domingo, 28 de fevereiro de 2010

Presidente do parlamento cubano: herdeiros do ditador Batista dominam Miami

Alarcon em Havana | Foto: Marcelino Vazquez/ACN
Por Natália Viana no Opera Mundi 

Querer é uma coisa, fazer é outra. Assim pode ser resumida a avaliação do presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba, Ricardo Alarcón de Quesada, sobre o governo de Barack Obama.

Dias antes da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país e da morte do opositor Orlando Zapata, o presidente do parlamento cubano recebeu o Opera Mundi para uma entrevista em que falou principalmente sobre dois temas: a política de Washington para a América Latina (e para Cuba em particular) e o caso dos cinco cubanos presos nos Estados Unidos desde 1998 sob acusação de espionagem.

Alarcón avalia que Obama não é mal intencionado, mas que também não vai fazer história como o presidente dos EUA que aproximará seu país dos vizinhos ao sul. Obama é bem melhor do que George W. Bush, explica Alarcón, mas não sabe como colocar em prática as ideias que tem. Também não dá a devida importância a Cuba e à região de maneira geral, mas nem é por falta de vontade: o problema é que temas como reforma da saúde, crise econômica e guerras dominam sua agenda.

Os cinco prisioneiros cubanos presos nos EUA são Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e Réné González, condenados pela juíza de Miami Joan Lenard. Após uma decisão do Tribunal de Apelação que considerou as penas iniciais excessivas, no final do ano passado, três deles tiveram suas penas reduzidas: Ramón Labañino, antes condenado à prisão perpétua, teve a pena fixada em 30 anos; Fernando González teve redução de 19 para 18 anos; Antonio Guerrero, de prisão perpétua para 22 anos.

Sobre eles, chamados de “patriotas” pelos cubanos, Alarcón defende que as penas impostas pela Justiça dos Estados Unidos são descabidas e desproporcionais em relação a condenados com acusações mais graves, mesmo após a revisão.

Estudioso das relações entre Cuba e Estados Unidos há quatro décadas, o presidente da Assembleia foi chefe da missão cubana na Organização das Nações Unidas e chegou a ser cogitado como possível sucessor de Fidel Castro.

O sr. pode explicar o que os cinco cidadãos cubanos hoje cumprindo pena faziam em Miami? 

A defesa alega que estavam investigando um ato terrorista contra Cuba. Não somente um, mas muitos atos. Isso está documentado no processo. Por exemplo, eles se infiltraram no grupo terrorista de Orlando Bosh para descobrir os planos terroristas que estavam tramando e informar Cuba. E uma das testemunhas de acusação, Rodolfo Frometa, faz parte de um grupo chamado Comandos F4, gente que veio de lancha a Cuba e atacou a costa do país, o que Frometa reconheceu no tribunal.

Qual é a posição do governo cubano sobre a redução da pena decretada em dezembro do ano passado? 

Mesmo com a redução das penas, elas são realmente excessivas, se compararmos com qualquer outra sentença ditada nos últimos anos nos Estados Unidos por espionagem. Recentemente, houve um caso de um norte-americano acusado de espionar para a China [James W. Fondren, condenado em setembro último por entregar documentos do Departamento do Estado a um agente chinês], e o sentenciaram a três anos de prisão.

Só que os cinco patriotas cubanos não foram acusados de espionagem, mas de conspiração para cometer espionagem. Conspirar, segundo a lei americana, quer dizer que duas ou mais pessoas se puseram de acordo sobre fazer algo. Se alguém, por realizar espionagem, é condenado a três anos, alguém por apenas conspirar para isso deveria receber muito menos. Há vários casos de espiões reais que roubaram documentos secretos da Casa Branca, do Pentágono, do Departamento de Estado. Nenhum deles foi condenado a prisão perpétua ou a 30 anos de prisão.

Há outros casos de cubanos presos por espionagem nos EUA? 

É muito raro que haja julgamentos em qualquer país do mundo. Quando fui embaixador na ONU, nos anos 1970, tive companheiros acusados de espionagem que foram expulsos. O que ocorre como frequência são expulsões de espiões de um lado e de outro.

O governo cubano não considera a redução das penas uma vitória? 

Pode-se dizer que é um avanço. Ter uma sentença determinada significa que a pena pode ser reduzida, por boa conduta, porque parte da prisão já está cumprida... Nesse sentido, sem dúvida foi uma vitória. Não é ainda Justiça, porque não posso dizer que seja justo que mantenham uma condenação de 21 anos para Ramón ou de 20 anos para Antonio. Agora devem transferi-los de áreas de segurança máxima para áreas mais leves. A mãe de Toni contou-me que, na prisão onde ele está, outros prisioneiros passam a maior parte do tempo fora do edifício, mas os que estão em segurança máxima ficam encarcerados dentro do prédio.

E há coisas absolutamente diabólicas: os presos de segurança máxima, por exemplo, têm que se reportar [aos guardas] a cada duas horas. Assim é o dia inteiro, sendo checado, contado, vigiado pelos guardas etc. Quem lhes devolve esses onze anos de privações especiais que não estavam justificadas?

Além dos aspectos práticos da detenção, o sr. considera que houve uma vitória política? 

O mais importante, a meu ver, foi o argumento usado pela promotora para pedir uma sentença mais leve: a existência de um movimento de solidariedade, uma onda que se estende por todo o planeta e que, para o governo norte-americano, é importante tratar de conter. Para nós, é um importante reconhecimento da eficácia da denúncia internacional e da solidariedade internacional.

Dizem que a política dos EUA em relação a Cuba se faz na Flórida e não em Washington. O sr. concorda com isso? 

Isso é verdade em certo sentido. Para os Estados Unidos, Cuba não tem sido até agora considerado como um assunto muito importante. É um país pequeno, não é um mercado grande. É um inconveniente, uma chateação, mas não é um Brasil, uma China.

Quando havia guerrilhas na América Latina, claro, a Revolução Cubana teve um impacto no continente, e isso se converteu em uma preocupação para eles. Mas hoje Cuba não é um problema que interesse a muitos norte-americanos. Exceto para os antigos proprietários e funcionários do regime de Batista [Fulgêncio Batista, ditador derrubado pela revolução de 1959], essa gente que se instalou em Miami e a converteu em uma fortaleza.

O poder local pertence a esse grupo? 

Essa zona eleitoral tem três representantes na Câmara dos EUA. Os três são de origem cubana, dois deles filhos de um ex-ministro de Batista e um deles afilhado de Batista. Dos dois senadores da Flórida, até há pouco, um era cubano [ele renunciou]. O chefe da polícia, o prefeito da cidade, o chefe dos bombeiros, os donos dos principais meios de comunicação locais – TV, rádio, jornais –, todos são cubanos daquela procedência batistiana. Quando o processo judicial começa e os jurados são interrogados pelas partes, a maioria diz ter medo de tomar uma decisão contrária a essa gente. E esses mesmos jurados, quando estão sentados no julgamento durante sete meses, veem desfilar esses personagens que dizem ter armas. Um deles foi preso em 1994 por querer comprar explosivos F4, fuzis antitanques... Eles são lembrados o tempo todo de que esses tipos são capazes de fazer coisas sem serem molestados pelo governo.

O sr. acabou de dizer que Cuba é para o governo americano um problema pequeno. Por que essa comunidade tem tanto poder nacionalmente? 

A chave para a política americana é o dinheiro. De 2004 até agora, os empresários cubanos em Miami deram 10 milhões de dólares a candidatos de ambos os partidos. Essa gente tem uma influência superior ao número de votos. Mas também tem havido um processo constante de imigração de Cuba para os EUA nos últimos anos, 20 mil por ano... São pessoas que não têm nada a ver com aquela velha imigração. É gente nascida em Cuba, que se formou aqui, mas migrou por razões que não têm nada a ver com ideologia. São imigrantes normais, que vão para trabalhar etc. Ou seja, aí se está produzindo cada vez mais uma dicotomia, uma separação entre a mentalidade dessa ultradireita batistiana do início e a massa da imigração cubana. Agora, repito: quem controla os poderes locais não é essa massa, mas essa minoria.

 Agora, na administração de Barack Obama, esse grupo mantém o mesmo poder?

Obama é o primeiro presidente norte-americano depois da revolução que conquistou Miami sem apresentar uma política mais agressiva contra Cuba. Ao contrário. Ele prometeu pôr fim às proibições de viagens e remessas dos cubano-americanos. E no último ano, depois da permissão, vieram a Cuba 300 mil cubanos que vivem nos EUA. Veja que aí está a grande contradição. A direita sempre se opôs ferozmente às viagens a Cuba, porque são a negação da ideia do exílio. O exilado é o tipo saído por motivos políticos e não pode voltar. Como uma pessoa pode ser exilada se pode regressar ao país de onde fugiu?

Além da permissão às viagens dos cubanos à ilha, o sr. vê outros avanços na política de Obama? 

Há uma grande pressão de outros países latino-americanos pelo fim do embargo. Logo que Obama assumiu, onde quer que houvesse um dirigente latino-americano, ele e a secretária de Estado [Hillary Clinton] ouviam que o embargo e a política em relação a Cuba eram um erro. Nesse sentido, agora há uma nova situação na América Latina. Cuba tem relações com todos os países da região. Ou seja, ele sabe que, em termos de relação com a América Latina, Cuba tem se tornado um tema mais importante. Não porque Cuba em si seja tão importante, mas porque a América Latina também mudou. Creio que a maior diferença entre este governo e o anterior [de George W. Bush] se reflete no que disse a procuradora no caso dos cinco patriotas: a administração atual reconhece que há uma onda de críticas, e eles necessitam conter essa onda.

Mas isso se reflete em ações concretas? 

Eu sigo pensando que Obama é uma pessoa com boas intenções. É muito melhor que o de antes. Mas o denominador comum das críticas que eu vejo contra Obama de um setor que mais se iludiu com a sua vitória é sua tendência à conciliação, seu compromisso com os republicanos, ou seja, ele está fazendo um governo muito à americana. Cuba seria evidentemente um tema que seria criticado pela direita americana, não só em Miami. E ele tem problemas que são muito mais prementes, que necessitam, segundo a sua mentalidade, de certa cooperação com a direita, como o tema da reforma da saúde e a crise econômica. E tem as duas guerras [Afeganistão e Iraque]. Tudo isso faz com que a importância de Cuba fique muito baixa.

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