domingo, 23 de dezembro de 2012

Os cubanos tem uma visão mais realista da fraternidade e união

Bernhar, jovem engenheiro "bicicleteiro", na Rua Neptuno, em Vedado, Havana: "Os brasileiros, escravos da mídia direitista, muito provavelmente continuarão ignorando o que é possuir um governo que realmente se preocupa com educação, saúde, segurança".
Do blog  Evidentemente
Texto e fotos: Jadson Oliveira

Acesso ao mínimo para viver, pequenas escolas por todo canto, recepção, consumismo, assédio aos turistas, Ato de Ajuste Cubano, bloqueio, reformas, segurança, futuro do socialismo: jovem engenheiro “bicicleteiro” brasileiro opina sobre a realidade de Cuba e diz o muito que gostou e o pouco que não gostou nos 17 dias que passou na ilha.

Bernhar Gobbi Rocha Coimbra, 31 anos, goianiense, filho de baiano de Correntina com goiana de Itumbiara, solteiro, engenheiro de computação, trabalha no Ministério das Cidades em Brasília, participa há quatro anos do grupo “bicicletada”, um coletivo horizontal derivado do movimento Critical Mass, surgido em San Francisco, Califórnia, com o objetivo de debater o uso da bicicleta em detrimento do uso do carro, principalmente para deslocamentos curtos. Não tem militância político-partidária, mas é simpatizante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) pelo alinhamento ideológico, partido que tem hoje uma linha política bem à esquerda, ao contrário do antigo chamado Partidão.

Esteve 17 dias em Cuba, entre 21/out/2012 e 07/nov/2012, percorrendo a porção cubana abrangendo Havana e a porção mais a oeste da ilha, para se manter afastado da zona de influência do furação Sandy, que castigou a parte oriental do país naquele período (as províncias – estados – mais atingidas foram Holguín e Santiago de Cuba).

Na entrevista, concedida a este blog por escrito (as perguntas foram formuladas em Havana e respondidas e editadas já no Brasil), o jovem engenheiro “bicicleteiro” brasileiro fala das suas impressões sobre Cuba, dizendo-se surpreendido “pela cordialidade e alegria, pela inteligência e solidariedade” do povo cubano. Discorre sobre o que mais lhe agradou e o que mais lhe desagradou. E conclui: “Cuba é linda. Os cubanos são parecidos com os brasileiros, apenas têm uma visão mais realista da fraternidade e união, do que é um governo para o povo. Aos brasileiros, resta apenas o carnaval, o pão e o circo”.

Paisagem humana "habanera": na Rua San Rafael (proximidades de um mercado popular), uma das vias que ligam Centro Havana com Havana Velha.
Como foi a prática da “bicicletada”, do ciclismo, em Cuba? Há algum tipo de interesse nessa prática aqui na “ilha de Fidel”?

Engraçado esse jargão, mas a ilha não é de Fidel, certo?! O povo cubano surpreende pela cordialidade e alegria, pela inteligência e solidariedade. Percorrer os 630km entre Havana, Pinar Del Rio, voltando pela “carretera” norte, passando pelo porto de Mariel, ainda em construção, mostrou-me claramente que a bicicleta é um meio de transporte comum em Cuba. A bicicletada aqui não tem muito sentido, uma vez que não há um consumismo institucionalizado ou a chamada carrocracia, como no Brasil, onde o governo depende dos empregos na área da siderurgia para manter a economia em ordem. Em Cuba anda-se de bicicleta, de ônibus, de carona, a pé e nos charmosos modelos da década de 50 e nos Ladas deixados pelos soviéticos. Há, sim, escassez de pneus e outras peças para bicicletas. Sempre fui bem recebido ao chegar de bicicleta.

Nossa grande imprensa só vê coisa ruim em Cuba, enquanto as pessoas e movimentos/partidos de esquerda a defendem. Pelo que deu pra perceber, quem está mais próximo da realidade? Faça um pequeno resumo do que mais te agradou e do que mais te decepcionou.

O que me agradou foi confirmar que as pessoas têm acesso ao mínimo, como saúde, educação, segurança e moradia. O cubano vive modestamente, mas o estado proporciona meios de fazer o pouco que o cubano ganha (em média US$ 20 por mês) render como se fosse muito mais. O sistema de ensino e o acesso aos espetáculos e cultura são impressionantes pela eficiência e universalidade. Me impressionou a paisagem cubana, a comida, a paisagem urbana livre da poluição visual da propaganda, as crianças e jovens indo a várias pequenas escolas espalhadas por todos os cantos, uma solução muito mais interessante que grandes escolas que exigem grandes deslocamentos dos estudantes.
A exuberância do Capitólio (réplica do prédio do Parlamento estadunidense em Washington), ao fundo o Grande Teatro Havana e o Hotel Inglaterra, na Praça Parque Central, o miolo de Havana Velha, área turística por excelência na capital cubana.
O que me decepcionou é ver que os jovens, que tiveram igualdade de condições, vêm seguindo o estilo de vida consumista, sempre de olho em celulares, câmeras e outros aparatos tecnológicos trazidos pelos turistas.

Mas o que me impressionou mais foi saber da lei implementada ainda na guerra fria pelos EUA para incentivar o êxodo de cubanos da ilha. Esta lei é chamada de Ato de Ajuste Cubano, de 1966, que garante ao cubano que chegar aos EUA visto permanente, emprego, saúde e moradia. Esta lei dá direitos aos cubanos que nenhum outro cidadão no mundo pode ter. Ou seja, um imenso convite à imigração ilegal, fomentando a mídia mundial com imagens de pessoas em balsas improvisadas deixando a ilha. Claro, a mídia atribui isso ao regime cubano. Se houvesse a mesma lei valendo para brasileiros, imagine! Essa lei ainda vale nos dias de hoje, com algumas mudanças na administração (Bill) Clinton.

Deu pra sentir/perceber as faladas mudanças, principalmente na economia, que o governo comandando por Raúl Castro vem tentando incrementar?

Sim, deu pra perceber que as coisas estão melhorando, que as pessoas acreditam que, já que o bloqueio a Cuba, ignóbil e injusto, apoiado apenas por EUA e Israel, já que o bloqueio não parece ceder, que as mudanças são necessárias para uma melhoria na qualidade de vida do cubano. Assim, acredito que Cuba está se aproximando do modelo chinês, onde há espaço para negócios particulares, mas a maior parte das empresas continuam sob controle do estado. O comércio de alimentos e restaurantes é uma boa fonte de renda para os cubanos.

O belo Malecón (uns 10 quilômetros de cais), que no final das tardes enche-se de grupos de jovens, casais de namorados e pescadores (a foto foi tirada pela manhã).

Depois dos 50 anos da Revolução Cubana, com lutas e enormes dificuldades postas no seu caminho pelo poderoso império estadunidense, você acha que o saldo é positivo? Valeu a pena tanta resistência e sacrifício para o povo cubano? O socialismo existe na ilha? Se existe, tem futuro?

Fidel é reconhecido pela inteligência e por ter proporcionado ao povo o que não temos no Brasil, por exemplo. Uma vida digna e longe da ignorância e abandono, porém modesta, onde não há espaço para luxo quando isto ameaça o mínimo para todos. Raúl é uma esperança de que mudanças continuem acontecendo, no sentido de conciliar o socialismo com avanços e inclusão tecnológica. O socialismo existe, há um sentimento de solidariedade entre os cubanos e duvido que as conquistas do socialismo sejam perdidas sem grande luta. O futuro dependerá do comércio entre a ilha e os países chamados bolivarianos, como Venezuela, Equador, Bolívia, além da gigante China. Há ainda o porto de Mariel e a prospecção de petróleo na plataforma oceânica da ilha, que podem pesar positivamente na balança comercial cubana. O futuro parece promissor.

Deu pra sentir se Cuba avançou rumo a uma sociedade mais fraterna e solidária? Os valores capitalistas – consumismo, individualismo – continuam fortes na cabeça dos cubanos?

Há um gradiente de cubanos, desde os que não conversam com turistas aos que se dedicam à sua exploração sistemática. A verdade é que para cada cubano que quer sair, há vários que nunca abandonariam a tranquilidade e vida modesta que desfrutam na ilha. Saber que seus filhos podem sair para uma danceteria e dormir sossegado é algo que não acontece muito no Brasil. Os brasileiros, escravos da mídia direitista, muito provavelmente continuarão ignorando o que é possuir um governo que realmente se preocupa com educação, saúde, segurança, continuarão desprovidos de conhecimento da história do nosso subdesenvolvimento, assistindo futebol e novelas vazias e cujo único motivo de ser está nos intervalos comerciais para venda dos mais diversos produtos. Cuba é linda. Os cubanos são parecidos com os brasileiros, apenas têm uma visão mais realista da fraternidade e união, do que é um governo para o povo. Aos brasileiros, resta apenas o carnaval, o pão e o circo.

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