Praça da Revolução em Havana | Foto: Portal Vermelho |
Por Hideyo Saito na Carta Maior
A mobilização atual da sociedade cubana é um esforço declarado, pelo menos de parte da intelectualidade e de dirigentes políticos, pelo aprofundamento da democracia e do socialismo no país em favor de uma maior participação popular nas decisões. Esse clima se reflete também na imprensa, acusada nos debates populares de omitir assuntos considerados inconvenientes e de não retratar adequadamente a realidade do país.
Mas, se é verdade que a mídia cubana deixa a desejar na cobertura das grandes questões nacionais, é igualmente verdade que ela tem sido sensível às críticas da sociedade.
O que escondem as autoridades e dirigentes de empresas cubanas, empenhados em dificultar o trabalho de jornalistas e fotógrafos que tratam de oferecer informação pública à população?
Como fazer do direito à informação, uma realidade cotidiana em Cuba?
Essas perguntas foram feitas em matéria de destaque publicada no jornal Granma, porta-voz do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, na edição de 23 de novembro de 2009. No texto, assinado pela jornalista Katia Siberia García e intitulado Jornalismo com fobias, são citados exemplos de autoridades que dificultam o acesso à informação por parte da imprensa. De acordo com Katia García, geralmente esses dirigentes exigem que o repórter mostre autorização escrita dos escalões superiores para aceitarem responder a seus questionamentos.
Outro artigo, este de 29 de agosto de 2009, assinado pelo colunista do Juventud Rebelde, José Alejandro Rodríguez, denunciou a “obsessão doentia” de autoridades de diversos escalões em não fornecer informações negativas para pretensamente cuidar da imagem do país, do ministério, da empresa ou da província. Todas se escudam em desculpas de que as críticas depreciam as conquistas da revolução. O jornalista, porém, atribui essa concepção a “oportunistas e indolentes”, argumentando que “as sociedades também necessitam de espelhos para se olhar e perceber suas rugas, que são reversíveis, ao contrário das que marcam os rostos humanos.”
Nesse sentido, escreve ele, o pior desserviço à revolução “é o silêncio, a simulação, a dupla moral, o conformismo, a complacência diante dos problemas que se armam sob os nossos olhos”.
Rodríguez lembra que houve muita resistência em aceitar a ideia que a corrupção estivesse incubada na sociedade cubana, mas graças aos que insistiram em denunciar o assunto, o país acabou criando em meados de 2009 uma Controladoria Geral para cuidar especificamente do assunto. O jornalista, por fim, adverte: o socialismo europeu desapareceu porque permitiu que prevalecesse essa atitude de avestruz diante dos problemas que se avolumavam.
Um terceiro jornalista cubano, Manuel David Orrio, concentrou sua crítica no funcionamento da própria imprensa, ao comentar uma nota publicada na BBC Mundo sobre um filme cubano que aborda o assunto de forma contundente. Trata-se do curta-metragem Brainstorm, de Eduardo del Llano, exibido em abril de 2009 no Festival de Cinema Pobre, realizado anualmente na cidade de Gibara (a quase 800 km de Havana). A película mostra o conselho de direção de um jornal discutindo qual será a manchete do dia, até que a conversa é encerrada por uma chamada telefônica ao diretor, em que alguém de fora determina a escolha. O correspondente da BBC, Fernando Ravsberg, escreve que a sátira de Llano não é nada exagerada: na vida real, ninguém se atreve a publicar uma notícia politicamente importante sem que haja um claro sinal de cima.
O diretor da película é um jovem realizador, autor de vários filmes polêmicos, alguns exibidos em festivais cubanos com bastante sucesso, mas nenhum ainda apresentado em circuito regular de cinema. Sobre o tema de Brainstorm, ele declara: “O jornalismo cubano muitas vezes está de costas para a realidade ou a enfeita demais. Não é um jornalismo combativo como o que queremos. Não queremos algo meramente informativo e didático”.
Resolução partidária defende jornalismo crítico
Voltando às matérias, elas são também expressão do clima de efervescência vivido atualmente pelo país.
A primeira delas, inclusive, menciona uma resolução, de fevereiro de 2007, do Burô Político do PCC (instância mais alta do partido), que exorta a imprensa local a praticar um jornalismo crítico e determina que, com exceção do segredo militar e de segurança do estado, ninguém tem o direito de negar informações à população.
A propósito, o responsável pelo Departamento de Cultura do partido, Eliades Acosta, comenta que a resolução apenas lembra o que já está na constituição do país, com o objetivo de respaldar a postura crítica da mídia. “A revolução cubana foi feita para que as pessoas pudessem efetivamente exercer todo tipo de direitos, mas [nesse assunto] predominaram práticas institucionais que pretenderam limitar a crítica, sob o argumento de que ela pode servir ao inimigo. O inimigo usa nossos erros e nossas críticas, mas usa nosso silêncio também”. Apesar de tudo, o dirigente comunista reconhece que continua a haver receio e inércia no meio jornalístico, pois se formou uma “barreira psicológica” difícil de superar.
A mobilização atual da sociedade cubana é um esforço declarado, pelo menos de parte da intelectualidade e de dirigentes políticos, pelo aprofundamento da democracia e do socialismo no país, em favor principalmente de uma maior participação popular nas decisões. Logo após o colapso da União Soviética, em princípios dos anos 1990, milhares de trabalhadores que participaram do que ficou conhecido em Cuba como parlamentos obreros (assembleias sindicais, estudantis e de bairro, realizadas em todo o país), levantaram a necessidade de superar a herança do chamado “socialismo real”.
Essa agenda acabou soterrada pela abrupta agudização da crise econômica naquela década, para voltar com força em 2005, quando Fidel advertiu que, se o imperialismo não havia conseguido derrubar a revolução apesar de suas agressões, os cubanos poderiam fazê-lo, com seus erros e omissões.
Dois anos depois, com o afastamento do velho líder por problema de saúde, o presidente Raúl Castro chamou a população a participar da elaboração do projeto de reforma, com críticas, informações e sugestões.
Raúl, significativamente, chamou a atenção para a necessidade de os dirigentes aprenderem a ouvir o povo com atenção e respeito. “Nem todos os problemas poderão ser resolvidos de imediato, mas é importante que as lideranças saibam ouvir, para que se crie um ambiente propício para a população se expressar com absoluta liberdade.” Sustentou ainda que o Partido Comunista de Cuba também deve democratizar-se mais, encarando como positivas as diferenças de opinião “não antagônicas”.
Nada mais natural, portanto, que esse clima se reflita também na imprensa, acusada nos debates populares e até em eventos como o importante congresso da União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), realizado em abril de 2008, de omitir assuntos considerados inconvenientes pelo governo e de não retratar adequadamente a realidade do país.
Em reação a essas críticas, a partir de março de 2008, o diário Granma passou a dedicar uma página semanal para a publicação de cartas de leitores, iniciativa que se multiplica na imprensa regional e também no rádio e na televisão. Os leitores do jornal publicam denúncias contra empresas e órgãos públicos, criticam a situação econômica, discutem propostas para resolver problemas nacionais, analisam as falhas do socialismo e colocam em questão a relativa passividade da própria mídia diante da situação.
Em suma, se é verdade que a mídia cubana deixa a desejar na cobertura das grandes questões nacionais, é igualmente verdade que ela tem sido sensível às críticas da sociedade.
Da mesma forma, é injusto classificar toda ela de insossa e apática. O rádio, por exemplo, apresenta programas jornalísticos de conteúdo crítico, como o “Falando Claro”, da Rádio Rebelde, e o “Alta Tensão”, da CMHW de Santa Clara, na província de Villa Clara, em que a realidade aparece sem retoques e a participação dos ouvintes é uma constante. A televisão cubana exibe algumas séries que enfocam de forma direta as mazelas nacionais, sem falar nos telejornais e em algumas novelas locais. Dentre os programas semanais da televisão, há um popular humorístico chamado “Deixa que eu te conte”, transmitido pelo canal Cubavisión em horário nobre. Nele desfilam dirigentes desonestos, comunistas negligentes, trabalhadores inescrupulosos e outros personagens da vida cubana, cujas façanhas são impiedosamente satirizadas.
Superar tradicionais motivos de crítica à revolução
A mobilização atual aponta para a perspectiva de superação, até, de aspectos políticos e sociais que são tradicionalmente motivos para críticas à revolução cubana. Exemplo óbvio é o atual tratamento dado à questão do homossexualismo, como a autorização para a realização, na rede hospitalar do país, de cirurgias de mudança de sexo, oficializada em 2008. Há ainda o projeto de lei sobre união homossexual, que tramitava na Assembleia Nacional no final de 2009. Ambas as iniciativas partiram do Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex), dirigido pela socióloga Mariela Castro.
Exemplo similar está na proposta de eliminação da exigência, a cidadãos cubanos, de autorização para entrar e sair do país, atualmente em estudo.
O assunto foi comentado pelo cantor e compositor Silvio Rodríguez da seguinte forma: “Esse tipo de restrição à liberdade se encaixa divinamente na má fama do chamado socialismo real. Romper com esse tabu seria muito positivo para a saúde do socialismo cubano. (...) Uma sociedade precisa suscitar entusiasmo e oferecer segurança. [Os mais velhos] pudemos viver a maravilha de ver essas duas virtudes juntas, mas os jovens de hoje só sentem o incômodo de viver em um país onde quase tudo é escasso.
Assim, o inimigo não precisa mais desembarcar em nossas praias: sabe que o bloqueio nos faz mais mal que qualquer invasão. Sabe também que a vasta rede de propaganda faz o resto. Diante dessa evolução do inimigo, a defesa do nosso governo parece obsoleta”.
Já nos meios artísticos e culturais, um dos temas centrais dos debates é a censura que vigorou no passado e que ainda se faz sentir. Mais especificamente, ele enfoca a política cultural do chamado “quinquênio cinza” (nos anos 1970), denunciada como autoritária e dogmática.
Na verdade, essa política vigorou por mais de uma década, com fechamento de grupos teatrais e marginalização de artistas e intelectuais considerados incômodos. Segundo os debatedores, contudo, há práticas daquela época que persistem ainda hoje, como a não exibição de determinados filmes na televisão. A obra do já citado Eduardo del Llano é um bom exemplo. O cineasta Pavel Giroud, autor do premiado La edad de la peseta, de 2006, lembrou, durante os debates, que seu mais recente documentário Mi generación, baseado na trajetória real de um grupo jovem de música, ainda não havia sido mostrado pela televisão, apesar de ter tido sucesso de crítica e de público no cinema. (Em compensação, seu colega Ian Padrón conseguiu fazer com que o documentário Fuera de Liga entrasse em cartaz, tanto no cinema como na televisão, em 2008, depois de amargar cinco anos de espera).
Na abertura da Feira de Livros de 2007, em fevereiro, o poeta César López, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura daquele ano, homenageou “todos os criadores cubanos, sem exclusão”, evocando os nomes de Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas, Jesús Díaz e Heberto Padilla, que têm em comum o fato de terem morrido no exílio como opositores da revolução.
Socialismo não se sustenta sem democracia
O citado dirigente comunista Eliades Acosta diz que as mudanças pretendidas não visam apenas resolver as atuais dificuldades econômicas, mas criar as bases para um novo socialismo, mais democrático. Para ele, o desejável é que a atual mobilização se traduza em um mecanismo permanente de democracia socialista em seu país. Acosta recorda, a propósito, que os melhores momentos da revolução cubana foram marcados por intensa participação popular.
Para o sociólogo Aurelio Alonso, subdiretor da revista Casa de las Américas, faltou ao chamado “socialismo real” um padrão de eficiência que assegurasse a complementação entre justiça social e desenvolvimento econômico.
No plano político, analisa Alonso, ficou claro que o socialismo não se sustenta sem democracia. Se houvesse um verdadeiro poder popular na União Soviética, Gorbachev poderia ter sido bem-sucedido em reinventar o sistema socialista. A perestroika falhou justamente por falta dessa espinha dorsal. O contrário acontece no capitalismo, apesar da gritaria da mídia dominante em relação a Cuba: não lhe interessa uma verdadeira democracia, bastando-lhe a existência de partidos e de eleições para manter as aparências. Não acidentalmente, o neoliberalismo colheu seu maior êxito no Chile de Pinochet.
Mas se a mobilização popular é maior em Cuba do que nas chamadas democracias dos países capitalistas, suas limitações têm sido também objeto de crítica.
A socióloga cubana Mayra Espina Prieto, pesquisadora do Centro de Investigações Psicológicas e Sociológicas (CIPS) da Universidade de Havana, pondera que essa participação acontece em cenário marcado por uma mentalidade hierárquica autoritária na estrutura de poder, que acaba limitando seu efeito na tomada de decisão. O que prevalece é a mobilização de apoio a objetivos estratégicos definidos por especialistas, ou seja, a consulta sobre decisões já traduzidas em planos e programas. A participação não é entendida como intervenção que começa na fase de escolha da própria estratégia. Como se vê, são titânicos os desafios e dificuldades para o governo cubano – e o pano de fundo é a renitente crise econômica, que apertou em 2009, após quatro anos seguidos de crescimento.
Hideyo Saito é jornalista com uma passagem de dois anos pela Rádio Havana Cuba.
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