassam a 3 por ano!).

Enquanto o governo não se pronuncia com o mesmo ímpeto pela abertura de mais vagas para os profissionais de saúde em nosso país como vem fazendo nas engenharias, a justa validação dos diplomas de brasileiros formados em Cuba seria o primeiro remédio a ser ministrado, ainda que em doses homeopáticas, sem riscos de efeitos colaterais para o povo brasileiro.
* Engenheiro agrônomo, mestre em Entomologia e doutorando em Genética. Professor do Instituto Federal do Alagoas.

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