Por Dario de Negreiros no Viomundo
Belém - 18 de setembro de 2013 - Algumas notícias deixam especialmente preocupado um repórter que viaja para longe. “Assessor interrompe entrevista de médica cubana em Tocantins”, diz uma matéria do portal Terra, com vídeo e tudo. “Ministério ‘blinda’ médicos estrangeiros em São Paulo”, conta o Estadão. “Isso não é normal. Qual o medo? Qual o receio?”, questiona-me um amigo paulista, médico, pelo chat do Facebook. Eu, do Pará, começo a imaginar as desculpas que terei de dar ao meu editor quando voltar de viagem com meia dúzia de declarações dos tais dos cubanos, todas elas colhidas – por sorte, creio – na confusão de um desembarque na Base Aérea de Belém.
No domingo, dia em que vi o vídeo do Terra, haveria um evento no hotel onde estão hospedados todos os cubanos que vieram ao Pará. Lá, oficialmente, participam de uma “semana de acolhimento”. Na prática, como se sabe, o governo federal ganha tempo enquanto tenta resolver o imbróglio jurídico que envolve os seus registros nos CRMs (Conselhos Regionais de Medicina). “O secretário de saúde estará lá. Amanhã vai ser quente!”, diz, ao celular, um repórter paraense. É tudo o que eu não quero: jornais, televisões, autoridades locais à solta e os cubanos, imagino, blindados.
Em vez de ir ao evento “quente”, ligo para a assessora da secretaria de saúde do Pará: “Me perdi para chegar a Mosqueiro [ilha fluvial, nos arredores de Belém, onde fica o hotel]. Posso ir amanhã?”. Ser o único jornalista no local, andando livremente pelo hotel, conversar com os médicos longe das câmeras e das autoridades, parece-me uma boa estratégia.
Mas não havia blindagem alguma. Ao contrário, as assessoras, simpáticas ao extremo, facilitam de todas as formas meu trabalho. Para melhorar, minha estratégia não podia ser mais bem sucedida. Sendo o único repórter no local, posso acompanhar os médicos nas palestras, conversar tranquilamente nas varandas de seus chalés, encontrá-los no salão de jantar, entrevistá-los, relaxados, à beira da piscina do hotel. Ninguém, evidente, conversa à vontade na presença de câmeras de TV, fotógrafos de jornal e secretários de Estado, com seus auxiliares e assessores andando pra lá e pra cá.
É verdade que há uma certa homogeneidade incômoda no discurso destes profissionais, todos eles submetidos aos termos do convênio firmado pelo governo brasileiro, via Opas (Organização Pan-americana da Saúde), com Cuba. Nesta reportagem, procuro mostrar que, em situações mais informais, suas vozes chegam a expor algumas dissonâncias, mas nenhuma capaz de desfazer o uníssono fundamental. “Solidariedade” e “internacionalismo” formam um leitmotiv cujo volume nunca diminui. Se estes cantores têm liberdade interpretativa ou se são regidos por alguma batuta invisível, que julgue o leitor.
“Mucho diñero!”
É com atenção que os 62 médicos cubanos assistem à palestra do também médico Raimundo Sena, diretor da Escola Técnica do SUS (Sistema Único de Saúde). Sena fala pausadamente e os alunos, juntos, complementam: “Estes são os obje…?”: “…tivos!”. É assim o tempo todo, de forma que, tanto quanto nas entrevistas, ressoa na sala um coro de uma só voz. Se alguma bagunça irrompe – como quando Sena diz que no Brasil “o pessoal usa muita sigla”, ao que os cubanos riem vigorosamente –, surge rápido um “ssshhhhhh” e o silêncio se restabelece.
“A dificuldade maior é a comunicação, por causa da língua”, conta o professor. “Mas eles não têm dificuldade de compreensão do que se está discutindo, porque eles têm uma formação elevada. A grande maioria, além da graduação, tem especialização, alguns têm mestrado, doutorado. Isso facilita o diálogo”, afirma.
Mas há no ar uma tensão facilmente perceptível. “Eles estão ansiosos porque têm dificuldades de comunicação com Cuba, com seus familiares”, confirma Sena. De fato, quando acaba a aula, é este o único assunto. A assessora da secretaria de saúde paraense diz que lhes trará quatro notebooks, três modems e um celular com roaming internacional desbloqueado. Os cubanos explicam que, de Cuba, não se pode fazer chamadas internacionais. Os assessores, então, ligam para a operadora, consultam a tarifa da ligação para Cuba e voltam com a resposta: não será possível garantir o contato telefônico. “Custa R$4,99 por minuto! Mucho diñero!”.
Diante do único computador da sala, os médicos formam uma longa fila. Começo a conversar com um deles, que me parece bastante aflito. Compadecido, ofereço-lhe meu celular. “Quanto custa?”. Esse não é mais vendido – respondo. Esse é velho. “Mas quanto custa?”. Com a tampa traseira rachada, assim? Sei lá, uns duzentos reais – digo, chutando. “Quer vender agora?”.
É inacreditável, mas em um programa de tamanha importância para os governos brasileiro e cubano, a simples comunicação telefônica com os familiares daqueles que protagonizam a ação não foi garantida. Os assessores se preocupam, em especial, com uma das médicas, cuja filha de dois anos e meio está em Cuba. No dia anterior, ela teria “entrado em pânico”, dizem, com a dificuldade de comunicação.
É na varanda de seu chalé que converso tranquilamente com René Alberto Marrero Fernandez, 41, formado na Faculdade de Medicina de Holguín. Pergunto-lhe sobre um assunto amplamente debatido na chamada grande mídia: qual é, afinal, o destino da bolsa de R$10 mil paga, por médico, pelo governo federal?
Eis a resposta mais frequente: “este dinheiro vai, quase por inteiro, para o governo cubano; para mim, resta apenas um estipêndio mensal, o suficiente para me manter no país. Fora isso, meu salário, em Cuba, continua sendo integralmente recebido pela minha família”. Ou seja: quase todos os médicos negam que as missões internacionais sejam uma oportunidade de fazer um pé-de-meia.
René, entretanto, responde de modo um pouco diferente. “Em missões internacionais, recebemos uma compensação”, admite. “Fora isso, ajudamos um pouco a economia de Cuba, que – e isso não é segredo pra ninguém – é um país pobre. Ademais, estamos bloqueados pelo imperialismo. O embargo econômico é muito grande. Com este trabalho, melhoramos também a economia do nosso povo, que tanto necessita.”
As referências às dificuldades econômicas dão ensejo à formação de outra polifonia consonante: todos fazem questão de dizer que, em Cuba, não existe nem pobreza extrema, nem diferenças sociais importantes. “É um tema muito complicado, a economia de Cuba”, diz René. “Mas, em meu país, a pobreza extrema não existe. A saúde é totalmente gratuita para todos, assim como a educação.”
E onde não há pobreza extrema ou grandes diferenças de renda, não há violência urbana. Mais cedo, ainda durante a palestra, dois policiais militares, armados e com coletes à prova de balas, entram na sala para conversar com uma das assessoras. Esta, posteriormente, faz questão de tranquilizar a classe. “Não se preocupem. Eles só vieram aqui para dizer que, ao lado do hotel, há uma invasão, uma favela. Então, por favor, após as 21h não saiam do hotel.”
“Isso não existe, para nós”, conta Yusmel Reve, 36. “Em Cuba, você pode sair para qualquer lugar, a qualquer hora.” A médica Lisset Guerra, 33, emenda: “Sozinho!”. E Yusmel: “E não tem problema”. E Lisset: “Não acontece nada”.
Yusmel e Lisset são casados há sete anos. Juntos, estiveram também durante cinco anos em missão na Venezuela, onde garantem já terem se acostumado às limitações das restrições de segurança. “Lá, a partir das 18h já não se podia sair”, conta Lisset.
Tanto Yusmel quanto Lisset são professores de medicina: Yusmel é mestre em atenção integral à criança e Lisset, em urgências médicas. Além disso, ambos possuem pós-graduação em medicina de desastre. Das missões de que ambos participaram, a mais importante ocorreu, justamente, em meio a uma catástrofe. No dia 8 de outubro de 2005, um terremoto de 7,8 graus na escala Richter deixaria mais de 80 mil mortos na região da Caxemira. 2.564 médicos cubanos foram, então, enviados ao Paquistão.
Maribéis
Saindo da sala de aula, apresento-me às duas médicas que mais queria conhecer: as Maribéis. Maribel Herrera Hernandez, 43, e Maribel Morera Saborit, 44, foram escolhidas para trabalhar na paupérrima Melgaço, no Arquipélago do Marajó. Quando, depois de 18 horas de viagem de barco, elas chegarem aos seus postos de trabalho, serão recebidas, se não por mais ninguém, ao menos por mim. Pois é Melgaço, município com o pior IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do Brasil, que escolhemos para acompanhar o início do Mais Médicos.
Que não haveria blindagem alguma, já havia percebido. Mas não poderia imaginar que elas fossem tão simpáticas e receptivas. “Amigas, vejam só, nós teremos um jornalista particular”, brincam. E caminhamos até a varanda do chalé, onde fazemos a entrevista. De longe, as amigas brincam, enquanto elas posam para as fotos: “Vizinhas, a publicidade vai acabar com vocês!”, divertem-se.
“Antes de chegar, já sabíamos que o povo era muito pobre, que o índice de analfabetismo era muito alto”, conta Maribel, a Herrera Hernandez. “Não obstante, não nos amedrontamos com isso, ao contrário: vamos com muito mais desejo de mudar as condições de saúde dessa população”, diz. “Ou, pelo menos, de fazer o pouquinho que nós podemos fazer.”
É curioso: em Tocantins, o assessor do Ministério da Saúde teria provocado uma “interrupção abrupta” na entrevista – diz a vídeo-reportagem – justamente “quando uma jornalista brasileira perguntava à médica sobre o conhecimento dela sobre a realidade do Tocantins”. Sobre este assunto, todos os médicos com quem conversei, sem exceção, se mostraram particularmente à vontade para dissertar. Um deles me contou que, ainda em Cuba, fora-lhes exibido o filme “Ilha das flores”, de Jorge Furtado – talvez um dos mais conhecidos e contundentes documentos audiovisuais sobre a pobreza extrema brasileira.
“Sabemos que as principais problemas de saúde que existem em Melgaço são as doenças infectocontagiosas, que são as que mais podem ser prevenidas”, conta a outra Maribel, a Morera Saborit. “Ou seja: melhorando as condições ambientais, com medidas de higiene, de educação sanitária, podemos prevenir essas doenças. Sobretudo a tuberculose, a hanseníase e a malária. São doenças que, com determinadas medidas de educação da população, pode-se erradicar ou, ao menos, diminuir bastante seu índice de incidência”, garante. “E também vamos tratar as doenças crônicas que existem, sobretudo hipertensão e diabetes, que são as mais frequentes.” E resumindo suas expectativas – que não são baixas – afirma: “Então, acreditamos que sim: que com o nosso modesto trabalho vamos ajudar a aumentar o nível de saúde do povo de Melgaço”.
Assustou-me saber, digo-lhes em seguida, que enquanto ainda estão em um hotel da região metropolitana de Belém, não passado sequer um mês de viagem ao Brasil, a comunicação com Cuba e as saudades da família já tinham se tornado problemas tão grandes para eles. Como seria, então, passar três anos em pequenas cidades do interior do Pará?
“Nós temos uma formação, desde que começamos a estudar medicina, pautada na colaboração e no internacionalismo”, explica Saborit, lembrando-me que já esteve por quatro anos na missão venezuelana. “Veremos, dentro das possibilidades que existem em Melgaço, como podemos nos comunicar.”
“A nossa família também conhece este nosso princípio de solidariedade, e compartilha dele”, completa Hernandez, que já trabalhou em missões por dois anos na Venezuela e por 14 meses na Bolívia. Em Cuba, ambas têm à sua espera marido e dois filhos. “Eles entendem quando não podemos nos comunicar continuamente. Esperam, sim, ansiosos. Mas entendem que é a situação do momento.”
Não é à toa que Melgaço receberá duas Maribéis. Esta, aliás, é uma característica que chama logo a atenção de quem bate os olhos na lista de alocações dos médicos cubanos: não é possível depreender dela nenhuma outra ordem que não seja a alfabética. Logo, conclui-se: salvo casos especiais, os médicos não parecem dar qualquer palpite sobre o lugar em que trabalharão. Em dado momento, perguntei para um deles: “Vocês não escolhem a cidade?”. Respondeu-me com uma gargalhada.
“E nós não estamos com medo, como alguns têm dito, das condições do lugar ou de quão longe eles sejam”, afirma Hernandez. “Ao contrário, é um incentivo para nós: temos de nos esforçar um pouco mais em nossa ajuda.” E Saborit completa: “Vemos as pessoas como seres humanos, não como mercadoria.”
Dizendo-me isso, olhando-me nos olhos, estas mulheres me fazem lembrar de Lorenzo Nacheli, um missionário italiano que há anos passa sua vida, vinte e quatro horas por dia, cuidando de pessoas em situação de rua, no Arsenal da Esperança, em São Paulo. “Quando estou conversando com você, Dario”, dizia-me Lorenzo, “você é a pessoa mais importante do mundo para mim. E é assim com todas as pessoas com quem converso”. Agora, na minha lembrança, por uma dessas inversões que a gente não explica, são os olhos de Lorenzo que me lembram os olhos das Maribéis, como se tivesse visto estes antes daquele. “Nos vemos em Melgaço”, despeço-me.
Não sei até onde vai a perspicácia e em que ponto começa a inocência do repórter, mas me parece ser necessário muito esforço para abstrair destas falas o tom opressivo e castrador de um discurso previamente combinado. De qualquer maneira, contenho-me: como disse, cabe ao leitor tirar as suas conclusões.
É com atenção que os 62 médicos cubanos assistem à palestra do também médico Raimundo Sena, diretor da Escola Técnica do SUS (Sistema Único de Saúde). Sena fala pausadamente e os alunos, juntos, complementam: “Estes são os obje…?”: “…tivos!”. É assim o tempo todo, de forma que, tanto quanto nas entrevistas, ressoa na sala um coro de uma só voz. Se alguma bagunça irrompe – como quando Sena diz que no Brasil “o pessoal usa muita sigla”, ao que os cubanos riem vigorosamente –, surge rápido um “ssshhhhhh” e o silêncio se restabelece.
“A dificuldade maior é a comunicação, por causa da língua”, conta o professor. “Mas eles não têm dificuldade de compreensão do que se está discutindo, porque eles têm uma formação elevada. A grande maioria, além da graduação, tem especialização, alguns têm mestrado, doutorado. Isso facilita o diálogo”, afirma.
Mas há no ar uma tensão facilmente perceptível. “Eles estão ansiosos porque têm dificuldades de comunicação com Cuba, com seus familiares”, confirma Sena. De fato, quando acaba a aula, é este o único assunto. A assessora da secretaria de saúde paraense diz que lhes trará quatro notebooks, três modems e um celular com roaming internacional desbloqueado. Os cubanos explicam que, de Cuba, não se pode fazer chamadas internacionais. Os assessores, então, ligam para a operadora, consultam a tarifa da ligação para Cuba e voltam com a resposta: não será possível garantir o contato telefônico. “Custa R$4,99 por minuto! Mucho diñero!”.
Diante do único computador da sala, os médicos formam uma longa fila. Começo a conversar com um deles, que me parece bastante aflito. Compadecido, ofereço-lhe meu celular. “Quanto custa?”. Esse não é mais vendido – respondo. Esse é velho. “Mas quanto custa?”. Com a tampa traseira rachada, assim? Sei lá, uns duzentos reais – digo, chutando. “Quer vender agora?”.
É inacreditável, mas em um programa de tamanha importância para os governos brasileiro e cubano, a simples comunicação telefônica com os familiares daqueles que protagonizam a ação não foi garantida. Os assessores se preocupam, em especial, com uma das médicas, cuja filha de dois anos e meio está em Cuba. No dia anterior, ela teria “entrado em pânico”, dizem, com a dificuldade de comunicação.
É na varanda de seu chalé que converso tranquilamente com René Alberto Marrero Fernandez, 41, formado na Faculdade de Medicina de Holguín. Pergunto-lhe sobre um assunto amplamente debatido na chamada grande mídia: qual é, afinal, o destino da bolsa de R$10 mil paga, por médico, pelo governo federal?
Eis a resposta mais frequente: “este dinheiro vai, quase por inteiro, para o governo cubano; para mim, resta apenas um estipêndio mensal, o suficiente para me manter no país. Fora isso, meu salário, em Cuba, continua sendo integralmente recebido pela minha família”. Ou seja: quase todos os médicos negam que as missões internacionais sejam uma oportunidade de fazer um pé-de-meia.
René, entretanto, responde de modo um pouco diferente. “Em missões internacionais, recebemos uma compensação”, admite. “Fora isso, ajudamos um pouco a economia de Cuba, que – e isso não é segredo pra ninguém – é um país pobre. Ademais, estamos bloqueados pelo imperialismo. O embargo econômico é muito grande. Com este trabalho, melhoramos também a economia do nosso povo, que tanto necessita.”
As referências às dificuldades econômicas dão ensejo à formação de outra polifonia consonante: todos fazem questão de dizer que, em Cuba, não existe nem pobreza extrema, nem diferenças sociais importantes. “É um tema muito complicado, a economia de Cuba”, diz René. “Mas, em meu país, a pobreza extrema não existe. A saúde é totalmente gratuita para todos, assim como a educação.”
E onde não há pobreza extrema ou grandes diferenças de renda, não há violência urbana. Mais cedo, ainda durante a palestra, dois policiais militares, armados e com coletes à prova de balas, entram na sala para conversar com uma das assessoras. Esta, posteriormente, faz questão de tranquilizar a classe. “Não se preocupem. Eles só vieram aqui para dizer que, ao lado do hotel, há uma invasão, uma favela. Então, por favor, após as 21h não saiam do hotel.”
“Isso não existe, para nós”, conta Yusmel Reve, 36. “Em Cuba, você pode sair para qualquer lugar, a qualquer hora.” A médica Lisset Guerra, 33, emenda: “Sozinho!”. E Yusmel: “E não tem problema”. E Lisset: “Não acontece nada”.
Yusmel e Lisset são casados há sete anos. Juntos, estiveram também durante cinco anos em missão na Venezuela, onde garantem já terem se acostumado às limitações das restrições de segurança. “Lá, a partir das 18h já não se podia sair”, conta Lisset.
Tanto Yusmel quanto Lisset são professores de medicina: Yusmel é mestre em atenção integral à criança e Lisset, em urgências médicas. Além disso, ambos possuem pós-graduação em medicina de desastre. Das missões de que ambos participaram, a mais importante ocorreu, justamente, em meio a uma catástrofe. No dia 8 de outubro de 2005, um terremoto de 7,8 graus na escala Richter deixaria mais de 80 mil mortos na região da Caxemira. 2.564 médicos cubanos foram, então, enviados ao Paquistão.
Maribéis
Saindo da sala de aula, apresento-me às duas médicas que mais queria conhecer: as Maribéis. Maribel Herrera Hernandez, 43, e Maribel Morera Saborit, 44, foram escolhidas para trabalhar na paupérrima Melgaço, no Arquipélago do Marajó. Quando, depois de 18 horas de viagem de barco, elas chegarem aos seus postos de trabalho, serão recebidas, se não por mais ninguém, ao menos por mim. Pois é Melgaço, município com o pior IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do Brasil, que escolhemos para acompanhar o início do Mais Médicos.
Que não haveria blindagem alguma, já havia percebido. Mas não poderia imaginar que elas fossem tão simpáticas e receptivas. “Amigas, vejam só, nós teremos um jornalista particular”, brincam. E caminhamos até a varanda do chalé, onde fazemos a entrevista. De longe, as amigas brincam, enquanto elas posam para as fotos: “Vizinhas, a publicidade vai acabar com vocês!”, divertem-se.
“Antes de chegar, já sabíamos que o povo era muito pobre, que o índice de analfabetismo era muito alto”, conta Maribel, a Herrera Hernandez. “Não obstante, não nos amedrontamos com isso, ao contrário: vamos com muito mais desejo de mudar as condições de saúde dessa população”, diz. “Ou, pelo menos, de fazer o pouquinho que nós podemos fazer.”
É curioso: em Tocantins, o assessor do Ministério da Saúde teria provocado uma “interrupção abrupta” na entrevista – diz a vídeo-reportagem – justamente “quando uma jornalista brasileira perguntava à médica sobre o conhecimento dela sobre a realidade do Tocantins”. Sobre este assunto, todos os médicos com quem conversei, sem exceção, se mostraram particularmente à vontade para dissertar. Um deles me contou que, ainda em Cuba, fora-lhes exibido o filme “Ilha das flores”, de Jorge Furtado – talvez um dos mais conhecidos e contundentes documentos audiovisuais sobre a pobreza extrema brasileira.
“Sabemos que as principais problemas de saúde que existem em Melgaço são as doenças infectocontagiosas, que são as que mais podem ser prevenidas”, conta a outra Maribel, a Morera Saborit. “Ou seja: melhorando as condições ambientais, com medidas de higiene, de educação sanitária, podemos prevenir essas doenças. Sobretudo a tuberculose, a hanseníase e a malária. São doenças que, com determinadas medidas de educação da população, pode-se erradicar ou, ao menos, diminuir bastante seu índice de incidência”, garante. “E também vamos tratar as doenças crônicas que existem, sobretudo hipertensão e diabetes, que são as mais frequentes.” E resumindo suas expectativas – que não são baixas – afirma: “Então, acreditamos que sim: que com o nosso modesto trabalho vamos ajudar a aumentar o nível de saúde do povo de Melgaço”.
Assustou-me saber, digo-lhes em seguida, que enquanto ainda estão em um hotel da região metropolitana de Belém, não passado sequer um mês de viagem ao Brasil, a comunicação com Cuba e as saudades da família já tinham se tornado problemas tão grandes para eles. Como seria, então, passar três anos em pequenas cidades do interior do Pará?
“Nós temos uma formação, desde que começamos a estudar medicina, pautada na colaboração e no internacionalismo”, explica Saborit, lembrando-me que já esteve por quatro anos na missão venezuelana. “Veremos, dentro das possibilidades que existem em Melgaço, como podemos nos comunicar.”
“A nossa família também conhece este nosso princípio de solidariedade, e compartilha dele”, completa Hernandez, que já trabalhou em missões por dois anos na Venezuela e por 14 meses na Bolívia. Em Cuba, ambas têm à sua espera marido e dois filhos. “Eles entendem quando não podemos nos comunicar continuamente. Esperam, sim, ansiosos. Mas entendem que é a situação do momento.”
Não é à toa que Melgaço receberá duas Maribéis. Esta, aliás, é uma característica que chama logo a atenção de quem bate os olhos na lista de alocações dos médicos cubanos: não é possível depreender dela nenhuma outra ordem que não seja a alfabética. Logo, conclui-se: salvo casos especiais, os médicos não parecem dar qualquer palpite sobre o lugar em que trabalharão. Em dado momento, perguntei para um deles: “Vocês não escolhem a cidade?”. Respondeu-me com uma gargalhada.
“E nós não estamos com medo, como alguns têm dito, das condições do lugar ou de quão longe eles sejam”, afirma Hernandez. “Ao contrário, é um incentivo para nós: temos de nos esforçar um pouco mais em nossa ajuda.” E Saborit completa: “Vemos as pessoas como seres humanos, não como mercadoria.”
Dizendo-me isso, olhando-me nos olhos, estas mulheres me fazem lembrar de Lorenzo Nacheli, um missionário italiano que há anos passa sua vida, vinte e quatro horas por dia, cuidando de pessoas em situação de rua, no Arsenal da Esperança, em São Paulo. “Quando estou conversando com você, Dario”, dizia-me Lorenzo, “você é a pessoa mais importante do mundo para mim. E é assim com todas as pessoas com quem converso”. Agora, na minha lembrança, por uma dessas inversões que a gente não explica, são os olhos de Lorenzo que me lembram os olhos das Maribéis, como se tivesse visto estes antes daquele. “Nos vemos em Melgaço”, despeço-me.
Não sei até onde vai a perspicácia e em que ponto começa a inocência do repórter, mas me parece ser necessário muito esforço para abstrair destas falas o tom opressivo e castrador de um discurso previamente combinado. De qualquer maneira, contenho-me: como disse, cabe ao leitor tirar as suas conclusões.
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