sábado, 27 de dezembro de 2014

A epopeia cubana: conquistas, reformas e desafios (Parte I)

Abaixo reproduzimos primeira parte de um artigo do economista argentino Claudio Katz sobre a Revolução Cubana e suas mudanças conjunturais. Apesar de ter críticas ao processo revolucionário cubano, sendo assim, um material a principio fora da linha editorial do "Solidários", entendemos que artigos como este ajudam a preparar os solidários na batalha contra o terrorismo midiático que Cuba sofre na mídia e na internet. Publicado na revista cubana Cubaahora

Fidel Castro discursa no centro de Havana - 1959
Por Claudio Katz em seu site/Tradução do Diário Liberdade

Cuba levou o maior ideal de transformação social a várias gerações de latino-americanos. Sua revolução comoveu a juventude, convulsionou as organizações políticas e sacudiu a esquerda.

Nos anos 60 o castrismo rompeu todos os dogmas ao demonstrar que um processo socialista era possível no continente. À 90 milhas de Miami, introduziu generalizadas nacionalizações para responder às conspirações do imperialismo. Posteriormente tentou uma heróica extensão regional da revolução.

A decisão cubana de resistir à restauração capitalista após o colapso da URSS foi assombrosa. A população afrontou um sufocante isolamento internacional e realizou imensuráveis esforços para manter sua independência.

A duração desse processo foi determinante da mudança que se registrou no cenário sul-americano. A reinstalação de uma colônia estadunidense em Cuba tinha obstruído a ressurreição dos processos radicais e limitado as vitórias conquistadas contra o neoliberalismo.

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É muito difícil de imaginar os avanços de Venezuela ou Bolívia sem um exemplo de um país que soube enfrentar o poderio estadunidense. A repetição na ilha da trajetória seguida pela Rússia e Leste Europeu havia sepultado, por um longo período, todas as tradições revolucionárias transmitidas ao continente.

Mas, transcorridas mais de duas décadas do colapso da URSS e seu bloco econômico internacional (COMECON), foram registradas importantes transformações em Cuba. Estas mudanças contêm enormes possibilidades e inquestionáveis perigos.

Conquistas e desafios

O principal ensinamento recente do que ocorreu em Cuba é a enorme capacidade de desenvolvimento popular que oferece um esquema socioeconômico não capitalista. Em meio a uma penúria econômica, o isolamento diplomático, as provocações militares, as pressões financeiras e a agressão midiática conseguiram preservar parâmetros de expectativa de vida, escolaridade ou mortalidade infantil muito superiores ao resto da região.

Esta extraordinária realização é incompreensível para os apologistas do capitalismo. Como não podem apresentar exemplos equiparáveis, evitam qualquer menção a estas conquistas. Cuba demonstrou de que forma se pode evitar a fome, o crime generalizado e a evasão escolar mesmo com poucos recursos.

O país enfrenta atualmente graves dificuldades para manter a gratuidade dos principais serviços, mas essas limitações são muito diferentes das adversidades que predominam em outros países.

Cuba não é Argentina, Brasil ou México. É preciso comparar sua situação com as economias latino-americanas que estão abaixo do primeiro escalão de desenvolvimento econômico. Nenhum desses casos pode exibir o perfil de uma ilha sem desemprego, indigência ou pobreza massiva.

Na ilha, todas as necessidades básicas da população são atendidas. Todas as famílias têm acesso à alimentação, à educação, à saúde. A escassez de abastecimento ou a falta de variedades de produtos não incluem os bens indispensáveis para garantir esse atendimento.

Cuba conta com um excelente nível de escolaridade. Um recente estudo do Banco Mundial estima que seu sistema educativo mantém parâmetros de formação profissional, em muitos casos semelhantes ao nível de Finlândia, Cingapura ou Canadá (Lamrani, 2014).

Também conquistou um índice de expectativa de vida que supera em cinco anos o restante do continente e conta com taxas de mortalidade reduzidas em todas as faixas etárias. Conseguiu a média mais baixa de desnutrição da América Latina e uma das porcentagens mais elevadas de moradias conectadas a redes de água potável (Navarro, 2014).

O país também preserva o índice de segurança alimentar mais elevado da região e um baixíssimo nível de pobreza (4%) em comparação com a média da América Latina (35%) (Vandepitte, 2011). De acordo com as estimativas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Cuba é um dos três países latino-americanos que conseguiu ficar em uma posição de alto nível de desenvolvimento (PNUD, 2014).

Mas a ilha enfrenta um sério problema para sustentar esses avanços. A estagnação e as privações que sucederam a queda da URSS se atenuaram, mas obrigam a implementação de uma desaceleração econômica. Toda a sociedade reconhece essa inadiável necessidade, já que ninguém pode recuperar o padrão de renda dos anos 70-80.

O colapso soviético foi seguido por um agravamento do bloqueio estadunidense (lei Torricelli em 1992 e ata Helms Burton em 1996). Esse cerco obstrui o comércio e gera custos monumentais. Um barco que chega ao porto cubano não pode desembarcar nos Estados Unidos e ao principal mercado do mundo não pode entrar um produto com componentes cubanos.

A ilha sofreu frequentes provocações que obrigam o Estado a pagar um oneroso aparato militar defensivo. O governo cubano precisa manter 600 mil homens em condições de ação bélica imediata e deve financiar uma estrutura armada totalmente desproporcional para as dimensões do país (Isa Conde, 2011).

Além disso, nos últimos anos o país padeceu fortes adversidades comerciais e climáticas. Caiu o preço das exportações (níquel) e subiu o custo das importações (alimentos). Houve furacões, secas e inundações de grande intensidade, especialmente entre 1998 e 2008. Estes transtornos não provocaram tragédias humanas como habitualmente ocorre no resto do continente, mas implicaram em custos milionários. A crise internacional gerou também uma redução dos ganhos com o turismo, apesar do moderado aumento do número de visitantes.

A economia é gerida há vários anos com certo déficit orçamentário e o nível de atividade é sustentado ao fio da navalha. O equilíbrio comercial é tão ajustado como o financiamento externo.

Cuba resistiu à restauração do capitalismo com o grande sacrifício que implicou o "período especial" dos anos 90. O impacto econômico do colapso da URSS foi demolidor. Todo o comércio da ilha estava associado aos países do COMECON e as vendas de açúcar a esse bloco resolviam o conjunto dos gastos externos.

O país ficou sem nada e teve que assegurar sua defesa e abastecimento de bens básicos, em condições de fechamento e colapso do transporte, da eletricidade e do combustível. Muito poucos regimes políticos conseguiram contornar adversidades dessa envergadura.

Um recente estudo explica a força dessa resistência pela memória das transformações sociais conquistadas nos anos 60-70. Também ressalta o repúdio a converter novamente a ilha em um bordel estadunidense. O trabalho traça uma instrutiva comparação com a devastação de direitos populares padecida pelos países do COMECON, que voltaram ao capitalismo durante o mesmo período (Morris, 2014).

Mas após essa experiência Cuba não está em condições de continuar o caminho precedente ao socialismo. Salta aos olhos a impossibilidade de erigir de forma solitária uma sociedade de abundância e igualdade, em uma pequena localidade do Caribe. A continuidade da revolução permitiu defender o conquistado, mas não assegura o desenvolvimento produtivo e o bem-estar material que traria a consolidação do socialismo. Se na URSS foram verificadas dificuldades para forjar essa sociedade cortando laços com o mercado mundial, é óbvio que Cuba nem sequer pode conceber essa possibilidade.

A importante mudança do contexto latino-americano contribuiu para reverter o isolamento do país. Se iluminaram as privações e se normalizou o funcionamento da economia, especialmente através da cooperação com a Venezuela. Mas este alívio só ajuda a sustentar as conquistas.

Três problemas

As transformações que Cuba deve encarar obedecem a três mudanças a longo prazo. Em primeiro lugar, a nova realidade geopolítica que o colapso da URSS introduziu desajustou toda a estrutura produtiva. O país tinha moldado sua economia a uma expectativa de grandes avanços pós-capitalistas no mundo ou pelo menos na região.

Sempre soube-se que um alcance efetivo do socialismo era impossível em uma só ilha e por esta razão foram tentados altos níveis de complementação com os sócios do Leste. Essa conexão foi combinada com a aposta em uma sucessão de vitórias revolucionárias na América Latina.

Essa estratégia política explica a elevada especialização que a ilha desenvolveu em médicos, engenheiros, educadores e militares. Em torno a essas atividades se construíram os valores de uma sociedade que ponderava os heróis em combate, os brigadistas e as missões internacionalistas.

O legado desse período se verifica em muitos planos. Cuba levou seus métodos de alfabetização, medicina preventiva e preparação militar a numerosos países da América Latina e África. Isto foi particularmente compartilhado com Angola e Nicarágua nos anos 70-80, com o Haiti (durante o terremoto) e atualmente com a Venezuela (intercâmbio de professores por petróleo) ou com a Bolívia (médicos e cirurgias de alta complexidade).

Outra prova recente desta especialização cubana em ações de socorro e solidariedade é a equipe de médicos enviados à África para lidar com a epidemia do ebola. Ninguém menos que o New York Times dedicou um elogioso editorial a esta ação, contrastando os riscos que assumem esses profissionais com a reticência estadunidense a enviar missões ao lugar. Ainda mais chocante é a negativa das companhias de seguros a cobrir o financiamento dessas operações (New York Times, 2014).

Os estimados médicos cubanos são um produto da educação militante que a revolução introduziu para ajudar a expansão internacional do socialismo. Quando essa meta foi frustrada, o país teve que enfrentar o paradoxo de contar com uma população educada e com ambições de Primeiro Mundo, em uma frágil economia de Terceiro Mundo.

Uma massa de trabalhadores e profissionais com altos níveis de qualificação e consciência laboral trabalha em uma ilha com indústrias e setores agrícolas de baixa produtividade. Este divórcio entre o alto desenvolvimento cultural e intelectual da sociedade e a estreitíssima base econômica tem incontáveis manifestações. Os guias turísticos, por exemplo, contam com maior preparação profissional que a média dos visitantes.

Esta desconexão gera difíceis problemas para quem não encontra trabalho com remuneração de acordo com sua especialidade. Que um taxista ou um camareiro multipliquem com toda a facilidade a renda de um engenheiro ou um médico é a maior evidência dessa estranha situação (Padura, 2010, 2012).

Nos últimos 20 anos, Cuba registrou mudanças radicais em sua economia, que geraram um segundo tipo de problemas estruturais. O país sobreviveu aceitando o turismo, os convênios com empresas estrangeiras e um duplo mercado de divisas, que segmenta a população entre receptores e órfãos das remessas.

A aparição deste importante fluxo de divisas determinou uma transformação socioeconômica muito significativa. A maior parte dos dólares que entram não é investida. Se transfere ao consumo, produzindo uma fratura no poder de compra entre os setores favorecidos ou privados dessa moeda.

Alguns analistas descrevem como este mercado duplo criou uma importante estratificação social. Os marginalizados desse circuito vivem com rendas ajustadas e se alimentam com comidas austeras. Os que têm divisas podem dispor de melhores roupas, computadores ou telefones celulares (Vandepitte, 2011).

Esta brecha surgiu em 1993 com a implantação de um duplo mercado que buscou atenuar a falta de divisas. Esse impacto desigual foi atenuado com políticas impositivas. Para adaptar o ideal igualitário à diversidade externa, o Estado delimitou com encargos a nova desigualdade.

Um terceiro problema da economia cubana deriva da errônea imitação do modelo russo de estatização completa. A fascinação acrítica com a URSS conduziu nos anos 70 a uma inoperante extensão do setor estatal, que teve um impacto muito negativo sobre a produtividade agroindustrial. Essa onda de estatizações anulou todos os pequenos comércios e fabricantes privados. Em 1977 foram eliminados os últimos vestígios das atividades por conta própria.

Essas medidas desconsideraram que a transição ao socialismo só é factível por meio de uma gradual planificação do mercado, em função da eficiência conquistada pelo setor estatal em comparação ao privado. Cuba repetiu o modo russo de estatização integral, sem considerar a aplicação das estratégias mais moderadas que a Iugoslávia e a Hungria adotaram.

Todas as tentativas de corrigir os inconvenientes criados pela estatização completa foram infrutíferos. O trabalho voluntário, a safra de 10 milhões ou a retificação no final dos anos 80 foram apenas paliativos. Tampouco foram escutados os questionamentos expostos em alguns organismos da época como a CEA (Centro de Estudos sobre a América). O principal efeito negativo dessa estatização foi o declive da produtividade e a dependência que Cuba mantém da importação de alimentos.

Certamente este equívoco obedeceu a problemas teóricos (incompreensão da transição ao socialismo) e a manobras burocráticas. Mas também é certo que não era fácil compatibilizar a prioridade atribuída à estratégia revolucionária continental, com políticas contemplativas ao mercado. O primeiro objetivo requer um nível de idealismo, heroísmo e equidade que se choca com a vida comercial. Para os revolucionários nunca foi simples equilibrar o romantismo com o realismo. Lenin e Trotsky enfrentaram problemas muito semelhantes no final dos anos 20.

As reformas em curso

Para lidar com este complexo cenário, o governo decidiu ampliar a gravitação econômica do mercado com o objetivo de favorecer o investimento. Depois de muitas discussões e hesitações, começaram a ser aplicadas as resoluções discutidas desde 2008 e sintetizadas nas diretrizes de 2011. As restrições vigentes para a pequena atividade privada diminuem, se autoriza a criação de negócios e a contratação de empregados. Também se anularia a "libreta", haveria uma paulatina liberalização dos preços e se buscaria eliminar a existência de duas moedas.

As medidas incluem uma maior autonomia na gestão das empresas estatais. Cada firma poderia controlar em forma descentralizada seus ganhos, adquirir insumos e vender produtos em função de seus próprios cálculos (PCC, 2011).

O objetivo imediato é o arrocho de divisas. Diferentemente da ex-URSS ou da China, Cuba não pode sobreviver na autarquia. Precisa de dólares para adquirir combustíveis e importar alimentos. Por esta razão se dispôs a reordenar as quatro fontes de renda de moeda dura: turismo, níquel, serviços profissionais e remessas.

Para reanimar a agricultura terras ociosas serão entregues à pequena produção privada e às cooperativas, buscando repetir a expansão que a China conseguiu nos anos 80. Mas a ilha não só enfrenta uma escassa disponibilidade de terras férteis. Também conta com um altíssimo nível de urbanização que dificulta os incentivos para trabalhar no setor rural.

O ponto mais polêmico das reformas é a introdução de uma categoria de trabalhadores "disponíveis", para todos os trabalhadores afetados pela reorganização das empresas públicas. A falta de recursos obriga a transparecer a dura realidade de companhias deficitárias, que não podem ser sustentadas pelo Estado. Por esta razão se elimina o princípio de garantia oficial de emprego. Busca-se criar um novo segmento de ocupados no setor privado e cooperativo, que absorva os cortes do trabalho estatal (Maiki, 2011).

O governo adiou reiteradamente decisões que se chocam com as aspirações da revolução e com os valores difundidos durante décadas. Mas entende que não lhe resta outra alternativa. As reformas pró-mercantis são vistas como o único caminho para superar a crítica estagnação da economia.

Estas mudanças não são significam por si mesmas no retorno ao capitalismo. Este sistema pressupõe propriedade privada das grandes empresas e bancos, formação de uma classe dominante e generalização da exploração. As reformas não introduzem nenhuma dessas características. Ampliam a gravitação da gestão mercantil no marco precedente. Se outorgam concessões à acumulação privada, com limites para que não haja uma restauração burguesa.

Nos últimos anos mudanças começaram a ser implementadas. Foram feitas numerosas autorizações para a compra e venda de casas e automóveis e foram distribuídas parcelas cultiváveis. Apareceram pequenos negócios (como os "paladares" de comidas) e numerosos empreendimentos comerciais.

Já existe um clima de maior atividade privada e alguns investimentos na reforma de moradias. A flexibilização introduzida neste setor inclui restrições à propriedade de estrangeiros e à herança, para evitar uma corrente de compras vinda de Miami. Os principais convênios com empresas estrangeiras estão centrados na renovação do Porto de Mariel e na construção de uma zona industrial nesta região.

Um ponto crítico é a emigração de trabalhadores qualificados. Desde a eliminação dos entraves para viajar ao exterior foi registrado um grande número de emigrações. Esta expatriação se verifica especialmente entre os universitários formados. Enquanto não se gere trabalho para a massa de engenheiros, sociólogos ou médicos será difícil frear essa drenagem.

A reorganização geral do emprego já começou com os 350 mil empregados que deram o salto aos pequenos negócios. Os trabalhadores autônomos formam uma porção mínima (6%) da força de trabalho, mas poderiam alcançar um alto número nos próximos anos.

O perigo de uma grande onda de corrupção junto com as reformas pró-mercado é uma ameaça conhecida. Há mais de 300 funcionários julgados ou presos por esse motivo. Todos sabem como essa doença sangrou a ex-URSS e afeta a China. Mas o principal desafio é acelerar o ritmo de crescimento de uma economia que não conseguir se expandir para mais de 2% ou 3% ao ano. Os investimentos são escassos e o financiamento internacional não chega (Rodríguez, 2014).

As reformas se desenvolvem até agora em um marco semelhante à NEP ensaiada na URSS nos anos 20 e na China na era pré-Deng. Não ultrapassam os limites compatíveis com a continuidade de um projeto socialista. A experiência demonstrou que o salto para o capitalismo não se produz por simples extensão da atividade mercantil. Aparece quando predomina o setor da burocracia que favorece a reconversão das elites em classes dominantes.

O que ocorreu na URSS demonstra que essa decisão política é o fator determinante do retorno ao capitalismo. As divisas para repetir este processo de restauração não se encontram em Cuba nas mãos dos funcionários, mas entre quem recebe os dólares. Mas os dirigentes definem como esses recursos são utilizados.

Referências

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Claudio Katz é economista argentino. Pesquisador da Universidade de Buenos Aires e do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia da Argentina. Também é membro do Instituto de investigações econômicas daquele país. Site oficial: http://katz.lahaine.org/index.php.

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