Fidel Castro discursando em Havana após vitória da Revolução de 1959 |
Os processos de descolonização iniciados após a Segunda Guerra Mundial geraram ondas de democratização e libertação nacional, produzindo um novo equilíbrio global, com o nascimento do chamado Terceiro Mundo. Pelo seu potencial militar e diplomático, e diante do declínio da influência europeia, a União Soviética desempenhou um importante papel junto aos novos países – apresentando-se como um parceiro tolerante à diversidade de sistemas sociais e níveis econômicos. Os novos Estados socialistas adotaram diferentes vias para a construção dos seus modelos revolucionários. E Cuba foi um caso à parte, de grande significação para o mundo.
O programa inicial de Fidel Castro e do Movimento 26 de Julho, juntamente com os demais grupos que lutaram contra o regime de Fulgêncio Batista e em 1959 assumiram o poder, consistia em um conjunto de instruções democráticas e reformistas. O novo líder cubano pregava uma doutrina humanista, não exatamente marxista, a não ser pelos princípios democráticos e de justiça social.
A primeira fase da Revolução encerrou-se entre 1961 e 1962. O ataque fracassado dos Estados Unidos à baía dos Porcos e seus efeitos – a Crise dos Mísseis com a URSS e a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) – desencadearam uma sucessão de rupturas nas relações dos governos latino-americanos com a ilha. Por outro lado, desde que o vice-primeiro-ministro soviético Anastas Mikoyan visitou Cuba em fevereiro de 1960, e assinou os primeiros de muitos acordos de troca de petróleo e açúcar entre os países, a URSS e o bloco socialista passaram a ser vistos como uma possível saída para a dependência econômica de Cuba no continente, especialmente diante da crescente oposição norte-americana.
Nos anos 1970, a economia cubana se integrou ao Conselho Econômico de Assistência Mútua (Comecon) – organismo fundado para dar apoio aos Estados comunistas do Leste europeu – e passou a contar com um mercado e preços estáveis para suas exportações. Em contrapartida, os cubanos garantiam seu abastecimento de petróleo e outros gêneros essenciais. As trocas com a URSS passaram a representar 60% do comércio exterior do país, e o conjunto de países da comunidade socialista somava o total de 75% daquele fluxo. Essa estabilidade, combinada com os planos quinquenais e com avanços tecnológicos, educacionais, culturais, sociais e políticos, possibilitou ao país alcançar altos níveis de crescimento em todos os planos. E, especialmente, manter o equilíbrio entre os desenvolvimentos econômico e social.
Na lógica revolucionária cubana, tratava-se de alcançar e defender uma independência real, cuja projeção externa deveria enfatizar as transformações sociais. O Estado cubano, historicamente pouco importante em assuntos globais, agora poderia (e deveria) interferir na dinâmica internacional, com vistas ao fortalecimento da própria Revolução. Para Cuba, a política exterior sempre representou muito mais do que simples estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas. Influenciava a formulação das políticas domésticas e servia de base para a construção de uma nova identidade nacional. Afinal, o posicionamento internacional de Cuba refletia sua relação com as duas superpotências da Guerra Fria: Estados Unidos e União Soviética, oposição que perduraria até 1991, com a queda do regime comunista soviético.
Por uma década, os cubanos treinaram grupos de guerrilha por toda a América Latina. Cuba também deu apoio civil e militar à série de guerras de libertação nacional na África e na Ásia. Sua atuação internacional se revelou muito mais ampla e complexa do que o simples estímulo revolucionário. Parte desses movimentos guerrilheiros, que não consideraram ter as condições próprias para a revolução e que não possuíam a experiência cubana, sucumbiu diante de grupos de oposição cada vez mais fortes e apoiados pelos Estados Unidos.
O golpe final na estratégia de guerrilhas veio em 1967, quando Che Guevara foi morto na Bolívia. O episódio coincidiu com novos fatores regionais. No final dos anos 1960, começou a se desenvolver na América Latina uma espécie de “militarismo reformista”, que adotou aspectos do discurso de esquerda e produziu legislações progressistas e nacionalistas. No mesmo período, foi revista a exclusão de Cuba da OEA, que voltou a reconhecer o país. Assim, com uma porta se fechando e outra se abrindo, a política cubana para a América Latina deixou de lado a confrontação e adotou uma incipiente cooperação.
A ideia de que a revolução no continente africano era iminente – diante da instabilidade em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Congo e Zaire – fez com que os cubanos acreditassem na importância de estabelecer uma política também naquele continente. As relações externas de Cuba se mostraram proveitosas junto a movimentos de libertação na Ásia: o país desenvolveu forte afinidade com o Vietnã, compreendendo sua resistência ao imperialismo norte-americano como paralela à luta cubana. A mesma postura teve Cuba em relação ao Iêmen do Sul, e em ambos os casos interpretou que aqueles países foram “abandonados” pela China e pela URSS.
Entretanto, no final dos anos 1970 os cubanos adotaram uma posição menos militante e mais próxima da URSS. Observadores apressados afirmaram que a ilha havia perdido o entusiasmo e deixado de lado seu comprometimento com a Revolução. O que se viu foi uma postura pragmática diante das transformações mundiais. Antes cercada, Cuba não tinha nada a perder. Agora, em um novo contexto e depois das muitas conquistas, era necessário se preservar para sobreviver. Essa decisão não significou o esvaziamento da política africana nem da visão terceiro-mundista, pois as relações de cooperação permaneceram.
As primeiras quatro décadas da Revolução ensinam algumas coisas sobre a trajetória cubana. Seu governo foi obrigado a reagir e a se adaptar a circunstâncias externas em transformação, seja em termos de oportunidades econômicas, seja em função de alianças ou conflitos políticos. Porém, diferentemente da situação anterior a 1959, Cuba conseguiu forjar certa independência através de jogadas estratégicas que garantiram a colaboração de aliados e a distância dos inimigos. Mesmo nos períodos de maior proximidade com a URSS, Havana impunha certo preço à sua dependência, que era mais aparente do que real. Em muitos momentos o país perseguiu seus próprios interesses sem consultar os soviéticos. Outra característica do perfil externo da Revolução até os anos 1990 foi o equilíbrio entre ativismo e pragmatismo. A política exterior cubana buscou garantir o máximo de independência e soberania política e econômica, e o fez através dos mais práticos meios para transpor o isolamento. A nova realidade que emergiu a partir de 1991 iria testar esse padrão no limite.
Para os críticos da Revolução Cubana, é difícil explicar sua sobrevivência. Ela iniciou um processo de transformação social em que o tradicional sistema de valores foi substituído por uma sociedade igualitária. O coletivo se sobrepôs ao subjetivo. A eliminação do racismo como prática institucional e valor social foi uma grande conquista. A integração das mulheres ao processo revolucionário e à força de trabalho modificou velhas práticas. O acesso à saúde pública e de qualidade e a novas oportunidades educacionais consolidaram a formação do “Homem Novo”.
Desde que assumiu o poder, Raúl Castro promoveu algumas reformas econômicas de médio e pequeno portes, com o objetivo de adaptar a economia cubana à realidade do século XXI. O documento intitulado “Projeto de alinhamento de política econômica e social” programou 313 diretrizes para reformas econômicas e políticas, as quais foram aprovadas pelo Congresso do Partido Comunista em abril de 2011, e que estão sendo cautelosamente implementadas no país. As relações econômico-comerciais com a China foram ampliadas, a cooperação técnico-militar com a Rússia foi retomada e o Brasil identificou a ilha como um espaço estratégico para a potencialização da dinâmica comercial na região (suporte para a construção do porto de Mariel). Nesse novo momento de atuação coordenada dos BRICS, os EUA buscam rever sua posição em relação a Cuba, inicialmente promovendo uma reaproximação diplomática. Porém, tardiamente...
Saiba Mais
AZICRI, Max. Cuba: politics, economics and society. Marxist Regimes. London/New York: Pinter Publishers, 1988.
BOERSNER, Demetrio. Relaciones Internacionales de America Latina. Breve História. Caracas: Editorial Nueva Sociedad, 1996.
KAPCIA, Antoni. Cuba in revolution: A History since the Fifties. Londres: Reaktion Books, 2008.
SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção. Petrópolis: Vozes, 2001.
Analúcia Danilevicz Pereira é professora de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos Africanos e pesquisadora do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais.
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