Por Alexandre Haubrich no Correio da Cidadania
Nas estreitas ruas de Vedado, um dos bairros centrais de Havana, é
difícil cruzar uma quadra sem ter de desviar de algum cubano que,
sentado na soleira da porta de casa, com as pernas dobradas em direção
ao peito, lê um jornal, fuma um charuto ou simplesmente observa o
movimento de alguns carros antigos ou de senhoras que andam poucos
metros para comprar frutas em uma pequena banca privada. Geralmente são
aposentados. À tarde os mais jovens estão todos trabalhando, e os ainda
mais jovens estão todos na escola.
Na pequena praia de Siboney, há 12 km de Santiago de Cuba, na outra
ponta da ilha, é muito difícil encontrar uma mulher na rua. Os homens,
sim, estão todos zanzando entre as casas, conversando. Alguns trabalham
reconstruindo o patrimônio que o furacão mais recente destruiu. As
mulheres estão em casa, cuidando dos afazeres domésticos. No fim da
tarde chegam alguns caminhões carregados de trabalhadores, outros de
crianças que há pouco se despediram dos professores em alguma cidade
próxima.
Em um hotel de grande porte em uma região turística de Havana,
diversos atendentes com cara de poucos amigos estão na recepção ou em
guichês menores, onde se alugam carros ou se trocam euros ou dólares –
mais o primeiro do que o segundo – por CUCs, a moeda cubana exclusiva
para turismo e que criou um abismo de desigualdade entre os que
trabalham nesse setor e todos os outros. Não é improvável que um
funcionário hoteleiro esteja oferecendo a um turista gringo com quem
conversa uma caixa de charutos por um preço dez vezes mais barato do que
nas lojas oficias. A probabilidade de o charuto não ser da marca que
diz ser é grande, mas também é possível que seja verdadeiro e tenha sido
“retirado” da fábrica por algum funcionário padrão.
À frente do hotel, atrás do hotel e aos lados do hotel, outdoors
lembram os feitos dos revolucionários e trazem como lemas frases de
Martí, Fidel, Che, Raúl e Camilo. Outdoors como estes também estão nas
estradas que levam a Siboney e em todas as pequenas cidades que se deve
deixar para trás para ir de Havana, no extremo ocidente cubano, até
Santiago de Cuba, a maior cidade ao Leste.
As quatro pequenas histórias são representativas de uma grande parte
do cotidiano do povo cubano. Mas Cuba são muitas. Dizia Marx que apenas
no comunismo as individualidades poderiam ser plenamente usufruídas. Na
tentativa socialista de igualdade também se destacam as diferenças, seja
entre as pessoas, seja entre cidades de grande e de pequeno porte, seja
entre as regiões Ocidental e Oriental. Mesmo assim, em medidas
variáveis, algumas questões estão sempre presentes para todos os
cubanos. Para o bem e para o mal.
Escola e segurança
Durante o dia as ruas cubanas estão vazias de crianças. Nada.
Nenhuma. Estão todas na escola, e só podem ser vistas ao meio dia,
quando algumas saem para almoçar, ou no fim da tarde, quando voltam para
casa – com exceção das menores, quase sempre sozinhas ou com amigos. A
violência não é uma preocupação de ninguém. “Em Cuba estás sempre
seguro”, parece um mantra combinado entre todos os que respondem sobre
qualquer perigo em sair à noite por ruas nem sempre bem iluminadas.
Os Comitês de Defesa da Revolução (CDR`s) estão em todos os
quarteirões, e deles participa grande parte dos vizinhos. Ali
desenvolvem ações culturais, cuidam para que todos os adultos estejam
trabalhando e para que todas as crianças estejam nas escolas, e cuidam
para que nada aconteça na região sem que toda a comunidade saiba e se
empenhe em resolver um possível problema. Não são espaços armados, é a
própria relação de comunidade estabelecida entre os vizinhos que impede
qualquer movimento estranho ao bairro e aos interesses da população.
Quase não se vê guardas nas ruas, e é ainda mais difícil encontrá-los
armados. É a população quem, armada principalmente de coesão e
solidariedade, garante a segurança geral.
Enquanto as crianças estão na escola, os pais e mães estão
trabalhando. Cada vez menos em serviços estatais. Para combater a crise
econômica iniciada com o fim da União Soviética, o governo começou a
abrir possibilidades de trabalho na iniciativa privada. Para tentar
aumentar os salários, recentemente 400 mil pessoas foram demitidas, e
estimuladas a se lançarem em negócios próprios. Saem com aporte
financeiro e a possibilidade de voltar ao setor estatal caso não se
acertem em suas novas empresas, mas saem. E muitos mais ainda devem
sair. A crise econômica é séria. Mantém os salários baixos e faz os
preços subirem.
Soluções se transformaram em problemas
O forte estímulo ao turismo a partir dos anos 1990 e a criação de uma
segunda moeda, puramente turística – o CUC –, foram soluções imediatas
para inserir divisas na economia cubana, mas agora se tornaram problemas
que acentuam a desigualdade e levam a parte do povo a ilusão da riqueza
fácil e da ideologia capitalista. Quem trabalha com turismo ganha muito
mais por conta da moeda supervalorizada em relação ao Peso Cubano e, no
contato com os turistas, muitas vezes passa a acreditar que sair do
país traria grandes vantagens financeiras.
São exceções, mas não é impossível encontrar cubanos que dizem
abertamente querer sair do país. Mas nenhum deles quer ir embora por
questões políticas. Todos os que pretendem deixar Cuba reclamam dos
baixos salários e dos altos preços e acreditam que em outros países sua
situação seria diferente – é o que veem, por exemplo, nas novelas
brasileiras que infestam a televisão cubana todas as manhãs, bem cedo, e
gruda os cubanos nos dramas burgueses de Por Amor e Insensato Coração. Nem todos têm a informação de que terão que pagar por privilégios que em Cuba são direitos, a começar por Saúde e Educação.
Direitos básicos garantidos
Todo cubano nasce com direito garantido à Saúde e à Educação. De uma
simples gripe a um violento câncer, tudo será tratado de graça. Há
pequenos postos médicos por todos os lados, inclusive nos museus e
hotéis. E nada é pago. O filho de Maria, uma senhora de cerca de 60 anos
que aluga quartos para turistas em Havana, teve aos 17 anos uma doença
que subitamente o deixou sem os movimentos nas pernas e com outras
limitações motoras. Desde lá, 18 anos atrás, três vezes por semana uma
ambulância o busca para levá-lo ao hospital, onde segue seu tratamento.
Nunca pagou um centavo por nada disso.
O mesmo acontece com a Educação. Faltam canetas em toda Cuba, mas não
falta escola para ninguém. E é muito difícil encontrar um cubano com
mais de 30 anos que não tenha pelo menos uma formação de Ensino
Superior. Taxistas-engenheiros e agricultores-agrônomos são o que mais
se encontra. É possível inclusive encontrar agricultores-filósofos. Até
antes do fim da União Soviética, quando o país tinha melhores condições
econômicas, todo cubano cursava alguma faculdade. Hoje nem todos o
fazem, muitos passam da escola para cursos técnicos, buscando trabalhos
que os podem pagar melhor – em Cuba são os trabalhos privados que dão
mais dinheiro, por conta da dificuldade do Estado em manter um bom nível
salarial.
A maior parte dos cubanos que trabalham no setor estatal ganha entre
350 e 500 pesos. Um diretor de escola ou um médico com muita estrada
podem chegar a ganhar 600. O problema é que a dupla moeda, com o CUC
valendo 24 pesos, e a predominância do turismo fazem com que os preços
subam muito. Um pacote de bolacha recheada custa cerca de 2 CUC – o que
quer dizer 48 Pesos, mais de um décimo do salário da maioria. Uma
televisão nova custa 250 Pesos, mas todos as têm, muitas compradas
usadas, outras presenteadas por parentes que trabalham fora do país.
A alimentação básica, em contrapartida, está garantida graças à instituição da libreta,
um caderninho que controla o consumo de uma cesta básica altamente
subsidiada pelo Estado. Alimentação e higiene básicas recebem esses
subsídios até determinado limite de consumo pessoal. Por exemplo, todo
cubano tem direito a um pão francês por dia na libreta, a cinco centavos de Peso. Pode comprar mais, fora da libreta, mas aí vai custar um Peso cada. Algo semelhante acontece com o leite: 20 centavos de Peso na libreta, 5 Pesos fora dela.
Os salários são baixos, é verdade, mas além de Saúde e Educação
totalmente gratuitas e da cesta básica subsidiada, também o setor
cultural é absolutamente acessível. Nos fins de semana se formam filas
em frente aos cinemas e teatros, que cobram apenas dois Pesos Cubanos
por sessão. A sorveteria Copélia, a maior e mais famosa do país, também
recebe filas enormes, que fazem curvas em torno do parque que a cerca. A
bola de sorvete custa 1 Peso Cubano, mesmo preço de alguns dos livros
expostos na Feira do Livro de Havana – embora a maioria custe um pouco
mais, cerca de 20 Pesos –, que acontece em um antiquíssimo castelo em um
canto da cidade. Ônibus quase enfileirados saem do centro da capital
todos os dias durante a Feira para levar a multidão ao reino dos livros.
Quando a Revolução acompanha a sociedade
O trânsito de veículos está longe de ser um problema em Cuba, mas
nenhum dos carros antigos que circulam por qualquer cidade cubana
precisa parar para que seu motorista ou seus passageiros observem os
grandes outdoors revolucionários que estão por todos os lados. Os
painéis trazem imagens de heróis como Che Guevara, Camilo Cienfuegos,
Frank País e José Martí, sempre acompanhadas de frases fortes,
marcantes. Os lemas revolucionários, nas vozes deles, de Fidel ou de
Raúl são estímulos a seguir a luta ou lembranças sobre como aprimorar
ações pessoais. “Sejamos como o Che”, dizem algumas, reproduzindo frase
de Fidel.
A Revolução está em todos os lugares de Cuba, seja com os painéis
seja com o povo organizado. Uma grande parte da população participa de
alguma das organizações de massa – Central dos Trabalhadores Cubanos
(CTC), União dos Jovens Comunistas (UJC), Federação das Mulheres Cubanas
(FMC), Federação dos Estudantes Universitários (FEU), Associação
Nacional dos Pequenos Agricultores Cubanos (ANAP, na sigla em espanhol),
FAR (Forças Armadas Revolucionárias). Além dos espaços dessas
instituições, presentes também de forma local e setorial, os cubanos
estão organizados nos já citados Comitês de Defesa da Revolução, e
também lá participam efetivamente, em reuniões deliberativas que chegam a
reunir 40 pessoas do mesmo quarteirão em uma noite de domingo. Os CDR`s
são como associações de bairro com funções político-cultural-sociais
que vão muito além do comum nessas associações no Brasil.
Quando a sociedade acompanha a Revolução
O povo cubano é um povo educado, politizado e solidário – ainda que
muitas vezes bastante fechado. Acostumou-se às dificuldades,
acostumou-se a participar de toda a vida do país, acostumou-se a pensar e
acostumou-se a pensar para além do próprio umbigo. Nenhum cubano é uma
ilha. Todos souberam e se solidarizaram profundamente com o incêndio na
boate em Santa Maria. Difícil encontrar alguém que, identificando um
brasileiro, não engolisse em seco para dar os pêsames e manifestar
solidariedade. Não há banalização da morte. Tremem de indignação contra
injustiças cometidas em qualquer lugar do mundo, com a exata atitude
que, para o Che, definia um revolucionário.
Internacionalistas, a morte de um presidente aliado é a morte de seu
próprio líder. Muitos cubanos têm parentes ou amigos trabalhando na
Venezuela, nas missões sociais criadas por Hugo Chávez. Mesmo os que não
os têm lamentavam profundamente a doença do presidente venezuelano,
baixavam a voz e os olhos para falar sobre ela. Os cubanos sentiram toda
a doença de Hugo Chávez como a doença de um amigo.
Quando a sociedade não acompanha a Revolução
Mesmo os mais de 50 anos de Revolução não conseguiram ainda criar o
“homem novo” sonhado por Che. Expurgados das instituições cubanas, o
machismo, o racismo e a homofobia – este aparentemente com menos
intensidade do que os outros – ainda persistem com força entre as
camadas médias da população.
Em um estádio de beisebol, um ambiente predominantemente masculino,
no jogo entre Industrialies – o time de Havana – e Cienfuegos – da
cidade de mesmo nome –, alguns casais de homens circulavam
tranquilamente nas arquibancadas. Um desses casais, dois homens
mirrados, discutiu fortemente durante a partida com um outro homem,
talvez o mais musculoso do estádio. Mas a discussão nada tinha a ver com
a orientação sexual de ninguém. Era sobre o jogo, e o calor da
discussão aos gritos entre desconhecidos em momento algum levou a
qualquer ameaça de agressão – mesmo considerando a enorme disparidade
entre os “oponentes”. Outras discussões assim aconteceram naquela noite
e, mesmo sem separação entre as torcidas, nenhum caso de violência
aconteceu.
Ao mesmo tempo, uma senhora que hospeda turistas fica incomodada com
uma suíça que, noite atrás de noite, leva um cubano para repartir a
cama. O incômodo não é por ser homem, mas por ser negro. “Geralmente
esses que não querem trabalhar, que procuram mulheres europeias para
tentar ir embora atrás de mais dinheiro, são negros. Não sou racista,
mas geralmente são os negros que não querem trabalhar”, diz ela.
Os homens da praia de Siboney, aqueles que estão zanzando pelas ruas
enquanto suas esposas cuidam da casa, não só conversam entre eles. A
cada mulher que passa os gracejos acontecem, de estalar de lábios
simulando beijos até as velhas cantadas grosseiras. Siboney extrapola o
nível comum, mas esse tipo de situação é normal em toda a ilha.
Quando a Revolução não acompanha a sociedade
As dificuldades econômicas são uma realidade, e é difícil distinguir o
que é resultado do bloqueio estadunidense, do passado colonial e da
inserção em uma região historicamente explorada e, como tal, pobre. Fato
é que essas dificuldades existem, e o turismo, além de criar
desigualdades antes inexistentes, mostra aos cubanos que nos países
capitalistas algumas pessoas têm muito. Só esquece de mostrar que muitas
outras pessoas não têm nada ou quase nada, já que geralmente não são os
pobres os que fazem turismo pelas praias do Caribe. Essa situação cria
em alguns cubanos um descontentamento que, em certos, casos, faz com que
pensem em sair do país. Em outros casos, mais comuns, o que se procura é
melhorar um pouco a condição financeira, poder dar-se alguns luxos a
mais, sem precisar sair do país. É aí que entra o “jeitinho cubano”.
Da mesma forma pela qual o turismo virou incremento de renda ao
Estado, virou incremento de renda à população. Do charuto retirado da
fábrica – ou falsificado – até as corridas de táxi supervalorizadas, as
formas de conseguir alguns CUCs a mais – o que faz grande diferença no
orçamento, dada a supervalorização em relação ao Peso Cubano – são as
mais variadas.
Não existe taxímetro em Cuba. As corridas são negociadas, e o preço é
sempre jogado lá em cima para acabar cobrado – se bem negociado – lá
embaixo. Mas isso é um problema de turista, os cubanos quase não andam
de táxi, a não ser táxis coletivos – carros maiores que vão pegando as
pessoas e seguindo o trajeto que melhor se adapte às necessidades de
todos. Moedas de Peso Cubano com o rosto de Che Guevara também são
vendidas a turistas. Valem três Pesos, ou seja, 12 centavos de CUC –
equivalente ao dólar –, mas são vendidas por pelo menos 5 CUCs. Carros
alugados parados por policiais rodoviários que subentendem a
possibilidade de suborno também não são improváveis. Mas também existem
versões legalizadas desse “jeitinho”, como o serviço de guia turístico
oferecido a todo instante nas proximidades dos principais museus e
praças.
Ao redor de alguns pontos turísticos ou dos hotéis mais caros alguns
cubanos pedem aos turistas artigos raros na ilha. A chegada desses
artigos a Cuba é dificultada pelo bloqueio, que encarece qualquer
importação. Sabonetes e canetas estão entre os mais pedidos. Comida,
jamais.
Volta ao capitalismo?
Com participação política e dificuldades econômicas, os cubanos
vivem. Sem luxos, com alguma desigualdade recente, mas com os direitos
básicos garantidos, eles vivem. Com o bloqueio estadunidense e com
parcerias com Venezuela, Rússia e China, a Revolução sobrevive e muda.
As possibilidades de volta ao capitalismo abertas pela criação de mais e
mais empresas privadas são refutadas pela população. É difícil
encontrar alguém que queira desistir do socialismo. A crítica é sempre à
economia, mas a manutenção do sistema político parece ser vontade de
todos. Um taxista que admite querer o capitalismo de volta usa o modelo
chinês como exemplo do que queria para seu país. A discussão sobre as
mudanças do modelo, chamadas em Cuba de atualizações, envolve o
medo de retorno ao capitalismo, mas o discurso oficial – com o qual a
população concorda – é de que não se abrirá mão de nenhuma das
conquistas da Revolução.
A dificuldade na renovação de quadros, por outro lado, é uma
realidade. Os cubanos mais velhos, que nasceram antes ou junto com a
Revolução, mostram preocupação sempre que perguntados sobre a juventude
do país. A constante presença de estrangeiros cria nos jovens
expectativas e interesses que antes não existiam, quase sempre
relacionados ao consumo. Ao mesmo tempo, a União de Jovens Comunistas é
uma das organizações mais fortes do país, e o novo nome forte do governo
cubano, vice-presidente recém empossado, é Miguel Díaz-Canel, 52 anos,
cuja trajetória política está totalmente ligada à UJC.
Em entrevista recente o líder revolucionário Fidel Castro, ao
responder pergunta sobre as atualizações do modelo, disse que “a maior
mudança foi a Revolução”. Se teremos outra mudança desse tamanho – no
caminho inverso –, é impossível prever, mas a sociedade cubana, com
todas suas contradições, está convicta de que preservar suas conquistas é
essencial. E organizada para isso.
Alexandre Haubrich é jornalista.
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