Por Raquel Moysés - jornalista
Ela irradia ternura na face e força cálida na voz. É noite de quarta-feira de cinzas e o Teatro Álvaro de Carvalho, no centro da capital catarinense, está repleto de um público que em grande parte se conhece, mas faz questão de se apresentar. Para marcar presença, dezenas de papeluchos chegam à mesa para indicar nomes de pessoas e as instituições que representam. Raras vezes, em ambientes desse tipo, tanta gente demonstra interesse em deixar simplesmente registrado: eu também estou aqui.
Desejo de se sentir parte da história do povo caribenho que a figura de Aleida Guevara March evoca? Vontade de ficar mais perto de quem representa a continuidade humana da figura que tantos carregam no peito, como forma de manifestar o pertencimento a certo tipo de visão de mundo? O que parece é que a filha “del Che” renova esperanças para gente que milita nos movimentos populares, estudantis e de trabalhadores, muitos deles enfrentando uma entressafra que já dura tempo.
A vinda de Aleida de sua ilha caribenha para participar do carnaval da ilha meridional catarinense está plena de significados simbólicos. Não é coisa pouca uma representante do povo revolucionário cubano participar do desfile da escola de samba que escolheu como tema Cuba, sua gente e sua revolução. Uma revolução, insolentemente socialista, que se desenrola há 52 anos a apenas 90 milhas das costas estadunidenses. Caso único no mundo de resistência revolucionária, às portas do vizinho imperialista, cuja política de Estado sempre foi a de anexar a estratégica ilha ao seu território.
A vitória da União da Ilha da Magia no carnaval deste 2011, em Florianópolis, representa bem mais do que o orgulho de subir ao pódio carnavalesco. Em meio a iracundas manifestações de estratos da direita, ancorados em mal disfarçadas críticas da mídia, a escola cantou na passarela Nego Quirido seu samba enredo: “Cuba sim, em nome da verdade.”
Aleida Guevara resumiu de modo singelo o feito da União da Ilha da Magia: “é uma homenagem ao povo cubano". No plano dos significados simbólicos, porém, a vitória representou muito mais do que isso em um estado marcado desde sempre pela dominação de uma oligarquia política. Mexeu com os brios de muita gente a heresia de levar para a avenida a imagem de José MartÍ, a figura de Che e de atacar em campo aberto o “poder” do tio Sam, ressaltando ao mesmo tempo os feitos sociais de Cuba no campo da educação, da saúde, da reforma agrária, dos esportes.
O fato é que uma escola de samba, de ainda breve vida, conseguiu obrigar a rede que domina a comunicação em Santa Catarina a transmitir, ao vivo, em alta definição, 80 minutos de informação sobre Cuba. E em linguagem musical, em imagens vibrantes, que o povo entende com o corpo e a emoção, o que vale mais do que discursos panfletários em defesa da revolução cubana.
A Associação Cultural José Martí (SC), que ajudou a organizar a agenda de Aleida Guevara no Estado, ressalta que jamais se pensou que no Carnaval de Florianópolis uma escola de samba pudesse falar sobre essas lutas de libertação: “fomos surpreendidos por jovens que não temeram a crítica feroz dos conservadores e reacionários desta cidade.”
Havia gente da União da Ilha da Magia que já participara das Brigadas de Solidariedade a Cuba, mas a intimidade da escola de samba com o povo que cantou na Nego Quirido tem raízes recentes. A escola teve o cuidado de viver a realidade que desfilaria in loco, através de representantes que viajaram a Cuba para mergulhar na sua história, conhecer sua gente, seu universo cultural, procurando compreender os passos de sua gesta revolucionária.
Mulher internacionalista
Já Aleida Guevara, durante sua permanência em Florianópolis, revelou o modo de ser de mulher que percorre o mundo para promover a amizade e a solidariedade entre os povos. Médica como o pai, a filha mais velha de Ernesto Guevara de la Serna, El Che, é especializada em alergia pediátrica é uma militante internacionalista. Acompanhou, de 1983 a 1984, o processo político ocorrido na Nicarágua, com o triunfo da revolução que derrotou Somoza. Esteve, de 1986 a 1988, em Angola, no período da guerra contra os racistas sul-africanos doapartheid. E continua fazendo estrada, como colaboradora do Instituto Cubano de Amizade aos Povos (ICAP).
Na conferência no Álvaro de Carvalho, um dia depois da data que celebra o dia internacional da mulher, Aleida lembrou o pensamento de José Martí sobre o papel da mulher na revolução: "Las campañas de los pueblos solo son débiles, cuando en ella no se alista el corazón de la mujer; pero cuando se estremece y ayuda, cuando la mujer, tímida y quieta de su natural, anima y aplaude, cuando la mujer culta y virtuosa unge la obra con la miel de su cariño la obra es invencible".
E, diz Aleida, inspirada no pensador que morreu em batalha lutando pela independência de Cuba, “a obra da revolução se torna invencível porque a mulher, quando adentra um processo revolucionário, o faz com uma força tremenda”. E isso acontece porque ela sabe que “também está defendendo o fruto do seu ventre, o futuro da vida”.
Mas a mulher ainda tem muito que lutar, avisa a médica, ao lembrar que 60% dos atuais empobrecidos no mundo são do sexo feminino. Aleida reconhece que, mesmo em Cuba, com 52 anos de vigência da revolução socialista, ainda há vestígios visíveis de uma cultura machista que 500 anos de história não foram suficientes para eliminar. No entanto, afirma, o projeto social cubano não renuncia a que as mulheres tenham direitos com igualdade em todos os campos do saber e do fazer humano. Hoje elas já representam 75% dos trabalhadores sociais e 51% dos pesquisadores, “o que mostra que a mulher cubana tem neurônios bem ativos.”
Para mostrar os reflexos da revolução em seu país, Aleida destaca alguns dados sobre a população cubana, que hoje supera os 11 milhões de habitantes. A esperança de vida ao nascer para as mulheres, que era de 57,89 anos e para os homens de 53,64, no período de 1950 a 1955, aumentou para 80 e 76 anos, respectivamente. Tais valores representam um ganho em expectativa de vida de 22,13 anos, no período revolucionário de cinco décadas.
Cuba é hoje o segundo país no mundo (algumas estatísticas o classificam em quarto) com mais mulheres no Parlamento (43%), sendo que, na atualidade, sete mulheres são ministras. Aleida enfatiza o processo eleitoral cubano, esclarecendo que, quando se fala em eleições cubanas, “ muitas vezes se desconhece que a nossa democracia é de outro tipo”.
Em Cuba, as eleições parciais ocorrem a cada dois anos e meio, para eleger delegados), e as gerais, a cada cinco, para eleger os deputados nacionais e integrantes das assembleias provinciais. Lá, o registro eleitoral de todo cubano é automático, universal, gratuito e público, a partir dos 16 anos de idade. Outra aspecto que distingue as eleições no país é que quem nomeia os candidatos não é partido político, mas assembleias populares, nas cidades e no campo. A propaganda dos candidatos também difere em muito da máquina mercantilista e corrupta de outros países. É de responsabilidade das autoridades eleitorais a afixação, em lugares públicos, na área de residência dos eleitores, de cartazes com as biografias e as fotografias dos candidatos. Em Cuba, o voto é livre, não obrigatório como no Brasil, por exemplo, só que mais de 90% dos eleitores comparecem aos locais de votação.
Mulheres em campo
É também o combate em campo político contra as disparidades a propiciar o acesso das mulheres a empregos de qualidade em Cuba. Números apresentados por Aleida revelam que, no final de 2008, cerca de 66% das pessoas ocupadas em cargos técnicos eram mulheres.
Nesse mesmo ano, elas alcançavam 16,9% entre os cientistas e intelectuais, índice que, em 1953, era de apenas 2,1%. Também, de 1970 a 2008, as mulheres dirigentes cresceram sete vezes, representando hoje 39% dos profissionais que ocupam esta categoria. Hoje, em Cuba, 71,4% das mulheres são juízes, presidentes de tribunais provinciais.
Entre 2006 e 2007, as mulheres passaram a representar 30% dos profissionais com doutorado e 50% daqueles com mestrado. O total de médicos cresceu mais de dez vezes, com a participação das mulheres se equiparando à dos homens. Hoje em Cuba, 99,1% dos médicos clínicos gerais do país são mulheres e Aleida lembra que dos 32 mil profissionais cubanos da área de saúde que atuam em 72 países no mundo, muitos são mulheres. “Elas deixam seus lares e filhos para ajudar, e não há capital no mundo que pague este trabalho solidário.”
Aleida diz que, por causa da vontade política de transformar a realidade cubana, houve intensas mudanças na vida das mulheres e em sua participação na tomada de decisões do país. Por exemplo, no processo eleitoral, de 1976 a 2007, as mulheres cresceram quatro vezes nas assembleias municipais e 1,5 vezes nas provinciais e na assembleia nacional. As presidências e vice-presidências ocupadas por mulheres eleitas para os conselhos populares também cresceram na ordem de 1,4 para 8,6 vezes nesses mesmos anos. Enquanto isso, a representação das mulheres no Conselho de Estado, em sete legislaturas, no período de 1976 a 2008, subiu de quatro para oito.
A contribuir para mudar a face da desigualdade social e eliminar formas de discriminação contra as mulheres, atua a Federação das Mulheres Cubanas, hoje com 4 milhões de filiadas, e à qual as adolescentes podem se vincular a partir dos 14 anos. Todo esse trabalho frutifica em leis e medidas que protegem e garantem bem cuidar das futuras gerações. A mortalidade infantil e a dos menores de cinco anos diminuiu em mais de 30 pontos, considerando mil nascidos vivos. A mortalidade materna (taxa por 100 mil nascidos) também foi reduzida de 125,3, em 1958, para 29,4, em 2008.
A proteção da infância se expressa no cuidado na hora do parto e na vacinação. Aleida informa que 99,9% dos partos ocorrem em instituições médicas e 99% das crianças são imunizadas. “Hoje Cuba tem vacinas até para doar às crianças dos Estados Unidos, mas é o governo estadunidense que não aceita a nossa ajuda”.
A licença maternidade em Cuba tem a duração de um ano, período no qual, por nove meses, a mãe trabalhadora recebe o salário integral, e, por mais três meses, o percentual de 75%. A outra grande diferença em relação ao que vige em outros países é que a mulher e o homem podem dividir o período de licença, decidindo como usufruir esse direito de cuidar dos filhos bebês, em razão, por exemplo, de questões familiares e salariais.
No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, Cuba garante o aborto legal, realizado em hospitais. Aleida esclarece, no entanto, que é feito um trabalho sistemático para evitar essa situação traumática, que sempre envolve muita aflição para a mulher que se vê diante de tal escolha. Por isso, ela assegura, desde os primeiros anos, meninos e meninas recebem uma adequada educação sexual, na busca de evitar a decisão extrema e dolorosa de abortar.
Repúdio à violência
A violência contra a mulher também tem baixa incidência em Cuba, pois é a própria sociedade cubana que não tolera este tipo de fenômeno. Há situações isoladas, diz Aleida, mas a violência é muito repudiada pela população cubana, e são os próprios vizinhos que reagem. “O homem tem que ter cuidado, pois a comunidade cai em cima dele”, diz a médica. Ela explica que há muitos projetos sociais que trabalham esse tema com as crianças: “Somos educados desde pequenos que em uma mulher não se bate nem com uma flor”.
Em Cuba, a Aids pouco aflige a sociedade, pois atinge apenas 0,1% da população. A droga ali também não representa, conforme Aleida, uma preocupação, pois há todo um trabalho social que impede que ela avance seus tentáculos sobre a juventude, que cresce com educação e saúde garantidas, além de usufruir de uma vida cultural intensa, que se expressa na música, na dança, no cinema, na literatura, nos esportes.
Hoje em Cuba, 99,1% dos médicos clínicos gerais do país são mulheres e Aleida lembra que dos 32 mil profissionais cubanos da área de saúde que atuam em 72 países no mundo, muitos são mulheres. Elas deixam seus lares e filhos para ajudar, e não há capital no mundo que pague este trabalho solidário.”
Sobre a população cubana que vive nos Estados Unidos, Aleida lembra que há uma legislação estadunidense, chamada lei de ajuste cubano, de 1966, que estimula a ida ilegal dos que se deixam enganar pelo grande sonho americano. Tal lei, adotada pelo congresso dos Estados Unidos, alterou o estatuto dos imigrantes cubanos, que passaram a ter a condição de “refugiados políticos”, com direito automático de asilo político, com a permissão de trabalhar e ter residência permanente nos Estados Unidos. Isso se alcançarem o território estadunidense com os “pés secos”, pois os interceptados no mar (“pés molhados”) são devolvidos a Cuba. Mas tudo acontece, lembra Aleida, a despeito de um acordo assinado entre os dois países, mas que os Estados Unidos não respeitam, que permitiria a entrada de 20 mil cubanos por ano pelas vias legais, em terras estadunidenses.
Legado “del Che”
Aleida, que herdou do pai o olhar profundo que fita horizontes sem confins, imortalizado na célebre fotografia de Alberto Korda, está certa de que as mulheres cubanas, nos piores momentos que enfrentaram na luta para garantir a igualdade, sempre souberam que “não se realiza a obra da humanidade se não estivermos todos juntos na luta”. E, ela assegura, “sempre tivermos um cuidado ‘muy hermoso’para não perder jamais a ternura.”
Ao falar sobre o que, para ela, é o maior legado de seu pai, Aleida não hesita em dizer que o melhor ‘del Che’ foi a sua coerência. “Ele fez o que dizia, e durante toda sua vida tratou de resolver os problemas que criticava. Teve uma capacidade infinita de amar, entregando a própria vida em nome desse amor.” Em texto que dedicou a ele, Aleida escreveu:"Yo agradezco a mi papá no solamente la vida, sino también la oportunidad de vivirla con amor y valentía."
Em uma entrevista, ela faz outra confissão de amor: “Sofro como todo mundo e às vezes me sinto impotente, como por exemplo, diante das agressões ao povo palestino, à guerra do Iraque ou diante de um menino que morre nas ruas do Brasil. Tudo isso me enche de ira. Mas essa é a vida que escolhi e me sinto feliz quando vou a um acampamento do MST brasileiro ou quando pelos caminhos me preocupo por um menino para que tenha seus sapatos, ou quando posso colocar um estetoscópio em seu peitinho e diagnosticar o que tem...Tratar de ajudar!...”
Em certa ocasião, Aleida falou desse espírito cubano, com muita força. Ela disse: “Nunca abandonamos ninguém. O cubano é um povo que sabe o que significa cada um de seus homens, cada uma de suas mulheres, cada uma de suas crianças. Este é um sentimento muito antigo em uma pequena ilhazinha que está isolada pelo mar. Essa sensação de que você precisa ser solidário, precisa ajudar a quem quer que necessite, esteja ele onde estiver, isso é muito forte... No há nenhum cubano que tenha ido a uma missão internacionalista, seja em educação, seja em saúde pública, que tenha se sentido só ou abandonado pelo seu povo...”
É por estar possuída deste espírito cubano que, nas suas andanças pelo mundo, a filha de Che trata de ajudar e nunca esquece ninguém de seu povo. Ao se despedir de Florianópolis, aquela noite no teatro, trouxe à memória as mulheres, as mães e as famílias dos cinco cubanos – heróis para seu povo – presos nos Estados Unidos, acusados de espiões e terroristas. Com sua voz, ela deu vida a eles, no palco do Álvaro de Carvalho, elevando a palavra de um deles, Antonio Guerrero:
A ti mujer que sabes
del delirio y el polvo del tiempo
quiero dar mi lirismo de encierro
como un ciego mirando a la luna.
A ti mujer que ocupas
el altar de esta bella locura
te propongo tu sal y tu espuma
las coloques dentro de mi verso.
He soñado una luz que nos sigue
y promete dejarnos a oscuras.
He soñado tus ropas dispersas
a lo largo de un muelle que augura.
A ti mujer que llegas
valerosa hasta el centro del miedo
te regalo una rosa y pronuncio
contra el odio de amor una nota.
A ti mujer que tocas
lo mas alto de mi pensamiento
te coloco mi sombra y mi historia
en el dulce calor de tu seno.
He soñado que te amo y me amas.
He soñado que es cierto mi sueño.
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