Abaixo reproduzimos segunda parte de um artigo do economista argentino Claudio Katz sobre a Revolução Cubana e suas mudanças conjunturais. Apesar de ter críticas ao processo revolucionário cubano, sendo assim, um material a princípio fora da linha editorial do "Solidários", entendemos que artigos como este ajudam a preparar os solidários na batalha contra o terrorismo midiático que Cuba sofre na mídia e na internet. Publicada na revista cubana Cubahora.
Por Claudio Katz em seu site/Tradução do Diário Liberdade
Cuba conta com níveis de democracia real superiores a qualquer plutocracia capitalista.
Por Claudio Katz em seu site/Tradução do Diário Liberdade
Cuba conta com níveis de democracia real superiores a qualquer plutocracia capitalista.
Leia antes a Parte I deste artigo aqui.
A reforma é debatida intensamente na ilha, desmentindo a imagem de unanimidade ou silêncio que existe no exterior. Todos os mitos sobre a ausência de discussões se baseiam no desconhecimento dessas polêmicas. Três correntes diferentes foram formadas nesses debates. Uma destaca a conveniência de preservar a preeminência do Estado, outra promove maiores mecanismos mercantis e um enfoque autogestionário postula expandir as cooperativas.
A própria marcha das reformas suscita também duros questionamentos sobre o alcance previsto para o trabalho assalariado. Há sugestões para que se estabeleça impostos compensatórios e limites mais precisos para essa contratação (Piñeiro Harnecker, 2010).
Outras observações são polêmicas com medidas que ampliariam a desigualdade social (criação de campos de golf, residências exclusivas) e com iniciativas para permitir a aquisição de propriedades por parte de estrangeiros (Campos, 2011).
Muitos questionamentos são formulados pelos partidários de reforçar as cooperativas. Propõem aprimorar as redes de lojas nos bairros e reforçar as empresas de autogestão já existentes (UBPC). Estimam que reavivará a economia sem fomentar o individualismo (Isa Conde, 2011).
Este modelo incentiva firmas autoadministradas que aproveitem o conhecimento de cada território e setor. Propõe formas de controle social por parte dos cidadãos e dos governos locais sobre esses empreendimentos (Dacal Díaz, 2013).
Este enfoque é inspirado em um balanço crítico do afogamento burocrático sofrido por essas empresas. Lembra que as UBPC enfrentaram entraves e tiveram pouca capacidade de decisão nos esquemas organizativos verticalistas do passado (Miranda, 2011).
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Com esses planos busca-se limitar o apetite pelos benefícios gerados pela reintrodução do mercado. Defende-se os valores socialistas, limitando a abertura à iniciativa privada (Alonso, 2013).
Mas as cooperativas não resolvem por si só os duros caminhos que a economia enfrenta. Levam um complemento indispensável às reformas introduzidas para transformar as divisas entesouradas (ou consumidas) em investimento. No cenário atual, a criação deste setor de pequena empresa privada é inevitável. A China pode fornecer créditos e a Venezuela petróleo, mas Cuba deve reciclar suas próprias fontes de poupança para a atividade produtiva.
Alguns questionamentos que estão diante das reformas a partir de visões puramente estatistas apesentam outro tom. Afirmam que as transformações atuais abrem caminho ao capitalismo, repetindo as mudanças que Gorbatchov iniciou com a Perestroika. Denunciam as "propostas burguesas" dos documentos oficiais, atacam seu conteúdo "antissocialista" e questionam sua proximidade com o neoliberalismo (Fernández Blanco, 2011; Cobas Avivar, 2010).
Este olhar retoma os velhos argumentos da ortodoxia, sem explicar por que razão a estatização completa afetou tão seriamente a economia cubana. Supõe que o colapso da URSS obedeceu a simples conspirações reacionárias, omitindo o papel asfixiante da burocracia e os privilégios que acumulou escondendo o descontentamento popular. Com essa visão supõe que Cuba pode congelar sua situação atual, reciclando a estagnação.
Este enfoque alerta contra os perigos reais de desemprego e polarização social. Mas não esclarece como se poderia evitar a pauperização geral reforçando um processo de estatizações sem recursos. Certamente existe uma possibilidade de gestação de classes dominantes com o desvio dos fundos estatais. Mas a única forma de contrariar esse cenário é ampliando o controle popular.
A reintrodução do capitalismo não se consumará com o florescimento da pequena propriedade. Esse fantasma serviu no passado para reforçar comportamentos burocráticos e sufocar a iniciativa econômica individual. Não é certo que a expansão do comércio derivará na imediata criação de grandes riquezas privadas.
Essa sequência constitui certamente um risco, diante de um perigo maior de colapso por simples adoecimento. Cuba enfrenta alternativas de sobrevivência que exigem optar pelo mal menor.
É puro fatalismo supor que toda NEP desembocará no capitalismo como ocorreu com a Perestroika. No período que sucedeu a morte de Lenin o resultado foi completamente diferente. Se garantiu a coletivização forçada e o estatismo coercivo. O desafio atual é evitar ambos os desenlaces.
Os críticos afirmam que as reformas são implementadas por uma casta burocrática para perpetuar seus privilégios sacrificando a revolução. Mas não explicam por que razão não consumaram isso após o colapso da URSS. Nesse momento tinham mais argumentos do que atualmente para abraçar a causa do capitalismo.
Efetivamente este enfoque se limita a propor alguma modalidade de planificação compulsiva, que no melhor dos casos conduzirá à recriação de uma situação semelhante à vigente na Coreia do Norte. Cuba conseguiu evitar o confinamento militar que esse país sofre. O estatismo extremo traz mais problemas do que soluções às divisões que o país enfrenta.
Questionamentos dogmáticos
Uma visão convergente com as críticas do estatismo extremo postulam os enfoques dogmáticos que observam o curso atual de Cuba como uma ratificação da restauração capitalista (Petit, 2011).
Este diagnóstico não explicita os critérios que utiliza para caracterizar essa regressão e tampouco expõe dados sobre esse processo. Simplesmente constata a existência desse retorno como um fato que não exigirá maiores explicações. Também sugere que o imperialismo incentiva esse processo, como se a ilha não sofresse uma dura opressão dos EUA.
Esse ponto de vista estabelece também uma analogia com a China, supondo que o curso capitalista pós-Deng se reproduz agora no Caribe. Com essas afirmações despacha o tema e sanciona o enterro da revolução.
Outra caracterização inspirada em fundamentos parecidos ensaia argumentos mais conscientes, polemizando com nossa visão. Aceita distinguir períodos ou modelos e evita enunciar a simples vigência de um processo restaurador. Leva em conta nossa comparação com a NEP soviética e considera que apresentamos um diagnóstico realista sobre os objetivos das reformas pró-mercado.
No entanto estima que nossa visão é puramente economicista. Considera que introduzimos comparações indevidas pela perda de uma orientação política. Afirma que a NEP de Lenin poderia coincidir com iniciativas semelhantes com China ou Cuba, mas esteve inspirada em políticas revolucionárias ausentes em ambos os países (Yunes, 2011).
Este enfoque valida Lenin e despacha Castro, apesar de reconhecer a existência de orientações econômicas parecidas. Justifica no bolchevique o que objetiva no guerrilheiro por um simples pressuposto. Uma figura é endeusada e a outra desqualificada, apesar do papel equivalente que tiveram em duas extraordinárias revoluções socialistas do século XX. Não se entende por que razão essa diferenciação invalidaria as semelhanças de programas econômicos em cunjunturais comparáveis.
Se a NEP russa teve seu mérito apenas pelo batismo leninista carece de relevância como modelo para a transição socialista. Se, pelo contrário, oferece pautas para combinar a planificação com o mercado, é um esquema que pode ser avaliado em diferentes situações. Este segundo critério permite entender sua relativa aplicação em vários momentos da URSS, China e Leste Europeu. Avaliar essa instrumentação não implica recorrer a nenhuma simplificação economicista.
Nosso crítico denuncia a burocracia como o principal inimigo da Revolução dentro de Cuba. Mas com essa genérica denominação não indica quem são exatamente esses conspiradores. Sugere que a direção castrista cumpre esse papel de maneira análoga a Gorbatchov, como se a resistência do "período especial" tivesse sido liderada por fantasmas.
Ele denuncia os funcionários que acumulam o dinheiro que será utilizado na reconversão capitalista. Ninguém nega esse perigo. Mas dessa advertência não se deduz a existência de uma lei de repetição histórica, que prevê para Cuba o mesmo destino seguido pela URSS.
É preciso apresentar indícios do questionado enriquecimento para avaliar o alcance da involução denunciada. Do contrário é puro preconceito. Nos últimos vinte anos a direção cubana de mostras de exemplaridade e austeridade e as principais manifestações de desigualdade envolveram mais os receptores de divisas do que os funcionários.
Mas se todo o problema se reduzisse a apontar quem se enriquece, os dilemas da economia cubana ficariam imediatamente superados difundindo essa lista. O maior problema está em definir uma agenda: seria preciso proibir a entrada de divisas do exterior? Deveríamos acabar com o turismo? Deveríamos cortar os investimentos estrangeiros? Seria preciso impedir o ressurgimento da pequena propriedade?
Diante desses problemas complicados nossos críticos optam pelo silêncio. Consideram que qualquer definição induz ao "economicismo" e preferem sair pela tangente, esquecendo que Cuba enfrenta dramáticas divisões de subsistência. De suas críticas às reformas só se deduz a promoção de alguma modalidade de anulação total do mercado (como existiu na Albânia, por exemplo).
A outra opção sugerida é a convocatória a uma revolução mundial imediata, que permitiria superar todos os dilemas do isolamento construindo o socialismo universal. Mas as próprias dificuldades que enfrentaram no último século as correntes dogmáticas para concretizar essas vitórias socialistas ilustram a complexidade desse caminho.
Realismo e ceticismo
Os críticos depositam grandes expectativas na democracia soviética para resolver as asfixias econômicas cubanas. Ressaltam a centralidade que Trotski atribuiu a tal mecanismo, para superar os problemas da economia russa nos anos 30.
Sem dúvida este aspecto é importante, mas ao supervalorizá-lo termina-se esperando resultados mágicos de sua aplicação. A ilha enfrenta embargos comerciais, provocações militares, escassez de suprimentos, carência de recursos e perda de aliados estratégicos, que não desaparecem (nem se atenuam automaticamente) com maiores cotas de democracia interna.
Trotski era um político realista e nunca apostou no milagre da democracia. Enfatizava suas críticas à contrarrevolução stalinista, mas enunciou propostas econômicas muito precisas para a Rússia. Opunha-se à estatização forçada e propunha combinar a planificação com o mercado em sintonia com a NEP. Esse esquema pode servir de antecedente às reformas em curso na ilha (Trotski, 1973; 1991: 55-72).
No tema da democracia é preciso ser muito cuidadoso com as comparações. Trotski confrontava-se com Gulags e fuzilamentos de bolcheviques que jamais existiram em Cuba. Ao contrário, esse país foi o epicentro do processo revolucionário com o maior nível de democratização e participação popular do século XX. Conseguiu consumar transformações sociais gigantescas com um número reduzido de perdas humanas. Também manteve regimes de exceção muito limitados em relação a processos semelhantes, incluindo o caso soviético da era Lenin-Trotski.
Os dogmáticos colocam as reformas cubanas pró-mercantis dentro do paradigma ortodoxo neoliberal. Estimam que introduzem um plano de ajuste, contraposto à resistência desenvolvida durante o período especial (Yunes, 2010).
O mais curioso desta caracterização não é a cegueira diante do evidente abismo que separa a política econômica cubana de Thatcher, Merkel ou Cavallo. Se apresenta um contraponto com o realizado pelo mesmo governo na década anterior. Os dirigentes que encabeçaram uma proeza de luta contra o imperialismo, agora implementariam as receitas de Washington. Como se produz semelhante mutação?
A explicação dogmática habitual aponta o "comportamento bonapartista de Castro" diante da "pressão das massas". Mas é muito difícil encontrar alguma evidência dessa relação, pois sobram os indícios opostos de liderança oficial na resistência dos anos 90. Tampouco é fácil demonstrar a existência do repúdio popular à posterior introdução das reformas.
Os críticos navegam em um mar de contradições. Questionam a baixa produtividade da economia, mas sugerem clausuras que atenuariam essa adversidade. Rechaçam o isolamento, mas objetivam uma aliança de sobrevivência que Cuba estabeleceu no passado com a URSS. Preveem o fracasso de reformas econômicas que mal começaram, sem explicar por que razão as previsões de colapso cubano falharam nas duas últimas décadas. Com esse tipo de visão não se pode medir a excepcional epopeia cubana dos últimos 50 anos.
Em outros setores do progressismo há maior cautela com os prognósticos, escassa preocupação pela natureza social do regime e grande ceticismo sobre o futuro. Frequentemente observam o peso da repressão, a renúncia da utopia libertária e a consolidação de um sistema político autoritário (Stefanoni, 2013).
Mas esquecem que nas terríveis condições de perseguição que a ilha sofreu se pode concretizar uma revolução com inéditos graus de liberdade. Este nível de tolerância não só superou os precedentes de Rússia ou China, mas também a maioria das experiências nacionalistas radicais. O plano de fundo do problema é a legitimidade de qualquer revolução e suas proteções defensivas.
Não é muito sensato supor que as conquistas na ilha poderiam ter sido obtidas sem sofrimento, sacrifícios e erros. A valorização da revolução é particularmente importante em um momento de tantas pressões para se converter Cuba em um "país normal". Com essa enganosa bandeira pode-se enterrar tudo o que foi construído em meio século e abrir as portas para recriar a desigualdade e criminalidade predominantes na América Latina.
Oportunidades e expectativas
Alguns analistas registraram nos últimos anos a existência de um clima de entusiasmo com as mudanças em curso. Destacam que Cuba vive uma primavera que rompe com o imobilismo (Burbach, 2013). Outros participantes desse processo ressaltam o impacto positivo do curso atual, mas advertem a necessidade de adotar iniciativas de maior democratização, como a reforma do sistema eleitoral e o acesso irrestrito à internet (Campos, 2011).
Nesta mesma avaliação se inscrevem as propostas de novos esquemas de difusão da informação e controle popular sobre a estrutura estatal. Observa-se o atraso em implementar as mudanças e também a insensibilidade diante das críticas (Dacal, 2013).
Esses desacertos tiveram negativas consequências no passado. O entusiasmo por uma mudança não dura eternamente. Convém recordar todas as oportunidades de renovação do socialismo que se perderam nos países do Leste. A frustração que seguiu à Primavera de Praga desmoralizou toda uma geração e facilitou a posterior restauração do capitalismo.
A apatia é o principal perigo em uma sociedade que passou a provação do período especial, mas deve cicatrizar as feridas que esse trauma deixou. Na conjuntura atual é preciso lidar com o desespero que a necessidade de mudança gera e a preocupação com suas consequências. A volta ao mercado implica a adoção de medidas que muitos poucos desejam e todos compreendem (Guanche, 2011).
Envolver os cidadãos no controle direto de seu futuro é o principal antídoto contra os perigos das reformas. Este propósito pode ser conseguido seguindo o caminho à democracia socialista. A vitalidade deste sistema é um remédio efetivo contra a apatia. O que ocorreu na URSS deve servir de aviso. Como a população se considerava alheia ao regime político, se manteve à margem das mudanças que restauraram o capitalismo.
Cuba conta com níveis de democracia real superiores a qualquer plutocracia capitalista. Seus líderes não são eleitos por uma elite de banqueiros e industriais, nem surgem das manipulações publicitárias que os meios de comunicação constroem. Tampouco aplica o terror contra a população ou a intimidação que impera em vários regimes policiais da América Central. Mas existem incontáveis manifestações de insuficiência da democracia no sistema político e na imprensa. As reformas são a oportunidade de corrigir essas deficiências.
Se as mudanças econômicas conseguirem combinar acertadamente as cooperativas, a pequena propriedade e a prioridade estatal, a recuperação da economia renovará o otimismo. As transformações produtivas e comerciais poderiam gerar melhoras visíveis no nível de vida da população. O grande desafio é motorizar esses avanços com o mercado, impedindo ao mesmo tempo a restauração do capitalismo.
A chave imediata para contornar esse perigo é limitar a desigualdade social, por meio da manutenção de sistema educativos e sanitários públicos e únicos. A exemplaridade dos dirigentes, junto a este suporte, permitirá superar a nova encruzilhada que o país enfrenta.
O povo cubano mostrou uma extraordinária capacidade para se sobrepor às dificuldades retomando a confiança na revolução. É o país que exige maior cautela na hora de formular prognósticos. Muitas vezes se disse que não suportariam o bloqueio, as invasões, as penúrias ou o isolamento e sempre saíram vitoriosos. Seguramente voltarão a vencer o desafio.
Referências
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-Borón, Atilio, (2014), "Padura en Buenos Aires", Rebelión, 6/05.
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-Cobas Avivar, Roberto, (2010), "La patria es ara, no pedestal", kaosenlared.net, 28/9.
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-Fernández Blanco, Roberto, (2011), "Consideraciones acerca del carácter burgués del Proyecto de lineamientos", www.penultimosdias.com, 10/2.
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Claudio Katz é economista argentino. Pesquisador da Universidade de Buenos Aires e do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia da Argentina. Também é membro do Instituto de investigações econômicas daquele país. Site oficial: http://katz.lahaine.org/index.php.
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