sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O País - Especial Cuba: Uma conversa com Fidel

O Blog Solidários publica a seguir série de reportagens produzidas pelo enviado a Havana Luís Fernando e publicadas no jornal angolano "O País". Aprecie:

Uma conversa com Fidel

A espécie humana pode não ser capaz de sobreviver ao presente milénio. Se calhar até desapareça no intervalo de um século ou dentro de poucos decénios, se antes não se produz uma grande guerra.

Esta perspectiva apocalíptica pertence a Fidel Castro Ruz e exteriorizou-a há poucos dias em Havana, num encontro que marcou a sua primeira aparição pública em 2011. Foi iniciativa do líder histórico, que estendeu convites a intelectuais presentes na capital cubana na mesma altura em que decorria a vigésima edição da Feira do Livro.

Os pensadores, entre escritores, publicistas, editores, jornalistas, historiadores, bibliotecários e outros homens de cultura, juntaram-se a Fidel Castro no Palácio das Convenções, para longas horas de debate à volta de um tema que ele próprio sugeriu: o risco real de a espécie humana deixar de existir, seja pelo perigo de uma confrontação nuclear dado o cúmulo de armas que nos cerca, seja pelo mau uso do planeta, nosso único habitat.


O mundo todo ali

Foi um Fidel Castro com visível desgaste físico, consequência óbvia do problema de saúde que o retirou da chefia do Estado, aquele que os intelectuais idos de todos os costados do mundo –entre eles Angola, na pessoa da ministra da Cultura Rosa Cruz e Silva e os membros da sua delegação de visita oficial a Cuba – encontraram na manhã de uma terça-feira memorável. Incrivelmente menos enérgico que no seu passado de guerrilheiro ou de governante, é certo, mas do mesmo modo surpreendente pela força da sua mente, a sua lucidez intacta e a agilidade do seu pensamento.

Fidel Castro quis que os intelectuais se servissem do seu prestígio e capacidade de comunicar para estenderem ao resto da civilização humana o perigo que há apenas alguns anos parecia paranóia idiota de cientistas e ecologistas.

Ele próprio se surpreendeu que passados apenas dezanove anos desde a Cimeira sobre a Terra no Rio de Janeiro (Brasil) quando alertou pela primeira vez sobre o perigo de extinção dos humanos, as condições no planeta se tenham degradado a tal velocidade que aquilo que parecia premonição para se cumprir em mil anos, hoje se nota que poderá tudo acontecer bem mais cedo.

Ajudem os políticos incapazes

O líder cubano, que apesar do estrago físico teve fôlego para animar uma conversa por mais de 6 horas, mostrou-se cáustico como sempre, visionário como sempre, profundo como sempre. Mais: infinitamente autocrítico em relação ao papel dos políticos.

“Os intelectuais talvez consigam persuadir as criaturas mais arrogantes e incapazes que alguma vez existiram: nós, os políticos”.

Pareceu profundíssima a sua desilusão com a maneira como os homens que governam nações lidaram ao longo dos anos com os alertas pontualmente lançados pelos cientistas, os estudiosos das variações climáticas, os ecologistas. Tivessem eles mantido uma postura de menos indiferença – acredita Fidel – hoje o planeta não estaria tão comprometido em relação ao seu destino: “Na cimeira do Rio os oradores achavam que tinham muitos séculos pela frente para salvar o mundo (…). Olhando para a cara sorridente de Bush (pai) e o monumental à-vontade do chanceler alemão Helmut Kohl, caminhando com rapidez por um amplo corredor depois da foto da família, dava a impressão que nada poderia perturbar o feliz sossego do nosso esplêndido mundo. Tão tonto como os demais mortais, fiquei com a ideia de que talvez eu tivesse exagerado”.

Números, contas, verdades…

Célebre pela sua capacidade de raciocinar com recurso a contas rápidas de cabeça, Fidel Castro mostrou na sua conversa informal e distendida com os intelectuais que não perdeu a prática. Do mesmo modo, provou que a sua fabulosa memória continua em grande forma, lembrando pormenores de episódios ocorridos nas décadas de cinquenta e sessenta, como uma reunião com pensadores cubanos no ano de 1961 em que manifestara preocupações com o futuro da cultura do seu país. Pronunciou então o discurso que se tornou conhecido como “Palavras aos Intelectuais”.

Muitos dos que estiveram naquele encontro de há 50 anos, curiosamente, voltaram ao diálogo com Fidel Castro no dia 15 de Fevereiro de 2011, como são os casos de Fernando Retamar, Presidente da Editorial Casa das Américas e Miguel Barnet, Presidente da União de Escritores, Artistas e Compositores de Cuba (UNEAC).

Como uma família

Desolado com o que os humanos fizeram com o seu próprio espaço vital, o planeta Terra, Fidel Castro interrogou-se se não seria inteligente que no mundo a nossa espécie agisse como uma família? “Não temos outro mundo para onde nos mudarmos. O nosso lugar é aqui. Mandaram sondas a Marte para ver se há lá vento. Há lá é um calor imenso”, declarou o mítico líder guerrilheiro da Sierra Maestra, fazendo gala do seu emblemático sarcasmo. Como quem diz, não vai ser Marte a nossa salvação, porque lá não há como o homem se instalar sem que acabe frito e tostado.

Reflexões de uma intelectual angolana

A historiadora Rosa Cuz e Silva disse na conversa com Fidel que acredita que África, pelos seus recursos naturais imensos, estará sem dúvidas no centro de grandes disputas no futuro, talvez mesmo atacada pelas grandes potências.

A compra de terras aráveis em África – fez notar – é já um sinal preocupante. Fidel, a propósito, referiuse igualmente a esta nova e inquietante realidade.

A historiadora angolana apreciou vivamente as reflexões de Fidel Castro durante o pedagógico encontro e disse que “esta lição que nos dá hoje deve ser passada às crianças”.

Sobre Angola, além da questão pontual ligada à rodagem de um filme épico sobre a batalha de Cuito Cuanavale (aspecto referido na edição de O PAÍS da semana anterior e solicitação para a qual o líder cubano se mostrou disponível), Rosa Cruz e Silva, também ministra da Cultura, lembrou que “já sofremos muito e temos o direito de desfrutar da nossa liberdade”.

Novo convite para dentro de 1 ano
Intelectual de mão cheia que é Fidel Castro, um leitor insaciável e persistente cultor da palavra escrita (acaba de lançar dois volumosos livros, sobre a estratégia que conduziu à vitória do seu sonho de liberdade), demonstrou no diálogo com pensadores que se sente bem entre eles.

Tanto assim que mandou às urtigas os médicos que o seguem ininterruptamente, aflitos com a extensão daquele encontro (perto de sete horas e exigindo imenso do cérebro) e falou até onde quis, com um pequeno intervalo de vinte minutos exigido mais pelo moderador (Abel Prieto, ministro cubano da Cultura) do que propriamente por gestão sua do tempo. E a provar que a conversa com intelectuais empolga o dirigente cubano, partiu dele um convite peremptório: “vamos nos encontrar todos os que estão nesta sala em Fevereiro de 2012, para voltarmos a dialogar.

Convite feito e prometo aqui estar”.

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